Jurisprudência mineira – Apelação cível – Ação de usucapião – Imóvel objeto de herança – Transmissão automática da posse e propriedade aos herdeiros

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE USUCAPIÃO – IMÓVEL OBJETO DE HERANÇA – SAISINE – TRANSMISSÃO AUTOMÁTICA DA POSSE E PROPRIEDADE AOS HERDEIROS – AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE POR TERCEIRO CESSIONÁRIO DA POSSE – DESCABIMENTO


– Pelo instituto da saisine (art. 1.784 do CC), é transmitida automaticamente aos sucessores do de cujus não só a propriedade, mas também a posse dos bens por ele deixados.


– O instituto da usucapião não pode ser usado como forma indireta para transmissão a terceiros, da posse e da propriedade de bens imóveis que ainda são objeto de inventário, devendo ser regularizado, primeiramente, o registro do bem em nome dos herdeiros do bem (ou daquele a quem couber o imóvel) e, posteriormente, ao apelante, que adquiriu, de forma onerosa, a posse sobre o bem.


– Mostra-se descabido falar em soma de posse dos antecessores para fins de usucapião (art. 1.243 do CC), em se tratando de bem que ainda é objeto de inventário, não podendo o cessionário de direitos possessórios valer-se da ação de usucapião como meio de regularizar titularização de domínio por via transversa.


Apelação Cível nº 1.0518.12.005299-9/001 – Comarca de Poços de Caldas – Apelante: João Batista dos Santos – Apelados: Sprint Empreendimentos Imobiliários Ltda., Carlos Eduardo Dib Pinheiro e outro, Eduardo Ruzzante Pinheiro, Rodrigo Ruzzante Pinheiro, ausentes, desconhecidos e interessados, Narciso Bernardes de Souza – Relator: Des. João Cancio 


ACÓRDÃO


Vistos etc., acorda, em Turma, a 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em negar provimento ao recurso.


Belo Horizonte, 18 de maio de 2016. – João Cancio – Relator.


NOTAS TAQUIGRÁFICAS


DES. JOÃO CANCIO – Trata-se de apelação cível interposta por João Batista dos Santos contra a r. sentença proferida nos autos da “Ação de Usucapião” por ele ajuizada, que julgou extinto o processo, sem julgamento do mérito, por ausência de condições da ação, nos termos do art. 267, VI, do CPC.


Em suas razões (f. 244/248), o recorrente alega que a posse sobre o imóvel nunca foi exercida em conjunto por todos os herdeiros, mas sim, única e exclusivamente, pelo herdeiro Carlos Henrique Neto, desde o ano 2000.


Argumenta que os impostos inerentes aos inventários foram devidamente quitados e afirma existirem provas nos autos de que a posse com animus domini ao longo dos anos foi sempre exercida por um dos herdeiros do imóvel, “sem qualquer contraprestação aos demais herdeiros”, pugnando pela cassação da sentença para que seja determinada nova audiência para a comprovação de suas alegações ou pela procedência do seu pedido. 


Recurso recebido em ambos os efeitos (f. 251).


Sem contrarrazões.


É o relatório.


Passo a decidir.


Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.


Pela presente ação, pretende o autor seja reconhecido seu direito de propriedade sobre os imóveis situados na Rua Piauí, nº 604 (antigos números 61 e 63), na cidade de Poços de Caldas/MG, com área total aproximada de 186,82m2 , que confronta pelo lado esquerdo com o prédio nº 616, de propriedade de Carlos Eduardo Dib Pinheiro e seus filhos Eduardo Ruzzante Pinheiro e Rodrigo Ruzzante Pinheiro; pelo do lado direito, com o prédio nº 598, o Residencial Souza, de propriedade de Narciso Bernardes de Souza e outros; e pelos fundos, com o prédio nº 383 da Rua Assis Figueiredo, de propriedade de Sprint Empreendimentos Imobiliários Ltda., ou quem de direito.


Afirmou o autor ter adquirido, por contrato de cessão, os direitos possessórios sobre os referidos imóveis, tendo os cedentes exercido a posse em decorrência de direitos hereditários de Cláudio Henrique e Brandina Borges Henrique, falecidos em 06.09.84 e 02.02.66, cujos inventários ainda não foram finalizados, encontrando-se o imóvel registrado ainda em nome do Sr. Cláudio Henrique.


Alegou que, desde outubro/11, passou a exercer os direitos possessórios sobre o bem, de forma mansa, pacífica e por justo título, utilizando os mesmos como se fosse dono, assumindo todos os encargos a ele inerentes.


A d. Sentenciante, entretanto, entendendo pela impossibilidade de utilização da ação de usucapião como substitutivo do procedimento de regularização sucessória do imóvel, julgou extinto o processo, sem julgamento do mérito, por ausência de condições da ação, nos termos do art. 267, VI, do CPC, condenando o autor ao pagamento das custas processuais.


Inconformado, o autor recorre, nos termos já relatados.


Eis os contornos da lide.


Inicialmente, faço consignar que, apesar de o novo Código de Processo Civil/2015 já estar em vigor na data do julgamento, serão observadas as regras processuais também da codificação revogada (CPC/1973), para preservação dos atos já praticados, nos termos do art. 14 do novo Codex, in verbis:


“Art. 14. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”.


Compulsando os autos, vejo que a sentença primeira não merece reparos.


Segundo a doutrina majoritária, a usucapião é forma originária de aquisição da propriedade, ou seja, presume-se que a coisa não tinha dono ou detentor. Considera-se também como forma de aquisição derivada quando fundamentada na negligência ou inércia do proprietário, conforme ensina Benedito Silvério Ribeiro:


“[…] o modo de adquirir é originário quando o domínio adquirido começa a existir com o ato, que diretamente resulta, sem relação de casualidade com o estado jurídico de coisa anterior. A classe dos modos originários compreende a ocupação, a acessão natural ou mista e a prescrição aquisitiva. A segunda forma de aquisição da propriedade se diz derivada e ocorre quando o adquirente sucede o proprietário no seu precedente direito. É o caso da especificação, da confusão, da comistão, da tradição e, enfim, de toda e qualquer transmissão. Há um inteiro relacionamento entre o domínio atual e o anterior, isto é, entre o sucessor e o antecessor. […] aqueles que dizem ser derivado apoiam-se na negligência ou prolongada inércia do proprietário com o non usus da coisa, bem como no fundamento de que não surge um direito novo, permanecendo o do antigo dono até o reconhecimento pela usucapião” (Tratado de usucapião. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 170).


Pretende o autor seja reconhecido o direito de adquirir por usucapião a propriedade sobre imóvel, alegando que a posse de mais de 20 anos sobre o bem lhe teria sido transmitida no “Contrato de Cessão de Direitos Possessórios” de f. 147/151.


Entretanto, segundo afirma o próprio autor, o imóvel objeto da presente ação está registrado em nome de Cláudio Henrique e sua esposa Brandina Borges Henrique – falecidos em 06.09.1984 e 02.02.1966, respectivamente -, que o teriam deixado como herança a seus 4 (quatro) filhos, José Henrique, Mons. Carlos Henrique, João Milton Henrique e Paulo Henrique, conforme se vê das certidões de f. 144/145 e do documento de f. 17/18, sendo que alguns destes também já faleceram.


Conforme cediço, os herdeiros são investidos automaticamente na posse e adquirem a propriedade dos bens deixados pelo simples fato da morte dos autores das heranças (princípio da saisine).


No caso, considerando-se que os cedentes do contrato de f. 147/151 são os herdeiros (filhos e netos) dos proprietários originários, decerto que sua posse sobre o imóvel em questão decorreu da sucessão hereditária, não podendo ser transmitida a terceiro para fins de aquisição do domínio por usucapião.


Verifica-se que o bem se encontra arrolado nos inventários abertos para a partilha do patrimônio deixado pelos proprietários, procedimentos estes que ainda não foram finalizados, havendo informação, inclusive, de que houve pedido de alvará para alienação do imóvel, nos autos do inventário de Brandina Borges Henrique (f. 133/134).


Se a posse e a propriedade já foram transmitidas aos herdeiros, mas ainda não foram encerrados os inventários nos quais o bem foi arrolado, não há falar em pretensão de aquisição originária da propriedade por terceiro, cessionário da posse. 


Tem-se que o instituto da usucapião não pode ser usado como forma indireta para transmissão a terceiros, da posse e da propriedade de bens imóveis que ainda são objeto de inventário.


Há que se regularizar primeiramente o registro do bem em nome dos herdeiros do bem (ou daquele a quem couber o imóvel) e, posteriormente, ao apelante, que adquiriu, de forma onerosa, a posse sobre o bem.


É certo que a continuidade registral somente será possível após a finalização dos inventários, a fim de apurar possíveis dívidas a serem suportadas pelos espólios, para então haver a transmissão do bem para quem couber e, em seguida, para o apelante, ou diretamente para este mediante carta de adjudicação.


Tem-se que o autor, cessionário, possui crédito contra os espólios dos proprietários originários do bem, a ser habilitado, e não mais que isso – ainda que já exerça efetiva posse sobre o mesmo, devendo ser observado, ainda, o disposto no art. 31 da Lei nº 6.830/80.


Destarte, in casu, mostra-se descabido falar em soma de posse dos antecessores para fins de usucapião (art. 1.243 do CC), em se tratando de bem que ainda é objeto de inventário, não podendo o cessionário de direitos possessórios valer-se da ação de usucapião como meio de regularizar titularização de domínio por via transversa.


Sobre o tema, já se manifestou este eg. Tribunal de Justiça:


“Apelação cível. Usucapião extraordinário. Aquisição do bem a título oneroso. Imóvel registrado em nome de pessoa falecida há menos de dois anos. Contrato de 'compra e venda' celebrado com os herdeiros do proprietário. Indivisibilidade da herança. Validade como cessão de direitos hereditários sobre o imóvel. 1 – Não há de se falar em usucapião, se aquele que pretende usucapir o bem o adquiriu dos herdeiros do antigo proprietário, em título a ser habilitado em inventário. 2 – O registro decorrerá da obediência à continuidade registral, primeiro a quem couber o bem após o inventário e após ao adquirente, ou de carta de adjudicação, com alienação antecipada, quitados os tributos e dívidas do espólio. 3 – Apelo improvido” (1.0303.08.008566-3/001, Rel. Des. José Marcos Vieira, 12.02.2010).


“Cessão de direitos hereditários. Usucapião. Substituição. Inventário e partilha. Inadequação. – Tendo em consideração a comunhão de direitos existente entre os herdeiros do falecido, não se mostra a ação de usucapião como meio adequado para que o cessionário de direitos hereditários pleiteie seja declarada sua titularidade em relação à parte do imóvel que compõe o monte-mor” (1.0624.07.013910-7/001, Rel.ª Des.ª Selma Marques, 06.04.2009).


Por fim, cabe consignar que, para que tenha validade, a “cessão de direitos hereditários” deve ser feita por instrumento público, já que, nos termos do art. 80, II, do Código Civil, está-se falando em ato translativo de direito imobiliário. 


Conclusão. 

 

Diante do exposto, nego provimento ao recurso, mantendo, in totum, a sentença primeira. 


Custas recursais, pelo apelante.


É como voto.


Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Sérgio André da Fonseca Xavier e Mota e Silva.


Súmula – NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.

 

 

Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG