JURISPRUDÊNCIA CÍVEL
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – PATERNIDADE RECONHECIDA – OMITIDA PERANTE A SOCIEDADE EM INFORMATIVO LOCAL – CIDADE DE PEQUENO PORTE – REPERCUSSÃO GERAL – DANOS MORAIS CONFIGURADOS – VIOLAÇÃO AOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – SENTENÇA MANTIDA
– A falta da relação paterno-filial acarreta a violação de direitos próprios da personalidade humana, maculando o princípio da dignidade da pessoa humana.
– Conforme entendimento jurisprudencial consolidado pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça, possível a indenização por danos morais decorrentes da violação dos direitos da criança – Inteligência do art. 227 da Constituição Federal. Apelação Cível nº 1.0144.11.001951-6/001 – Comarca de Carmo do Rio Claro – Apelante: Pai – Apelados: Menor, mãe e outro – Relator: Des. Wanderley Paiva
A C Ó R D Ã O
Vistos etc., acorda, em Turma, a 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, à unanimidade, em negar provimento ao recurso.
Belo Horizonte, 27 de fevereiro de 2013. – Wanderley Paiva – Relator.
N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S
DES. WANDERLEY PAIVA – Trata-se de apelação interposta à sentença de f. 137/150, proferida pelo MM. Juiz José Fernando Ribeiro de Carvalho Pinto, da Secretaria do Juízo da Comarca de Carmo do Rio Claro, que, nos autos da ação de indenização ajuizada por mãe e menor em face do pai, julgou improcedente o pedido em relação à primeira autora e parcialmente procedente em relação à segunda para condenar o réu ao pagamento de R$15.000,00 (quinze mil reais) a título de danos morais, corrigidos desde o trânsito em julgado da sentença.
Em razão da sucumbência recíproca, condenou o réu ao pagamento de 50% das custas processuais e honorários advocatícios, fixados em 15% sobre o valor da condenação, e condenou a primeira autora ao pagamento dos 50% restantes, suspendendo a exigibilidade em razão dos benefícios da gratuidade judiciária.
Inconformado, o réu interpôs o presente recurso de apelação, f. 156/165, sustentando em suas razões a inexistência de danos morais suportados pela apelada, uma vez que a reconheceu como filha, registrou-a, deu-lhe seu nome de família e paga pensão alimentícia, pelo que não há como sustentar a alegação de que tenta ocultar sua existência.
Afirma que, desde que reconheceu a paternidade da apelada, foram poucas as oportunidades para se encontrarem, por residirem em cidades diferentes, mas que sempre fez questão de demonstrar seu afeto e carinho pela apelada quando o encontro é possível.
Alega que o simples fato de não ter mencionado a apelada no informativo que apresentou sua biografia não é suficiente para comprovar que a excluiu de sua vida, ou mesmo que a trata com repulsa.
Aduziu que inexiste nos autos qualquer comprovação de que a apelada vem sofrendo com a publicação do informativo e que cuidou em demonstrar que a frequência e comportamento desta na escola não foram prejudicados, bem como que inexiste registro de atendimento médico-hospitalar à menor.
Sustentou que, ainda que se entenda caracterizado o abandono afetivo, o entendimento da jurisprudência é de que não existe direito a indenização por danos morais nessas situações.
Concluiu, pugnando pelo provimento do recurso para a reforma integral da sentença.
Preparo regular, f. 166.
Contrarrazões apresentadas pela apelada, f. 171/177, requerendo a manutenção da sentença.
Despacho proferido por este Relator, determinando a remessa dos autos ao i. Procurador de Justiça, f. 182. Parecer da Procuradoria de Justiça, f. 184/187.
É, em síntese, o relatório.
Cuidam os autos de ação de indenização por danos morais.
Narram as autoras, sendo a segunda filha do réu e a primeira sua genitora, que o requerido ocultou a existência de sua filha, ora apelada, em informativo contendo sua biografia, pois se referiu aos seus dois filhos havidos na constância do casamento, deixando de fora a autora, fruto de uma relação extraconjugal, fato que lhe gerou humilhação e desgosto.
Defende-se o réu, afirmando que os direitos objetivos de filho legítimo estão resguardados à menor, bem como o direito afetivo, pois em momento algum negou a sua existência.
Em sentença, entendeu por bem o ilustre Julgador monocrático em reconhecer a improcedência dos pedidos inicias em relação à primeira autora (genitora da segunda) e reconhecer o direito da segunda autora em ser indenizada pelo réu.
Apela o requerido.
Pois bem.
Antes de adentrarmos o cerne da lide, cumpre tecer algumas considerações acerca do instituto do dano moral.
Nesse mister, muito embora seja o pedido de reparação por dano moral juridicamente possível, pois está previsto no ordenamento jurídico pátrio, esse dano deve ser decorrente da violação de um direito do autor. O Código Civil vigente, em seu art. 186, prevê a possibilidade de reparação civil em razão de ato ilícito, inclusive quando o dano é exclusivamente moral.
No entanto, a possibilidade de indenização deve decorrer da prática de um ato ilícito, que é considerado como aquela conduta que viola o direito de alguém e causa a este um dano, que pode ser material ou exclusivamente moral. Em qualquer hipótese, porém, exige-se a violação de um direito da parte, da comprovação dos fatos alegados, dos danos sofridos e do nexo de causalidade entre a conduta desenvolvida e o dano suportado.
Neste contexto, a responsabilidade civil e seus efeitos presumem lesão, ou seja, a violação à ordem jurídica, pois, caso contrário, tratar-se-ia de ato corriqueiro, no qual a licitude da sua prática não ensejaria qualquer reparabilidade. E, como dito, para se falar em reparação, deve-se observar três aspectos, que são: primus, a ilicitude do ato praticado, já que os atos regulares de direito não ensejam reparação; secundus, temos o dano, ou seja, a efetiva lesão suportada pela vítima. E, ao cabo, está a relação entre os dois primeiros, a relação existente entre o ato praticado e a lesão experimentada, ou seja, o nexo causal. Nesse último, trata-se do iter entre o ato e o resultado, sem o qual impossível a reparação do dano ante a inexistência da relação fato-consequência.
Em resumo, a responsabilidade civil e seus efeitos presumem lesão, ou seja, a violação à ordem jurídica, pois, caso contrário, tratar-se-ia de ato corriqueiro, no qual a licitude da sua prática não ensejaria qualquer reparabilidade.
No caso em exame, ao meu aviso, está bem clara a ofensa praticada pelo réu à moral da autora.
Isso porque a ausência de citação do nome da apelada no informativo veiculado pela prefeitura e ao qual tiveram acesso todos os moradores da cidade, onde o réu é prefeito e autor do texto publicado, importa em demonstração de desconsideração pública da pessoa da autora.
Ora, os filhos havidos na constância do casamento foram citados como motivo de satisfação para o réu, sendo que a autora nem ao menos foi mencionada.
E, sendo o texto em questão uma espécie de "biografia", a ausência de menção da autora demonstra a falta de interesse do requerido em reconhecê-la publicamente como sua filha.
Na peça de defesa apresentada pelo apelante, verifica-se a clara intenção deste de não tornar conhecida a paternidade da menina para preservar o seu relacionamento conjugal e a sua imagem publica, in verbis:
"Como confessar publicamente uma infidelidade conjugal e ver isso publicado em uma biografia, expondo a constrangimento e vergonha, aí sim, a criança, que preconceituosamente seria apontada na rua e vista como alguém incomum? Isso sem falar na esposa do atual Prefeito, que seria também submetida à humilhação e constrangimentos de toda ordem, porque não é pelo fato de esta perdoar e ainda conviver com o marido que sua honra, imagem, vida privada e intimidade tenham sido relegados à margem do que garanta a lei. Como não preservar, em público, de constrangimento e dor moral todas as outras partes inocentes envolvidas, a esposa e os filhos havidos do casamento" (f. 46).
No entanto, a apelada também deve ser incluída no rol dos inocentes envolvidos no episódio da infidelidade conjugal do réu e ser protegida de qualquer violação à sua moral, ou aos seus direitos de filha legitima, assim como seus irmãos e sua madrasta.
Poder-se-ia ainda dizer que a simples omissão acerca da existência da autora não caracteriza qualquer ato ilícito por parte do réu, o que seria indispensável à configuração do dever de indenizar.
Contudo, nos termos dos ensinamentos de Silvio Sávio Venosa, a responsabilidade civil se caracteriza "em qualquer situação na qual alguma pessoa, natural ou jurídica, deve arcar com as consequências de um ato, fato, ou negócio jurídico danoso. Sob essa noção, toda atividade humana, portanto, pode acarretar o dever de indenizar" (in Direito Civil: responsabilidade civil. 2005).
E a falta da relação paterno-filial, agravada pela omissão pública da existência da autora, sem dúvida, acarreta a violação a direitos próprios da personalidade humana, maculando o princípio da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da Carta da República, e ainda,
diretamente, ao art. 227 da Constituição Federal, que estabelece os direitos da criança e os deveres da família, in verbis:
"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".
Também, no âmbito da legislação infraconstitucional, o art. 1.634 do Código Civil é clarividente ao mencionar os deveres dos pais, senão vejamos:
"Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I – dirigir-lhes a criação e educação;
II – tê-los em sua companhia e guarda; […]".
Vale também transcrever enunciado constante do Estatuto da Criança e do Adolescente:
"Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento".
E, ainda, o art. 15 de referido estatuto garante à criança e ao adolescente o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas, sendo que, na situação retratada nos autos, é nítida a falta de respeito com que a apelada foi tratada pelo seu genitor, que a excluiu de sua biografia.
No que tange ao respeito garantido às crianças e aos adolescentes, o art. 17 do ECA dispõe que consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem e da identidade; e o art. 18, por sua vez, prevê que é dever de todos velar pela dignidade da criança, protegendo-a de qualquer tratamento vexatório ou constrangedor.
Nesse ínterim, faltou o apelante com o seu dever de proteção, uma vez que, além de não proteger a menor de tratamento vexatório, contribuiu para que sofresse constrangimento público.
Em que pese ter o apelante reconhecido a apelada como sua filha, fê-lo apenas formalmente, o que basta para a configuração do dano moral, especialmente considerando os efeitos de tal negativa em uma cidade pequena e conservadora, como ele próprio afirma.
Sobre o reconhecimento de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, o Estatuto da Criança e do Adolescente determina, em seu art. 20, que terão os mesmos direitos e qualificações, sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias, garantindo ainda, no art. 26, o direito do filho em ser reconhecido pelos genitores.
Acerca da possibilidade de indenização por danos morais, decorrentes da violação dos direitos da criança, tem-se o respeitável entendimento da i. Ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi:
"Civil e processual civil. Família. Abandono afetivo. Compensação por dano moral. Possibilidade. – 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido." (REsp 1159242/SP, Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. em 24.04.2012, DJe de 10.05.2012.)
Acrescente-se que, quando da justificativa do Estatuto da Criança e do Adolescente, o saudoso Presidente Tancredo Neves assim se expressou:
"A criança é a nossa mais rica matéria-prima. Abandoná-la à sua própria sorte ou desassisti-la em suas necessidades de proteção e amparo é crime de lesa-pátria".
Em arremate, importa ainda ressaltar que, quando da concepção, o apelante não tinha vergonha da mãe da apelada, mas, agora que a infante veio ao mundo, ele se sente envergonhado de dizer que é seu pai biológico.
Daí, seria de perguntar: será que amanhã ele terá vergonha da apelada vir exercer seu direito de voto para o apelante? Ou ainda: será que ele teria vergonha de seus eleitores ou de seus adversários políticos?
Finalizando, ouso dizer ainda que a herança que o Senhor concede são os filhos, bênçãos de Deus que prolongam a vida e o nome dos pais, sendo que os pais devem assumir a responsabilidade que lhes cabe pela vida dos filhos.
Presente, portanto, a tríade necessária à configuração do dever de indenizar, deve ser mantida a sentença que reconheceu a ofensa moral praticada pelo apelante à apelada.
Com tais considerações, nego provimento ao recurso, mantendo a sentença proferida bem como lançada.
Custas recursais, pelo apelante.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Rogério Coutinho e Alexandre Santiago.
Súmula – NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.
Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG