JURISPRUDÊNCIA MINEIRA
JURISPRUDÊNCIA CÍVEL
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE – DIREITO REAL DE HABITAÇÃO – DIREITO PERSONALÍSSIMO DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE – POSSE DIRETA – INVENTARIANTE
– O direito real de habitação contido no art. 1.831 do Código Civil é personalíssimo do cônjuge sobrevivente, não beneficiando, em tese, os seus herdeiros, mormente se não guardarem nenhum vínculo dominial ou possessório sobre o imóvel destinado à moradia do casal.
– Aberta a sucessão do cônjuge supérstite, os seus herdeiros não podem postular a reintegração na posse do bem que é de propriedade exclusiva do cônjuge que faleceu primeiro.
– Findo o direito real de habitação, com o falecimento do cônjuge sobrevivente, a posse direta do imóvel deve ficar com o inventariante do espólio do titular do bem, pois a ele (inventariante) incumbe zelar pela integridade e bom estado de conservação do acervo hereditário, ao menos até a homologação da partilha (CPC, art. 991).
Apelação Cível nº 1.0461.11.006087-2/001 – Comarca de Ouro Preto – Apelantes: Amélia Ferreira de Magalhães e seu marido, José Ferreira de Magalhães – Apelado: Carlos Eduardo Alves Magalhães – Relator: Des. Marcos Lincoln
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em negar provimento ao recurso.
Belo Horizonte, 17 de fevereiro de 2016. – Marcos Lincoln – Relator.
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
DES. MARCOS LINCOLN – Trata-se de recurso de apelação interposto por Amélia Ferreira de Magalhães e José Ferreira de Magalhães da sentença de f. 188/189-v., proferida nos autos da ação de reintegração de posse movida em desfavor de Carlos Eduardo Alves Magalhães, por meio da qual o MM. Juiz assim decidiu:
“Pelo exposto, julgo improcedentes os pedidos formulados por Amélia Ferreira Magalhães e José Ferreira de Magalhães em face de Carlos Eduardo Alves Magalhães, decidindo o processo com resolução de mérito, nos termos do art. 269, I, do Código de Processo Civil.
Condeno os autores ao pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios, que, nos termos do art. 20, § 4º, do CPC, fixo em R$ 1.000,00 (mil reais), suspensa a cobrança, tendo em vista o deferimento da justiça gratuita'' (f. 83).
Nas razões recursais (f. 193/199), argumentaram que “diante das provas testemunhais trazidas e produzidas nos autos pelos recorrentes e recorridos, não restou dúvida da comprovação da posse exercida por Manoela de Matos Gonçalves, tia da primeira requerente, e sucessivamente da posse exercida por Amélia Ferreira Magalhães''; que “de igual forma a prova documental carreada nos autos do processo comprovam que o esbulho possessório ocorreu há menos de ano e dia''; que, “mesmo que os recorrentes não morem no imóvel, não é motivo para se considerar que o mesmo está abandonado ou que os recorrentes não possuíam a posse do mesmo''.
Contrarrazões às f. 202/206.
É o relatório.
Decido.
Colhe-se dos autos que Amélia Ferreira de Magalhães e José Ferreira de Magalhães, ora apelantes, ajuizaram a presente ação de reintegração de posse em face de Carlos Eduardo Alves Magalhães, ora apelado, alegando, em síntese, que seriam os legítimos possuidores do imóvel situado na Rua João Alves da Silva, nº 20, em Ouro Preto/MG.
Segundo a inicial, a posse do imóvel passou a ser exercida pelos autores/apelantes após o falecimento de Manoela de Matos Gonçalves, tia da primeira autora/apelante, que seria a possuidora originária do bem.
Ocorreu que, em 18.11.2010, “a requerente se viu surpreendida pela troca das fechaduras do referido imóvel pela pessoa do Sr. Carlos Eduardo Alves Magalhães'', o que não poderia prevalecer, haja vista que o réu nunca foi possuidor do imóvel.
Na contestação de f. 93/97, o réu/apelado suscitou preliminar de ilegitimidade ativa e, no mérito, argumentou que é neto-enteado da falecida, sendo seu avô o real proprietário do imóvel, de quem seria herdeiro direto por representação e inventariante do respectivo espólio.
Ao final, concluiu que faria jus à posse do imóvel e pugnou pela improcedência dos pedidos.
Depois de instruído o feito, com a oitiva de cinco testemunhas (f. 167/172-v., 176/177), foi proferida a sentença hostilizada.
Esses são os fatos.
Passo a decidir.
Analisando detidamente as provas produzidas, em especial os documentos que acompanharam a contestação (f. 101/124), conclui-se que José Alves Gonçalves (avô do apelado) adquiriu o imóvel guerreado em 1957 (f.101) e, em 1960, casou-se, em segundas núpcias, sob o regime da separação de bens, com Manoela de Matos Gonçalves (f. 108), que vem a ser a tia da 1ª autora/apelante.
Assim, a propriedade do imóvel é do avô do réu/apelado; e, após a morte dele (proprietário), a posse passou a ser exercida exclusivamente pela viúva, que é tia da 1ª requerente.
Com efeito, tem-se que a posse foi transmitida a título de direito real de habitação, nos termos do art. 1.831 do Código Civil:
“Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar''.
O que se discute na espécie, portanto, é se tal direito incorpora o acervo hereditário do cônjuge supérstite, de maneira a autorizar que os seus herdeiros, que não guardam nenhum vínculo dominial sobre o bem, passem a exercer a sua posse.
A respeito do tema, a jurisprudência tem reconhecido a animosidade que pode surgir com a aplicação de tal norma, ao passo que, falecido o proprietário, os seus filhos podem exercer imediatamente o direito à herança e, de outro lado, o cônjuge ou o companheiro desejar manter o usufruto sobre o bem.
Todavia, citado art. 1.831 vem sendo interpretado no sentido de que, independentemente do regime de bens, o cônjuge supérstite, ou o companheiro, sempre terá direito ao usufruto do imóvel destinado à moradia familiar.
Isso porque o legislador visou a garantir que o cônjuge sobrevivente não fique desamparado/desabrigado com a retomada da posse pelos filhos do de cujus, mantendo, assim, a qualidade e os padrões de vida que ostentava durante a vigência da sociedade conjugal.
Sobre o tema, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery ensinam:
“O sistema protege o cônjuge sobrevivente, garantindo-lhe direito de habitação no único imóvel que compõe a herança e sirva de residência para a família. O que se pretende é evitar que eventual partilha dos bens possa privar o sobrevivente de morar com a mesma dignidade de que desfrutava durante a constância da sociedade conjugal. A tutela legal tem a finalidade de evitar o desamparo do cônjuge supérstite'' (Código Civil comentado. 8. ed., 2011, p. 1.325).
Logo, o direito real de habitação é personalíssimo do cônjuge sobrevivente e, justamente por zelar única e exclusivamente pelo direito à moradia, adquirido na constância do casamento, não se transfere aos seus herdeiros.
Ou seja, falecido o cônjuge sobrevivente que não é herdeiro, a situação do imóvel retorna ao status em que o primeiro faleceu, dando-se cumprimento à respectiva sucessão, na forma em que a lei civil dispuser.
No caso dos autos, a situação fática é bastante clara, pois, embora os autores/apelantes realmente tenham administrado o imóvel durante o usufruto legal de Manoela, ou até mesmo alguns anos após a sua morte, eles não são, ao que tudo indica, herdeiros do titular do bem.
Isso porque, repita-se, o imóvel encontra-se registrado, em tese, no nome de José Alves Gonçalves (avô do apelado), sendo certo que Manoela (tia da 1ª apelante) foi casada com o titular sob o regime da separação de bens.
Não bastasse isso, extrai-se dos autos que o réu/apelado, em princípio, é o inventariante do espólio de José Alves Gonçalves.
E, como se sabe, o inventariante deve administrar o espólio com a mesma diligência que dispensa aos seus bens (CPC, art. 991), ou seja, incumbe-lhe velar pela integridade e bom estado de conservação do acervo hereditário, ao menos até a homologação da partilha.
A propósito, Antônio Carlos Marcato sobre o tema ensina:
“Funções do inventariante: Além da representação legal do espólio, ao inventariante também é atribuída sua administração. Cabe-lhe, nesse mister, (a) praticar todos os atos necessários à defesa e preservação dos bens integrantes do acervo hereditário, com a mesma diligência dispensada aos seus, reivindicando-os em juízo, quando indevidamente em poder de terceiros […]'' (Código de Processo Civil interpretado. 2004, p. 2.488).
Especificamente quanto à posse da herança, a jurisprudência há muito se manifesta no sentido de que, “enquanto não partilhada, a herança é uma universitas iuris, cuja posse direta remanesce, em princípio, em mãos do inventariante, a quem cabe, por força da lei, zelar pelos bens como se fossem seus – CPC, art. 991, II. Assim, ele tem o direito à posse e até um dever de possuir.'' (Ac. da 7ª Câmara do 1º TARJ, AP nº 16.078/84. Rel. Desig. Juiz Paulo Roberto Freitas.)
Assim, não há dúvida de que a posse do imóvel litigioso deve permanecer em mãos do apelado, por este ser o inventariante dos bens deixados pelo seu avô.
É válido ressaltar, finalmente, que as partes discutiram no presente feito apenas a posse do imóvel litigioso, sendo certo que eventual direito sucessório dos autores/apelantes poderá, conforme for o caso, ser decidido em processo autônomo.
Assim, resolvendo a controvérsia recursal, tem-se que os autores não comprovaram a sua posse, nos termos do art. 927 do Código de Processo Civil, não havendo falar em reintegração.
Conclusão.
Ante o exposto, respeitosamente, nega-se provimento ao recurso, mantendo incólume a sentença.
Custas recursais, pelos apelantes.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Alexandre Santiago e Mariza de Melo Porto.
Súmula – RECURSO NÃO PROVIDO.
Fonte: Diário do Judiciário – MG