JURISPRUDÊNCIA CÍVEL
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE DEFESA DOS CONCURSOS PARA CARTÓRIOS – FINALIDADE SOCIAL – ART. 5º, INC. V, ALÍNEA B, DA LEI 7.347/85 – LEGITIMIDADE ATIVA – OCORRÊNCIA – AUTORIZAÇÃO DOS ASSOCIADOS – DESNECESSIDADE – INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS Nº 1.0467.13.000559-9-002 – ART. 985, INC. I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – RECURSO PROVIDO – CASSAÇÃO DA SENTENÇA – ART. 66, § 2º, DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS DO ESTADO DE MINAS GERAIS – EFETIVAÇÃO – INCONSTITUCIONALIDADE INCIDENTAL – PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – SERVENTIA – DECLARAÇÃO DE VACÂNCIA
– A Associação Nacional de Defesa dos Concursos para Cartórios, por incluir entre suas finalidades institucionais a proteção ao patrimônio público e a defesa do instituto do concurso público, detém legitimidade ativa para a propositura de ação civil pública com vistas à declaração de vacância de serventia extrajudicial, por ilegalidade em seu provimento.
– É inconstitucional o art. 66 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado de Minas Gerais, por violar a exigência do concurso público para o provimento das serventias notariais, na esteira do precedente do Supremo Tribunal Federal, na ADI nº 417, Rel. Min. Maurício Corrêa, em 8/5/1998, o que torna dispensável a instauração do incidente de inconstitucionalidade pelo órgão fracionário.
– É nulo o ato que confere efetividade a escrevente juramentado substituto, em serventia extrajudicial provida em caráter precário até a realização de concurso público, nos termos do art. 236, § 3º, da Constituição da República.
Apelação Cível nº 1.0647.13.008886-5/001 – Comarca de São Sebastião do Paraíso – Apelante: Andecc – Associação Nacional de Defesa dos Concursos para Cartórios – Apelados: Paulo Roberto Lauria, Estado de Minas Gerais – Relator: Des. Edgard Penna Amorim
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, à unanimidade, dar provimento ao recurso, cassar a sentença e, nos termos do art. 515, § 3º, do CPC/1973, julgar procedentes os pedidos.
Belo Horizonte, 8 de novembro de 2018. – Edgard Penna Amorim – Relator.
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
DES. EDGARD PENNA AMORIM – Trata-se de ação civil pública proposta pela Associação Nacional de Defesa dos Concursos para Cartórios – ANDECC em face do Estado de Minas Gerais e de Paulo Roberto Lauria, efetivado no 1º Tabelionato de Notas da Comarca de São Sebastião do Paraíso, ao fundamento de que o art. 66 do ADCT da Constituição do Estado de Minas Gerais padeceria de inconstitucionalidade e não poderia fundamentar a subsistência do segundo requerido na delegação.
Adoto o relatório da sentença (f. 307/314-TJ) e acrescento que o il. Juiz da 1ª Vara Cível da Comarca de São Sebastião do Paraíso, Osvaldo Medeiros Neri, julgou extinto o processo sem resolução de mérito, com fundamento no art. 5º, inc. V, alínea b, da Lei nº 7.347/85. A autora foi condenada ao pagamento de honorários no valor de R$3.000,00 (três mil reais), suspensa a exigibilidade na forma do art. 12 da Lei nº 1.060/50.
Recorreu a autora (f. 319/325), batendo-se pela cassação da sentença aos fundamentos, em síntese, de que a delegação dos serviços de tabelionato por meio de concurso público é matéria de interesse difuso de caráter público, a ser tutelado pela ação civil pública, por força do art. 5º, inc. V, a e b, da Lei nº 7.347/95, razão pela qual aquela associação seria legítima para a propositura da presente ação.
O segundo requerido juntou contrarrazões (f. 329/341), batendo-se pelo desprovimento do recurso. O Estado ofereceu contrarrazões às f. 350/361.
Parecer da douta Procuradoria-Geral de Justiça (f. 368/372), da lavra da il. Procuradora Iraídes de Oliveira Marques Caillaux, opinando pelo provimento do recurso.
Após lançar relatório e pedir dia, a Turma Julgadora converteu o julgamento em diligência, para que a Procuradoria-Geral de Justiça se manifestasse sobre o interesse no prosseguimento da ação, em caso de acolhimento da preliminar de ilegitimidade ativa da ANDECC, o qual fora manifestado na sustentação oral então produzida pelo il. Procurador de Justiça Antônio Sérgio Rocha de Paula.
Às f. 382/384, a douta Procuradoria-Geral de Justiça pugnou pela sua inclusão no polo ativo da demanda, caso fosse confirmada a sentença quanto à ilegitimidade ativa da autora.
Na sequência, diante da decisão proferida nos autos do IRDR nº 1.0467.13.000559-9-002 (CPC, art. 982), foi determinada a suspensão do processo até o julgamento do incidente, o qual findou em 30/5/2018, com decisão no sentido de que a Andecc está legitimada para ajuizar as ações civis públicas vinculadas à observância de princípios constitucionais aplicáveis aos concursos públicos para provimento de delegações de serviço notarial e de registro.
Conheço do recurso, presentes os pressupostos.
1. Preliminar de ilegitimidade ativa.
A ação civil pública é instrumento processual destinado à proteção do patrimônio público, dentre outros valores que a Constituição da República expressamente tutelou, conforme referência expressa no art. 129, inc. III.
Por sua vez, a Lei nº 7.347/85, que foi recepcionada pela CR, previa a legitimidade ativa das associações, nos seguintes termos:
“Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a cautelar:
[…]
V – a associação que, concomitantemente:
a) esteja constituída há pelos menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.''
In casu, a ação foi proposta no ano de 2013, antes da entrada em vigor da Lei nº 13.004/14, que modificou a alínea b do inc. V do art. 5º da Lei nº 7.347/85, de forma a nela inserir as expressões adiante sublinhadas:
“b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico''.
De toda forma, a redação anterior da referida alínea b, porque recepcionada pela Constituição da República, já abrangia a defesa de interesses difusos alusivos ao patrimônio público material e ao imaterial.
Por sua vez, o Estatuto da Associação autora (f. 34/36) prevê:
“Art. 2º. São princípios da Associação Nacional de Defesa dos Concursos para Cartórios:
Defesa dos concursos públicos de provas e títulos para outorga de delegações de notas e registros, promovidos por todos os Tribunais de Justiça (supressão do termo "estaduais"), conforme prevê a Constituição Federal;
Defesa da manutenção das delegações outorgadas em razão dos concursos públicos de provas e títulos já realizados;
Defesa dos concursos públicos de provas e títulos para ingresso, tanto por provimento quanto por remoção bem como da efetiva delegação de todas as serventias vagas dentro do prazo constitucional;
Defesa da equidade na valoração dos títulos;
Defesa da concessão da outorga das delegações de notas e registros por todos os Tribunais de Justiça;
Defesa da moralidade, transparência e ampla acessibilidade nos citados concursos públicos;
Busca de transparência absoluta na identificação de serventias irregularmente preenchidas, e adoção de medidas administrativas, judiciais e políticas, nos limites da lei, para sua regularização mediante concurso.''
Assim, não há falar em ilegitimidade ativa da Andecc para o ajuizamento da presente ação, cuja pretensão é a regularização da delegação da serventia e a defesa do instituto do concurso público. A propósito:
“Apelação cível. Ação civil pública. Legitimidade passiva ad causam. Associação de abrangência nacional. Defesa dos concursos para cartórios. Defesa de interesse coletivo. Existência de legitimidade ativa. Sentença cassada. – O rol de finalidades previsto no art. 5º, V, "b", da LACP e no art. 82, IV, do CDC, não é taxativo e, portanto, admite, com base em interpretação sistemática e teleológica, a inclusão de quaisquer interesses difusos e coletivos. – Segundo o microssistema da tutela coletiva, é a pertinência entre o interesse postulado e a finalidade institucional da entidade associativa que constitui requisito para sua legitimidade à propositura da ação coletiva. – A Associação Nacional de Defesa dos Concursos para Cartórios – ANDECC é legítima para o ajuizamento de ação civil pública que envolva a defesa do direito coletivo relacionado ao provimento de serventia extrajudicial, após prévia realização de concurso público. – Considerando que a entidade em questão foi constituída com o propósito de promover judicialmente a defesa dos interesses em questão, inexiste necessidade de deliberação acerca disso em Assembleia'' (TJMG, Ap. Cível nº 1.0344.13.004626-3/001, 5ª Câmara Cível, Rel. Des. Versiani Penna, DJe de 22/10/2015; un.).
Ainda no tocante à ilegitimidade ativa, também deve ser afastada a exigência da autorização dos associados, nos termos em que decidido também pela eg. 5ª Câmara Cível deste eg. Sodalício no precedente acima ementado.
Com efeito, a interpretação atribuída ao inc. XXI do art. 5º da Constituição da República, com respaldo em julgamento do exc. Supremo Tribunal Federal, onde houve reconhecimento de repercussão geral, refere-se a uma execução de titulo judicial, cuja ação de conhecimento foi inicialmente ajuizada em favor de uma lista de integrantes da Associação do Ministério Público Catarinense, na qual era pleiteado o recebimento de vantagem pecuniária por período de prestação de serviço à Justiça Eleitoral.
Naquela ocasião, discutia-se se a execução do título judicial poderia ser movida por associados ou não associados que não haviam constado da relação juntada no ato de ajuizamento da ação de conhecimento ou que não teriam dado autorização para a propositura da ação.
Ao final, o exc. Supremo Tribunal Federal, por maioria, entendeu necessária a autorização para a propositura de ação fundada no inc. XXI do art. 5º da CR, mas, o em. Min. Marco Aurélio, prolator do voto vencedor, teceu as seguintes considerações sobre o caso:
“O que nos vem da Constituição Federal? Um trato diversificado, considerado sindicato, na impetração coletiva, quando realmente figura como substituto processual, inconfundível com a entidade embrionária do sindicato, a associação, que também substitui os integrantes da categoria profissional ou da categoria econômica, e as associações propriamente ditas. Em relação a essas, o legislador foi explícito ao exigir mais do que a previsão de defesa dos interesses dos filiados no estatuto, ao exigir que tenham – e isso pode decorrer de deliberação em assembleia – autorização expressa, que diria específica, para representar – e não substituir, propriamente dito – os integrantes da categoria profissional. Digo que o caso é péssimo para elucidar essa dualidade. Por quê? Porque, conforme consta do acórdão do Tribunal Regional Federal, a ação de conhecimento foi ajuizada pela Associação Catarinense do Ministério Público. E o que fez, atenta ao que previsto no inciso XXI do artigo 5º da Constituição Federal? Juntou a relação dos que seriam beneficiários do direito questionado. Juntou, também – viabilizando, portanto, a defesa pela parte contrária, a parte ré -, a autorização para atuar. Prevê o estatuto autorização geral para a associação promover a defesa, claro, porque qualquer associação geralmente tem no estatuto essa previsão. Mas, repito, exige mais a Constituição Federal: que haja o credenciamento específico. Pois bem. Veio à baila incidente na execução, provocado em si – pelo menos considero o cabeçalho do acórdão do Tribunal Regional – pela associação que atuara representando os interesses daqueles mencionados, segundo as autorizações individuais anexadas ao processo? Não, por terceiros, que seriam integrantes do Ministério Público, mas que não tinham autorizado a propositura da ação. Indago: formado o título executivo judicial, como o foi, a partir da integração na relação processual da associação, a partir da relação apresentada por essa quanto aos beneficiários, a partir da autorização explícita de alguns associados, é possível posteriormente ter-se – e aqui penso que os recorridos pegaram carona nesse título – a integração de outros beneficiários? A resposta para mim é negativa. Primeiro, Presidente, porque, quando a Associação, atendendo ao disposto na Carta, juntou as autorizações individuais, viabilizou a defesa da União quanto àqueles que seriam beneficiários da parcela e limitou, até mesmo, a representação que desaguou, julgada a lide, no título executivo judicial. Na fase subsequente de realização desse título, não se pode incluir quem não autorizou inicialmente a Associação a agir e quem também não foi indicado como beneficiário, sob pena de, em relação a esses, não ter sido implementada pela ré, a União, a defesa respectiva. Creio, e por isso disse que a situação sequer é favorável a elucidar-se a diferença entre representação e substituição processual, a esclarecer o alcance do preceito do inciso XXI do artigo 5º, que trata da necessidade de a associação apresentar autorização expressa para agir em Juízo, em nome dos associados, e o do preceito que versa o mandado de segurança coletivo e revela o sindicato como substituto processual. Nesse último caso, a legitimação já decorre da própria Carta – representação gênero – e também da previsão do artigo 8º, do qual não me valho. Estou-me valendo apenas daquele referente às associações. Presidente, não vejo como se possa, na fase que é de realização do título executivo judicial, alterar esse título, para incluir pessoas que não foram inicialmente apontadas como beneficiárias na inicial da ação de conhecimento e que não autorizaram a Associação a atuar como exigido no artigo 5º, inciso XXI, da Constituição Federal. Por isso, peço vênia – e já adianto o voto – para conhecer e prover o recurso interposto pela União. Os recorridos não figuraram como representados no processo de conhecimento. Pelo que estou percebendo, e pelo que está grafado no acórdão impugnado pela União, apenas pretenderam, já que a Associação logrou êxito quanto àqueles representados, tomar uma verdadeira carona, incompatível com a organicidade e a instrumentalidade do Direito'' (STF, RE nº 573232, Rel. p. Acórdão Min. Marco Aurélio, Pleno, DJe de 14/5/2014).
Como visto, a hipótese paradigmática apresenta peculiaridades diversas da presente ação, sobretudo porque se enquadra na substituição processual, quando, por sua própria finalidade estatutária, aqui a Associação, em nome próprio, defende direito difuso, com autorização expressa em suas normas estatutárias.
Com efeito, a ação a que se refere o Recurso Especial nº 573232/SC é diversa da presente, cujo objeto é – repita-se – a regularização do provimento da serventia extrajudicial e, por consequência, a defesa do patrimônio público, que atinge diretamente o interesse dos associados.
Por fim, a matéria restou decidida no IRDR nº 1.0467.13.000559-9-002 (CPC, art. 982), pela eg. Primeira Seção Cível, nos seguintes termos:
“Processo civil. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Julgamento de mérito. Ação civil pública. Lei nº 7.347/85. Legitimidade ativa da Andecc. Associação nacional de defesa dos concursos para cartórios. Para ajuizar ação civil pública objetivando a defesa de interesse difuso e coletivo relativo à realização de concurso público para a concessão de delegação de serviços notarial e de registro. Não aplicação do art. 5º, XXI, CF e do RE Nº 573.232, julgado sob o regime da repercussão geral (Tema Nº 82). Defesa de direitos transindividuais. Hipótese de legitimação especial e autônoma. Desnecessidade de autorização assemblear. Tese fixada. – A Andecc – Associação Nacional de Defesa dos Concursos para Cartório – tem legitimidade especial e autônoma para ajuizar ação civil pública na defesa do patrimônio público e social consistente na observância dos princípios constitucionais relativos a concurso público para o provimento de vagas nas delegações dos serviços notarial e de registro. – Por se tratar de legitimidade específica para a defesa de interesse difuso da coletividade, não é aplicável a regra contida no art. 5º, XXI, CF e tampouco o julgamento feito pela Suprema Corte, sob o regime da repercussão geral, no âmbito do RE nº 573.232 (Tema 82). – Sob a ótica da Lei nº 7.347/85, não é necessária autorização assemblear ou específica dos associados para o ajuizamento, pela associação civil, de ação civil pública para a tutela de interesse difuso ou coletivo, porquanto faz-se a defesa judicial de direitos transindividuais'' (TJMG, IRDR nº 1.0467.13.000559-9-002, Primeira Seção Cível, Rel. Des. Alberto Vilas Boas, j. em 14/6/2018, p. em 6/7/2018).
Por tais motivos é que dou provimento ao recurso para cassar a sentença de extinção sem resolução de mérito, de forma a viabilizar o prosseguimento do feito.
Quanto ao mérito, por força do art. 515, § 3º, do CPC/73 – sob cuja égide deve ser julgado o recurso então interposto -, entendo presentes as condições de aplicação do princípio da causa madura.
2. Mérito.
2.1. Prejudicial de decadência.
O réu arguiu prejudicial de mérito de decadência, pela aplicação do art. 54 da Lei Federal nº 9.784/99, com dispositivo similar no art. 65 da Lei Estadual nº 14.184/02. Prevê aquele dispositivo federal:
“Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.''
Por sua vez, recolhe-se da Lei Estadual nº 14.184/02:
“Art. 65 – O dever da administração de anular ato de que decorram efeitos favoráveis para o destinatário decai em cinco anos contados da data em que foi praticado, salvo comprovada má-fé.
§ 1º – Considera-se exercido o dever de anular ato sempre que a Administração adotar medida que importe discordância dele.
§ 2º – No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência será contado da percepção do primeiro pagamento.''
Na verdade, sobre a questão, o exc. Supremo Tribunal Federal tem entendimento manifestado no sentido de que atos “[…] flagrantemente inconstitucionais como o provimento de serventia extrajudicial sem a devida submissão a concurso público não podem e não devem ser superadas pela incidência do que dispõe o art. 54 da Lei 9.784/1999, sob pena de subversão das determinações insertas na Constituição Federal'' (STF, MS 28279, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJe de 16/12/2010).
De outro lado, o col. Superior Tribunal de Justiça também proferiu julgamento no mesmo sentido (cf. REsp. n.º 1318755/RN, Rel. Min Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 23/10/2012).
Pelo exposto, rejeito a prejudicial de decadência, manifestada pelo segundo requerido na contestação.
2.2. Objeto da causa.
Conforme relatado, a Andecc inseriu entre os seus pedidos os seguintes:
a) declarar a inconstitucionalidade incider tantum do art. 66 do ADCT Mineiro, durante o prazo de sua vigência;
b) suspender os efeitos do ato de outorga de delegação da serventia;
c) declarar vaga a serventia;
d) por consequência legal da declaração de vacância, ordenar o afastamento de seu titular e a nomeação de seu substituto legal para exercer interinamente a função (art. 39, § 2º, da Lei nº 8.935/1994);
e) determinar ao primeiro réu que providencie a inclusão da(s) serventia(s) em concurso, devendo isso ocorrer no prazo máximo de seis meses, a contar da intimação, sob pena de multa diária de R$5.000,00 (quinhentos mil reais), por cada dia que ultrapassar esse prazo, a qual deverá ser revertida ao Fundif – Fundo Estadual de Defesa de Direitos Difusos, criado pela Lei Estadual nº 14.086, de 6 de dezembro de 2001;
f) comunicar o fato à Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais para a publicação da declaração da vacância no Diário do Judiciário e a adoção dos demais procedimentos necessários ao regular provimento da serventia'' (f. 32.).
Como se vê, o objeto da ação é impedir a perpetuação do provimento irregular da serventia – com a consequência de obrigar o Estado de Minas Gerais a abrir concurso público, para a proteção do patrimônio público em sua ampla concepção, pois busca coibir o favorecimento de pessoas determinadas – em suposta violação aos princípios da impessoalidade e da moralidade – e também garantir a observância de dispositivos constitucionais, dentre eles o art. 236, § 3º.
De fato, extrai-se da documentação juntada aos autos que o requerido fora nomeado mediante Portaria do Diretor do Foro da Comarca de São Sebastião do Paraíso "para exercer as funções de Escrevente Juramentado do Cartório do Segundo Ofício Judicial de Notas, em virtude do requerimento do titular do cargo, senhor Vivaldo Gonçalves do Nascimento. Em 6/9/1967" (f. 223).
Em 8 de junho de 1976, foi assinada a Portaria de "nomeação de Paulo Roberto Lauria para exercer as funções de escrevente substituto não remunerado, do Cartório do Segundo Oficio Judicial de Notas da Comarca de São Sebastião do Paraíso, a requerimento do titular", que, por sua vez, foi afastado compulsoriamente da serventia, por completar setenta anos, conforme Portaria nº 11/90, em 20/3/1990 (p. 224).
Na sequência, foi assinada a Portaria nº 13/90, nos seguintes termos:
“O Bel. José Antônio de Faria, Juiz de Direito da 1º Vara e Diretor do Foro desta Cidade e Comarca de São Sebastião do Paraíso, Estado de Minas Gerais, no uso de suas atribuições legais e,
Considerando que o Sr. Vivaldo Gonçalves do Nascimento, titular do Cartório do 2º Ofício Judicial de Notas, – desta Comarca, foi, nesta data, afastado do cargo, por haver completado a idade limite de 70 (setenta) anos, RESOLVE designar, nos termos do art. 3º da Instrução nº 151/85, com redação que lhe foi dada pela Instrução nº 154/86, ambas da Corregedoria de Justiça deste Estado, para responder pelo expediente do 2º Tabelionato desta Comarca, a partir desta data e até o seu provimento efetivo (art. 270 da Resolução nº 61/75), o Sr. Paulo Roberto Lauria; Escrevente Substituído do mesmo Cartório, que deverá prestar o compromisso legal.
São Sebastião do Paraíso, 20 de março de 1990''.
Em 25 de abril de 1990, porém, adveio o seguinte ato:
“O Governador do Estado de Minas Gerais, usando de suas atribuições, resolveu expedir, nos termos do artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição da República, a favor de Paulo Roberto Lauria, Escrevente Juramentado Substituto do Cartório do Tabelião, da Comarca de São Sebastião do Paraíso, o presente título declaratório de estabilidade no serviço público (f. 227)''.
Não bastasse, em 18 de novembro de 1994, o Governador do Estado de Minas Gerais concedeu ao requerido a delegação efetiva dos serviços notarias, nos seguintes termos:
“Concede, à vista do disposto no art. 66, § 2º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado, a Paulo Roberto Lauria a delegação efetiva dos serviços notariais do Cartório do 2º Tabelião da Comarca de São Sebastião do Paraíso'' (f. 229/231).
Como visto, ao requerido foi declarado o direito à estabilidade no serviço público, nos termos do art. 19 do ADCT da Constituição da República, além de lhe ser concedida, em 1994, a delegação efetiva nos serviços notariais, aí já com fundamento no art. 66, § 2º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado de Minas Gerais.
O objeto da presente ação discute a efetividade na serventia e não a estabilidade anômala do servidor como escrevente juramentado.
A propósito, a Constituição da República dispõe:
“Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.
§ 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
§ 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
§ 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.''
Como perceptível, o art. 236, caput e § 3º, estabelece que os serviços notariais e de registros são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, mediante prévia aprovação em concurso público de provas e títulos. Portanto, após 5/10/1988, é inafastável o concurso para o ingresso no serviço notarial e de registro.
Por sua vez, adveio a Lei Federal nº 8.935/1994, que regulou o aludido art. 236 da Constituição Federal, sobre serviços notariais e de registro, não obstante sobre as normas constitucionais contidas no art. 236 da CR haja entendimento pacificado do exc. Supremo Tribunal Federal de que a exigência do concurso público para o provimento das serventias não depende de regulamentação.
No âmbito do Estado de Minas Gerais, o art. 66, § 2º, do ADCT da Constituição Estadual previa hipótese de efetivação do substituto da serventia declarada vaga, sem prévia aprovação em concurso público, desde que atendidos os requisitos da estabilidade anômala prevista no art. 19 do ADCT da Constituição da República.
Calha transcrever-lhe o inteiro teor:
“Art. 66. Os serviços notariais e de registro ficam sujeitos aos princípios estabelecidos neste artigo, enquanto não forem disciplinados em lei os dispositivos constantes do art. 236 da Constituição da República.
§ 1º. Ficam mantidas as atuais serventias notariais e de registro existentes no Estado.
§ 2º. Torna-se-á efetiva, em caso de vacância, a delegação dos serviços notariais e de registro em favor do substituto do titular, desde que esse possua a estabilidade assegurada pelo art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição da República.''
Portanto, o art. 66, § 2º, do ADCTE criou injurídica exceção à norma constitucional que impõe a realização de concurso público para ingresso na atividade notarial.
Lembre-se o teor do art. 19 do ADCT da Constituição da República:
“Art. 19. Os servidores públicos civis da União, Estado, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37 da Constituição, são considerados estáveis no serviço público.''
A propósito, tenho manifestado entendimento no sentido de que o servidor remunerado pelos cofres públicos que preencha os requisitos do art. 19 do ADCT da CR tem direito a se tornar estável no serviço público, o que não se confunde com a efetivação na função.
Sobre o tema da inconstitucionalidade da efetivação das serventias sem a observância do concurso público, o exc. Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do art. 33 do ADCT da Constituição do Estado do Espírito Santo, cuja redação garantia o mesmo direito aos notários estáveis, em hipótese análoga à do § 2º do art. 66 do ADCT da Constituição do Estado de Minas Gerais. Cabe a transcrição da respectiva ementa:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Arts. 33 e 34 do ADCT da Constituição do Estado do Espírito Santo. Serviços notariais e de registro. Direito à estatização. Titularidade assegurada aos atuais substitutos, desde que contem cinco anos de exercício nessa condição e na mesma serventia, na data da promulgação da Constituição Federal. Vulneração do disposto no art. 236, caput, § 3º, da CF, e no art. 32 do ADCT-CF/88. 1 – Ofende o preceito do § 3º do art. 236 da Constituição Federal o disposto no art. 33 da Constituição do Estado do Espírito Santo, que assegura aos substitutos o direito de ascender à titularidade dos serviços notariais e de registro, independentemente de concurso público de provas e títulos, desde que contem cinco anos de exercício nessa condição e na mesma serventia, na data da promulgação da Carta Federal. 2 – Art. 34 da Constituição do Estado do Espírito Santo. Estatização dos Cartórios de Notas e Registro Civil. Faculdade conferida aos atuais titulares. Contrariedade ao art. 236, caput, da Carta Federal, que prescreve serem os serviços notariais e de registro exercidos em caráter privado. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente'' (STF, ADI nº 417, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJe de 8/5/1998).
A seu turno, a eg. Corte Superior deste Tribunal, em 11/6/2003, em julgamento sob a Relatoria do em. Des. Roney Oliveira, aplicou o entendimento do exc. Supremo Tribunal Federal, em caso similiar, no sentido de afastar a aplicação da efetividade conferida pelo art. 66, § 2º, do ADCTE ao oficial substituto detentor de delegação provisória, conforme o acórdão proferido no Mandado de Segurança nº 1.0000.00.316483-7/000.
Portanto, é manifesta a inconstitucionalidade do dispositivo que confere titularidade da delegação ao ocupante interino ou substituto, em direto confronto com a exigência constitucional do concurso público para o provimento.
Na verdade, a constitucionalidade do referido dispositivo da Constituição Estadual fora questionada na ADIN 2961-MG, que perdeu o objeto diante de sua revogação pela Emenda Constitucional nº 69, de 2004.
Assim, a perda do objeto em sede de controle concentrado não inviabiliza o controle de constitucionalidade pela via difusa, pois, embora o dispositivo tenha sido revogado, seus efeitos no período em que vigorou ainda se protraem no tempo, como se verifica nesta ação civil pública.
Por outro lado, os órgãos fracionários estão submetidos à reserva de plenário prevista no art. 97 da CR, que confere ao eg. Órgão Especial, no caso deste Tribunal de Justiça, a competência para proceder ao controle difuso de constitucionalidade.
Na espécie, entretanto, a arguição de inconstitucionalidade do art. 66, § 2º, do ADCT da Constituição Estadual perante o Órgão Especial deve ser considerada irrelevante, por se tratar de matéria já enfrentada pelo exc. Supremo Tribunal Federal, conforme citado alhures.
Em face do exposto, por aplicação do § 3º do art. 515 do CPC/73, julgo procedentes os pedidos para: a) declarar a inconstitucionalidade incidental do art. 66, § 2º, do ADCTE e, por consequência, b) declarar nulo o ato que conferiu efetividade ao requerido Paulo Roberto Lauria no 1º Tabelionato de Notas da Comarca de São Sebastião do Paraíso; c) declarar vaga a serventia para os fins de concurso público; d) determinar ao Estado de Minas Gerais que inclua a serventia em concurso, no prazo máximo de seis meses, a contar da intimação, sob pena de multa diária de R$5.000,00 (cinco mil reais), a ser revertida ao Fundif – Fundo Estadual de Defesa de Direitos Difusos, criado pela Lei Estadual nº 14.086, de 6 de dezembro de 2001; e) determinar a comunicação do teor do julgamento à Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais; f) a manutenção do requerido Paulo Roberto Lauria nas funções do 1º Tabelionato de Notas da Comarca de São Sebastião do Paraíso até a realização do concurso público.
Condeno o requerido Paulo Roberto Lauria ao pagamento das custas. Deixo de condenar o Estado de Minas Gerais por ser o ente instituidor da subjacente obrigação tributária.
DES.ª TERESA CRISTINA DA CUNHA PEIXOTO – Ainda que já me tenha manifestado pela ilegitimidade da Andecc em julgamentos de casos semelhantes, a exemplo da Apelação Cível nº 1.0694.14.003740-9/001, em 22/1/2015, e da Apelação Cível nº 1.0042.13.002701-6/001, em 3/3/2016, curvo-me ao entendimento dominante desta Corte de Justiça, definido no citado IRDR nº 1.0467.13.000559-9-002:
“Processo civil. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Julgamento de mérito. Ação civil pública. Lei nº 7.347/85. Legitimidade ativa da ANDECC. Associação Nacional de Defesa dos Concursos para Cartórios. Para ajuizar ação civil pública objetivando a defesa de interesse difuso e coletivo relativo à realização de concurso público para a concessão de delegação de serviços notarial e de registro. Não aplicação do art. 5º, XXI, CF e do RE Nº 573.232, julgado sob o regime da repercussão geral (TEMA Nº 82). Defesa de direitos transindividuais. Hipótese de legitimação especial e autônoma. Desnecessidade de autorização assemblear. Tese fixada. – A Andecc – Associação Nacional de Defesa dos Concursos para Cartório – tem legitimidade especial e autônoma para ajuizar ação civil pública na defesa do patrimônio público e social consistente na observância dos princípios constitucionais relativos a concurso público para o provimento de vagas nas delegações dos serviços notarial e de registro. – Por se tratar de legitimidade específica para a defesa de interesse difuso da coletividade, não é aplicável a regra contida no art. 5º, XXI, CF e tampouco o julgamento feito pela Suprema Corte, sob o regime da repercussão geral, no âmbito do RE nº 573.232 (Tema 82). – Sob a ótica da Lei nº 7.347/85, não é necessária autorização assemblear ou específica dos associados para o ajuizamento, pela associação civil, de ação civil pública para a tutela de interesse difuso ou coletivo, porquanto faz-se a defesa judicial de direitos transindividuais'' (TJMG, IRDR – Cível nº 1.0467.13.000559-9/002, Rel. Des. Alberto Vilas Boas, Primeira Seção Cível, j. em 14/6/2018, p. em 6/7/2018).
Isto posto, também dou provimento ao recurso para cassar a sentença que extinguiu o processo sem exame de mérito, sem desconsiderar a manifestação da d. Procuradoria-Geral de Justiça, após a conversão dos autos em diligência (f. 378/380), postulando a sua inclusão no polo ativo da ação, "caso se decida pela ilegitimidade da associação" (f. 382/384).
Ato contínuo, com fundamento do art. 515, § 3º, do CPC/1973, que atualmente corresponde ao art. 1.013, § 3º, do CPC/15, rejeito a prejudicial de decadência e julgo procedente o pedido inicial, na esteira do judicioso voto do Relator.
É como voto.
DES. PAULO BALBINO – De acordo com o Relator.
Súmula – DERAM PROVIMENTO AO RECURSO, CASSARAM A SENTENÇA E, NOS TERMOS DO ART. 515, § 3º, DO CPC/1973, JULGARAM PROCEDENTES OS PEDIDOS.
Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG