APELAÇÃO CÍVEL – ALTERAÇÃO DE REGISTRO CIVIL – TRANSEXUALIDADE – ALTERAÇÃO DO NOME – POSSIBILIDADE – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO NÃO PROVIDO
– Em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana se mantém a decisão judicial que reconheceu o direito do transexual à mudança do nome, já que vive social e publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui o prenome feminino.
– Observadas as circunstâncias do caso, em que o nome de registro masculino está dissonante com a identidade social, podendo levar o usuário a situação vexatória ou de ridículo, justifica-se a alteração deferida na sentença.
– Recurso não provido.
Apelação Cível nº 1.0702.15.039065-7/001 – Comarca de Uberlândia – Apelante: Ministério Público do Estado de Minas Gerais – Apelado: M.A.A. – Relatora: Des.ª Hilda Teixeira da Costa
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em rejeitar a preliminar suscitada de ofício pelo Segundo Vogal por maioria e no mérito negar provimento ao recurso de apelação.
Belo Horizonte, 20 de setembro de 2016. – Hilda Teixeira da Costa – Relatora.
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
DES.ª HILDA TEIXEIRA DA COSTA – Trata-se de recurso de apelação interposto pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais em face da r. sentença de f. 84-87, prolatada nos autos da ação de alteração de registro civil, ajuizada por M.A.A., que julgou parcialmente procedente os pedidos iniciais para deferir apenas a alteração do nome do autor em seu assento de nascimento, determinando a expedição do competente mandado ao Sr. Oficial do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais de Regente Feijó-SP, para que proceda a alteração, junto ao assento de nascimento da parte autora, de seu prenome, fazendo-se substituir M.A.A. por Mi.A.A. Ainda, ressaltou que à margem do registro da alteração no assento de nascimento do ora demandante, deve ser averbado que tal modificação se deu em cumprimento a provimento jurisdicional proferido em ação de retificação de registro civil, sem menção à razão ou ao conteúdo da alteração procedida, resguardando-se, assim, a publicidade, a segurança e a veracidade dos registros, bem como a intimidade do interessado. Contudo, nos documentos de identidade e nas certidões de registro público, não pode constar qualquer informação sobre a alteração do prenome decorrente de decisão judicial, pois, caso contrário, a parte autora permaneceria exposta a situações discriminatórias e constrangedoras, retirando a efetividade da retificação promovida. E, por fim, determinou as custas pela parte autora, ficando suspensa a cobrança, na forma do art. 12 da Lei nº 1.060/50.
O Ministério Público do Estado de Minas Gerais alega, em suas razões recursais de f. 90-92v, que a pretensão inicial deduzida pelo apelado consiste em projetar sua apresentação social (feminina), mediante comprovação de sua transexualidade, na retificação de seu registro civil, para que conste seu nome social "Mi".
Aduz que as informações constantes do registro de nascimento não pertencem apenas ao registrado, mas também a sua família e à sociedade, de modo que tais informações devem obedecer aos princípios da imutabilidade e da segurança.
Afirma que só é possível a alteração do nome em situações excepcionais, previstas expressamente na Lei nº 6.015/73, e que a pretensão do apelado não se enquadra nas hipóteses legais.
Argumenta que a situação não é de retificação do registro, uma vez que não há erro, já que os dados nele contidos condizem com a realidade da época em que foi lavrado, sendo certo que as certidões devem corresponder à realidade do momento em que o assente é lavrado.
Salienta que a legislação pátria ainda é omissa quanto à alteração do registro civil em razão da transexualidade, e que o gênero da pessoa é um aspecto biológico, identificado por ato médico, e o registro de nascimento deve, pois, espelhar esta verdade, sobretudo nos casos em que não houve cirurgia para alteração do sexo.
Ao final, defende a improcedência do pedido de retificação do nome e requer o provimento do recurso, para reformar a r. sentença, a fim de que sejam julgados improcedentes os pedidos iniciais.
Intimado, o apelado apresentou suas contrarrazões às f. 96-110, esclarecendo que o apelado é transexual, desde a sua infância se identifica como mulher e possui o desejo de viver e ser aceito como uma pessoa do gênero feminino. Para tanto, realizou diversos tratamentos médicos e cirurgias para mudanças físicas. Além disso, tem realizado tratamento psicológico há anos e foi diagnosticado com Transtorno de Identidade de Gênero – Disforia de Gênero, de acordo com o laudo médico juntado nos autos.
Salienta que não há vedação legal em relação aos pedidos formulados nos autos, e que a Lei n. 6.015/73 permite a alteração do nome por força de decisão judicial em pedido motivado, justamente para deixar evidente que o rol não é taxativo e que se faz necessária análise do caso concreto, principalmente para evitar injustiças e sofrimentos perpétuos.
Destaca que o nome não é mais considerado imutável e nem pertencente à família, e que o art. 58 da Lei n. 6.015/73 sofreu alteração com o advento da Lei n. 9.708/1998, deixando de prever como imutável, para afirmar que o prenome é definitivo, mas que a sua substituição é admitida.
Afirma que os princípios da continuidade e definitividade são mitigados diante de situações excepcionais que exponham a pessoa ao ridículo, por meio da manifestação de vontade do titular no primeiro ano seguinte ao da maioridade civil, nos casos de testemunha de crime, em decorrência de adoção ou casamento e nos casos de substituição do prenome por apelido notório.
Sustenta que, diante do conflito dos princípios da continuidade dos registros públicos e da dignidade da pessoa humana, este último deve prevalecer.
Elucida que o apelado é exposto ao ridículo e é vítima de agressões na grande maioria das vezes que precisa utilizar-se de seus documentos pessoais, já que fisicamente e psicologicamente é uma mulher. Enfatiza que é publicamente conhecido em seu meio social pelo nome que pretende adotar, sendo identificado por todas as pessoas com quem convive como "Mi", seja no ambiente familiar, no trabalho, nos momentos de lazer, por seus amigos e conhecidos. Logo, trata-se de um apelido notório. Defende que resta caracterizada a situação excepcional suficiente a justificar o pedido do apelado de alteração do prenome. E que a falta de regulação específica sobre a transexualidade não pode torná-la ignorada pela justiça, já que muitas pessoas se encontram nessa situação e precisam da tutela do Estado para garantir o seu bem-estar, a sua identidade e a adoção de medidas que permitam a expressão de sua personalidade.
Destaca que a sociedade, também, entende a necessidade de se modificar o nome do cidadão em caso de transtorno de gênero, e que muitos órgãos e instituições têm permitido o uso de nomes sociais, a fim de evitar constrangimentos. Acresce que o apelado pôde inserir o nome Mi.A.A. em alguns documentos, como fez em seu cartão do Sistema Único de Saúde e em sua conta no banco Itaú.
Informa que foram juntadas aos autos todas as provas de que o recorrido nunca se envolveu na prática de delitos de qualquer natureza, bem como se encontra em situação regularizada perante os órgãos púbicos, comprovando a boa-fé e a veracidade dos fatos e razões expostas.
Ao final, alega a possibilidade de reexame de toda a matéria suscitada no processo e requer a reforma da sentença para permitir além da alteração do prenome "M." para "Mi", seja concedido ao apelado o direito de modificar o gênero em seu registro de "masculino" para "feminino". E pugna pelo não provimento do recurso de apelação.
A douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer de f. 116-117, manifestou-se pela manutenção da sentença e desprovimento do recurso de apelação.
É o relatório.
DES. MARCELO RODRIGUES – Peço vênia à eminente relatora para suscitar, de ofício, questão preliminar, diante da ausência de protocolização do recurso.
Como sabido, antes de se adentrar ao exame da irresignação veiculada no recurso, compete ao órgão jurisdicional analisar os requisitos de admissibilidade.
Compulsando cuidadosamente os autos, constata-se que o Ministério Público interpõe recurso sem registrá-lo no protocolo, encartando-o diretamente nos autos (f. 90).
É certo que Ministério Público possui privilégios como a intimação pessoal e a contagem do prazo em dobro, todavia, além das prerrogativas previstas em lei, não pode ser dispensado ao referido órgão qualquer tratamento processual diferenciado, sob pena de violar os princípios da isonomia e segurança jurídica.
O raciocínio percorrido alinha-se à jurisprudência dominante deste Tribunal de Justiça:
“Agravo interno. Apelação. Ausência de protocolo de interposição. Mera juntada aos autos pelo órgão ministerial. Falta de pressuposto de regularidade formal. Negativa de seguimento. Decisão mantida. Agravo desprovido. – Embora a lei permita aos membros do Ministério Público a juntada de manifestações aos autos, independentemente de protocolo, mediante recibo da respectiva secretaria, tal prerrogativa não pode ser estendida à interposição recursal, porquanto, ato postulatório que é, deve revestir-se dos requisitos formais específicos previstos em lei (art. 506, parágrafo único, CPC), não podendo ser dito simples manifestação. A se admitir o recurso irregularmente interposto pelo Parquet, ter-se-ão comprometidos os princípios da publicidade dos atos processuais – que viabiliza à parte contrária o direito de fiscalizar, por meio idôneo, o regular andamento do processo – e da igualdade de tratamento das partes. Recurso desprovido” (Agravo interno nº 1.0153.10.000416-4/002, Relator Des. Eduardo Andrade – j. em 11.06.2013).
Não se olvida que o rigorismo formal deve ser afastado em benefício do direito da parte; entretanto, algumas formalidades devem ser respeitadas para garantir a segurança jurídica dos feitos submetidos ao Poder Judiciário.
Dentre essas formalidades encontra-se o protocolo, que, em meio a outras utilidades, informa a tempestividade da peça recursal. Não se desconhece, ainda, que, aberta vista ao Ministério Público em 10.12.2015, o promotor manifestou-se por cota nos autos, afirmando seguir "parecer em separado" (f. 89).
Todavia, ao apelante incumbia a realização do protocolo do recurso ora interposto, não podendo fazê-lo mediante simples manifestação por cota nos autos.
Mediante tais fundamentos, diante de um juízo de admissibilidade negativo, não conheço do recurso por ausência de regularidade formal, pressuposto extrínseco.
DES.ª HILDA TEIXEIRA DA COSTA – No que se refere à preliminar de não conhecimento do recurso, suscitada de ofício pelo eminente 2º Vogal, Des. Marcelo Rodrigues, diante da ausência de protocolização do recurso, peço vênia para rejeitá-la.
Conforme se verifica às f. 89, foi concedida vista para o ilustre Representante do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, em 10.12.2015, tendo o douto Promotor de Justiça firmado em próprio punho que seguia a juntada do recurso, em 11.12.2015, sendo esta a mesma data que os autos foram conclusos ao MM. Juiz primevo, conforme consta à f. 93.
Logo, infere-se pela tempestividade do apelo interposto, de modo que a falta de protocolo da peça recursal não resultou em qualquer prejuízo às partes litigantes, sendo a exigência dessa medida, excesso de formalismo, que a efetividade do direito buscada pelos princípios da instrumentalidade e da celeridade visam impedir.
Isto posto, rejeito a preliminar aduzida de ofício.
DES. AFRÂNIO VILELA – Rejeito a preliminar de não conhecimento do recurso.
Suspenderam o julgamento para colher os votos dos vogais na forma do art. 942 do CPC.
Sessão de 20 de setembro de 2016.
DES. RAIMUNDO MESSIAS JÚNIOR – Peço vênia à Eminente Relatora para acompanhar a divergência instaurada pelo Des. Marcelo Rodrigues e não conhecer do recurso por ausência de regularidade formal, pressuposto extrínseco.
É como voto.
DES. CAETANO LEVI LOPES – De acordo com o Relator.
Mérito.
DES.ª HILDA TEIXEIRA DA COSTA – Conheço do recurso de apelação interposto, pois presentes os pressupostos de admissibilidade.
O apelante se insurge contra o deferimento parcial do pedido inicial que permitiu a alteração do nome do autor em seu assento de nascimento.
Observa-se dos autos que a parte requerente, nascida em 1987, afirma, na inicial, ser transexual, e, desde a sua infância, se identifica como uma mulher e possui o desejo de viver e ser aceito como uma pessoa do gênero feminino, tendo realizado diversos tratamentos médicos e cirurgias para mudanças físicas.
A parte autora realizou cirurgias (f. 22-27); juntou cópia de documentos em que é identificada pelo nome feminino, como o cartão municipal de saúde e o cartão do banco (f. 28); anexou foto recente em que comprova sua forma física feminina (f. 29); juntou laudo psicológico em que atesta que a parte autora apresenta "Transtorno de Identidade de Gênero: Disforia de Gênero" (f. 79- 81). Anexou, também, certidão negativa de débitos relativos aos tributos federais e a dívida ativa da união, certidão negativa de débitos tributários estaduais, certidão de distribuição para fins gerais de processos cíveis e criminais contendo nada consta (f. 30-33).
Nessas circunstâncias, tendo em vista que a parte autora se identifica com o sexo feminino sob o ponto de vista psíquico e assim se identifica e se comporta socialmente como mulher, não há razão para ser modificada a sentença que deferiu a alteração do nome da parte autora no seu assento de nascimento, em face do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que, no dizer de Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, editora Atlas, 2007, p. 16:
"[…] é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos".
Cabe considerar que a identidade psicossocial prepondera sobre a identidade biológica, sendo possível a alteração do prenome em razão da forma como o indivíduo se vê e sente, assim como é visto socialmente, de modo que se revela desarrazoada e humilhante a manutenção do nome no registro civil de seu nascimento, relativo ao gênero que não corresponde à sua identidade, uma vez que apresenta nome masculino, mas se vê e se sente como feminino, para os atos da vida civil.
Nestes termos, observadas as circunstâncias do caso, em que o nome de registro masculino está dissonante com a identidade social, podendo levar o usuário a situação vexatória ou de ridículo, justifica-se a alteração deferida na sentença.
Embora o apelante ressalte que a legislação pátria ainda é omissa quanto à alteração do registro civil em razão da transexualidade, conforme citado na r. sentença, o colendo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp nº 1008398/SP, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, j. em 15.10.2009, DJe de 18.11.2009, entendeu pela possibilidade de alteração do prenome, assim como do designativo de sexo, em favor de transexual que havia se submetido à cirurgia de transgenitalismo.
Na hipótese, a parte autora não passou por tal procedimento, porém, como já dito, se identifica psicologicamente e socialmente com o sexo feminino.
E, como bem observado pelo douto Juiz a quo, a alteração do prenome do transexual é abrangida pela hipótese legal de substituição do prenome pelo apelido público e notório, visto que a pessoa se apresenta na sociedade através de seu nome social adequado à sua identidade psicossocial.
Neste sentido, seguem jurisprudências deste eg. Tribunal:
"Alteração de registro civil. Transexual. Redesignação do gênero no registro civil. Inexistência no ordenamento jurídico de uma previsão que torne o pedido inviável. Art. 1º, III, art. 3º, IV e art. 5º, X, da CF/88. Princípios da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade da intimidade. Anotação. Princípio da veracidade. Ressalva de direitos de terceiros. – Se não existe no ordenamento jurídico qualquer vedação à alteração de registro de pessoa transexual, não há que se falar em impossibilidade jurídica do pedido, que é encontrada nos princípios e valores que a Constituição da República sobreleva. Seguindo-se os preceitos constitucionais, a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio fundamental da República Federativa do Brasil, constitui diretriz que deve nortear a alteração de registro civil de transexual. A Carta Magna objetiva em seu art. 3° promover o bem de todos sem qualquer preconceito de sexo e salienta no inc. X de seu art. 5° ser inviolável a intimidade, a honra e a vida privada de uma pessoa. Deve-se, desta forma, adaptar a designação sexual e o prenome à nova situação do cidadão. – O princípio da veracidade que norteia o registro público impõe que seja feita a anotação à sua margem de que se trata de averbação feita por ordem judicial (Apelação Cível nº 1.0145.06.340514-9/001, Rel.ª Des.ª Vanessa Verdolim Hudson Andrade, j. em 05.08.2014, publicação da súmula em 13.08.2014).
"Retificação de registro. Alteração do nome e do sexo. Transexualismo. Indivíduo que se sente e aparenta ser do sexo feminino. Tratamento hormonal. Respeito à integridade moral e à dignidade humana. Situação excepcional que autoriza a retificação. Modificação que se recomenda a fim de evitar constrangimento público. Exclusão de patronímico em prejuízo da identificação familiar. Impossibilidade. Pedido julgado improcedente. Recurso provido em parte. 1 – O princípio da imutabilidade do registro conta com exceções que facultam ao interessado a correspondente retificação desde que devidamente motivada a pretensão. 2 – Manifestado o distúrbio conhecido como transexualismo, já tendo sido alcançada pelo indivíduo a aparência de mulher, assim conhecido no meio social, em respeito à integridade moral e à luz do mandamento constitucional da dignidade humana, revela-se possível a alteração do prenome constante do registro civil, adequando-se à realidade dos fatos. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. 3 – Se o interessado não se submeteu à intervenção cirúrgica de mudança de sexo, não se pode autorizar a alteração no registro civil neste particular, porque há riscos da segurança registrária em relação a terceiros. 4 – A retificação do nome autorizada pela Lei de Registros Públicos não permite a exclusão de patronímico que não causa constrangimento ao indivíduo, em prejuízo da correspondente identificação familiar, podendo, nessa circunstância, ser alterado apenas o prenome" (Apelação Cível nº 1.0232.10.002611-0/001, Rel.ª Des.ª Sandra Fonseca, j. em 18.09.2012, publicação da súmula em 28.09.2012).
Diante de tais considerações, a decisão primeva não merece reforma.
No tocante à alegação do apelado de possibilidade de reexame de toda a matéria suscitada no processo, ressalta-se que o caput do art. 515 do CPC/73 é expresso em estabelecer que a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada; no caso, o recurso de apelação do Ministério Público se insurge contra o deferimento parcial do pedido inicial que permitiu a alteração do nome do autor em seu assento de nascimento.
Dessa forma, não há como conhecer do pedido do apelado, feito em contrarrazões, de reforma da sentença para permitir, além da alteração do prenome "M" para "Mi", seja concedido ao apelado o direito de modificar o gênero em seu registro de "masculino" para "feminino", pois, se o autor sucumbiu parcialmente quanto a tal pleito inicial, incumbiria a ele a interposição do recurso próprio, no momento oportuno, contra tal parte da r. sentença, o que não fez. Logo, não conheço do referido pedido feito em contrarrazões, por não ter sido aduzido através do meio processualmente adequado.
Em face do exposto, rejeito a preliminar suscitada de ofício pelo 2º Vogal e nego provimento ao recurso de apelação interposto.
DES. AFRÂNIO VILELA – No mérito, peço vênia à eminente relatora para secundar os valiosos fundamentos expendidos por S. Ex.ª.
DES. MARCELO RODRIGUES – Vencido quanto à preliminar, posto-me de acordo com o voto da il. Relatora no que se refere ao mérito.
Em regra, de acordo com a antiga redação do art. 58 da Lei 6.015, de 1973, era o prenome considerado imutável, mas, por construção doutrinária e jurisprudencial, tal imutabilidade, que já era relativa, de acordo com as exceções previstas na própria lei, foi ainda mais abrandada.
Na verdade, jamais o princípio da imutabilidade do prenome foi entendido num sentido absoluto, admitindo-se a alteração e modificação do prenome por interpretação humana e social dos dispositivos legais.
Desde a edição da Lei 9.708, de 18.11.1998, que tratou de modificar a redação do art. 58 e seu parágrafo único da Lei 6.015, permite-se expressamente a substituição do prenome por apelidos públicos notórios.
Assim, o prenome deixou de ser imutável para tornar-se definitivo, vedando-se ainda, de acordo com a nova redação do parágrafo único, "a adoção de apelidos proibidos em Lei", o que permite concluir que não será admitida a substituição ou alteração do prenome por apelido suscetível de expor ao ridículo seu portador.
A propósito, sobre a imutabilidade do prenome, em obra de minha autoria:
“Essa imutabilidade sempre foi relativa. Na verdade, imutável é o prenome que foi posto em uso, ainda que não conste do registro, e não o constante do assentamento e jamais usado (RT 433:232).
O prenome é retrato sônico e vale da forma pela qual o indivíduo é conhecido no meio social. ‘A lei não fabrica o fato social, antes o reconhece e o disciplina, ordenando-o a um fim superior. Não é o registro que nos dá o nome’ (SÃO PAULO, 1951). Existindo desencontro entre o registro e a vida, o que não raro acontece, e desde que não se vislumbre fraude – que não pode ser presumida -, que prevaleça a vida” (RODRIGUES, Marcelo Guimarães. Tratado de registros públicos e direito notarial. São Paulo: Atlas, 2014, p. 71).
No caso especialíssimo dos autos, verifica-se que o autor é transexual e pretende alterar seu prenome "M." para "Mi", adequando sua documentação à realidade sexual vivenciada, qual seja a de ser uma mulher.
O nome das pessoas, enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar assume fundamental importância individual e social. Paralelamente a essa conotação pública, não se pode olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem eminentemente pessoal, na qualidade de direito personalíssimo que é, constituindo um atributo da personalidade.
Os direitos fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, por sua vez, atua como sendo uma qualidade inerente, indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo.
Portanto, fechar os olhos para a peculiar situação vivenciada pelo recorrido, implicaria infração ao princípio da dignidade da pessoa humana, norma esculpida no inciso III do art. 1º da Constituição da República.
À luz dessas considerações, nego provimento ao recurso.
DES. RAIMUNDO MESSIAS JÚNIOR – Acompanho a Relatora quanto ao mérito.
É como voto.
DES. CAETANO LEVI LOPES – De acordo com a Relatora.
Súmula – REJEITARAM A PRELIMINAR SUSCITADA DE OFÍCIO PELO SEGUNDO VOGAL POR MAIORIA E, NO MÉRITO, NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO DE APELAÇÃO.
Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG