Jurisprudência mineira – Apelação cível – Empréstimo em dinheiro – Imóvel dado em garantia – Pacto comissório – Vedação

APELAÇÃO CÍVEL – EMPRÉSTIMO EM DINHEIRO – IMÓVEL DADO EM GARANTIA – PACTO COMISSÓRIO – VEDAÇÃO – NULIDADE DA ESCRITURA DE COMPRA E VENDA – VÍCIO NA CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO

 

– Reputa-se nula a escritura de compra e venda de imóvel firmado para garantir o pagamento de empréstimo, por revestir aspecto de pacto comissório, vedado no ordenamento jurídico vigente.


Apelação Cível nº 1.0105.03.078631-0/001 – Comarca de Governador Valadares – Autores: Gildo Leite de Rezende e sua mulher e outros – Apelantes: Severino Vilela de Azevedo e sua mulher, Maria Alice Alves da Silva Azevedo, Maria Davina Resende da Silva – Apelados: Zeni Pereira da Silva, Edis Lopes da Silva e sua mulher – Interessado: José Carlos de Oliveira – Relator: Des. Marco Aurelio Ferenzini


ACÓRDÃO


Vistos etc., acorda, em Turma, a 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em negar provimento ao recurso.


Belo Horizonte, 4 de agosto de 2016. – Marco Aurelio Ferenzini – Relator.


NOTAS TAQUIGRÁFICAS


DES. MARCO AURELIO FERENZINI – Trata-se de recurso de apelação interposto por Gildo Leite Resende, Maria Davina Resende da Silva, Severino Vilela de Azevedo e Mara Alice Alves da Silva contra a sentença de f. 352/356, proferida nos autos da ação ordinária ajuizada por Edis Lopes Pereira da Silva e Zeni Pereira da Silva, na qual o Juízo de origem julgou procedente o pedido inicial para declarar nulo o negócio jurídico firmado pelos autores, representados por José Carlos de Oliveira, e os réus, estes representados por Severino Vilela de Azevedo, bem como a procuração de f. 12/13, tendo em vista o dolo como vício de consentimento. Os réus foram condenados ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, estes fixados em 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa.


Os réus, ora apelantes, às f. 358/363, aduzem que a celebração do negócio jurídico de compra e venda do imóvel foi lícita, com base nos poderes outorgados pelos apelados a José Carlos de Oliveira, a qual lhe conferia poderes especiais para alienação de imóvel. Aduzem que não houve revogação dos poderes, havendo verdadeiro conluio entre os outorgantes e outorgado com o fim de anular o negócio jurídico validamente firmado. Tecem considerações acerca da extinção do mandato. Sustentam que não restou comprovado qualquer vício de consentimento de forma a ocasionar a nulidade do negócio jurídico. Defendem que não houve produção de provas testemunhais aptas a invalidar o negócio, sendo baseadas apenas em declaração das partes.


Contrarrazões apresentadas às f. 371/373, nas quais os autores, ora apelados, pugnam pelo desprovimento do recurso.


É o relatório.


Juízo de admissibilidade.


Sentença publicada no dia 26.08.2015 (f. 357), apelação protocolizada no dia 27.08.2015 (f. 358), acompanhada do preparo (f. 363-v.). Conheço do recurso por presentes os pressupostos para sua admissibilidade. 


Mérito.


Os autores, ora apelados, aduzem na inicial que, em setembro de 1998, diante de dificuldades financeiras, procuraram o réu, José Carlos de Oliveira, e obtiveram empréstimo da quantia de R$15.000,00 (quinze mil reais), a juros de 6% (seis por cento) ao mês, sendo-lhes exigida como garantia da dívida a escritura do imóvel no qual residem, com a outorga de procuração com poderes especiais ao citado réu para alienação do referido imóvel. Sustentam que o imóvel fora dado apenas como garantia de pagamento da dívida, não havendo interesse na alienação. Alegam que, apesar da quitação da dívida, o réu José Carlos já havia efetuado a venda para o réu Gildo Leite Rezende, representado por Severino Vilela de Azevedo.


Sobreveio sentença, sendo que julgou procedente o pedido inicial para declarar a nulidade do negócio jurídico de alienação do imóvel firmado pelos autores, representados por José Carlos de Oliveira e Gildo Leite Rezende, este representado por Severino Vilela de Azevedo, bem como a procuração de f. 12/13, tendo em vista o dolo como vício de consentimento, sob o fundamento de que não restou configurada a intenção dos autores na transferência do imóvel para o réu Gildo Leite Rezende, visto que o referido imóvel foi dado apenas como garantia de empréstimo contraído com José Carlos de Oliveira, tendo o empréstimo sido quitado em março e abril de 1999.


Irresignados, os réus, apresentaram recurso, aduzindo que a celebração do negócio jurídico de compra e venda do imóvel foi lícita, com base na procuração outorgada pelos apelados a José Carlos de Oliveira, a qual lhe conferia poderes especiais para alienação de imóvel. Aduzem que não houve revogação dos poderes, havendo verdadeiro conluio entre os outorgantes e outorgado com o fim de anular o negócio jurídico validamente firmado, sustentando, ainda, que não restou comprovado qualquer vício de consentimento de forma a ocasionar a nulidade do negócio jurídico.


Extrai-se dos autos que, em 17.09.1998, os autores outorgaram ao réu José Carlos de Oliveira mandato com poderes especiais para alienação do imóvel ali descrito (f. 12/13). Ainda, na mesma data, ou seja, em 17.09.1998, o réu José Carlos procedeu à lavratura de escritura de compra e venda do referido imóvel ao réu Gildo Leite de Rezende, estando este representado pelo réu Severino Vilela de Azevedo (f. 20) pelo preço de R$15.000,00 (quinze mil reais).


Evidencia-se, de tais documentos, que os negócios firmados se deram de forma sequencial, ou seja, após a outorga da procuração, de imediato, fora efetuada a alienação do imóvel, pelo mesmo preço que a parte autora afirma que efetuou o empréstimo, ou seja, por R$15.000,00 (quinze mil reais), por preço inferior ao de mercado, tal como consta da avaliação realizada pelo Instituto de Criminalística, conforme laudo de f. 59/60, que avaliou o bem em R$42.000,00 (quarenta e dois mil reais).


Ainda, o réu José Carlos de Oliveira confirma que o negócio realizado pelas partes serviu para encobrir o referido empréstimo em dinheiro, conforme se infere pelo depoimento de f. 145/146.


Nesse sentido, extrai-se do depoimento da parte:


“que os autores celebraram um contrato de empréstimo, e não de compra e venda do imóvel localizado no Bairro Vila Bretas; que o Sr. Edis efetuava os pagamentos diretamente à sua pessoa; que transferia o dinheiro para Severino; que não sabe precisar, neste momento, os valores pagos pelos autores; que eles lhe passaram mais de R$20.000,00 (vinte mil reais); que tomou conhecimento de existirem outras ações contra Severino e Gildo; que o combinado seria que, quando do pagamento total do empréstimo, o imóvel seria transferido para os autores” (f. 146) (g.n.) No caso em tela, evidencia-se que o contrato não se afigura lídimo nos termos em que foi firmado, pois o que se verifica é a ocorrência de indícios de uma simulação no contrato, causa de nulidade, por possivelmente encobrir, não um ajuste de compra e venda, mas sim de um empréstimo, sendo o imóvel a garantia dada para que os apelados saldassem suas dívidas, o que consubstancia, na verdade, a prática de agiotagem, incidindo aí no art. 167, § 1º, do CC/2002.


Nesse ponto, destaca-se o reconhecimento da configuração de simulação, consistente na celebração, de compromisso decompra e venda, a fim de ocultar o estabelecimento de pacto comissório – garantia ao contrato de mútuo usurário firmado entre as partes.


Inviabilizada, dessa forma, a manutenção seja da procuração outorgada, seja da convalidação do negócio de alienação do referido imóvel em virtude de vício de vontade no momento da celebração dos referidos instrumentos.


Diante de todos os fatos narrados e constantes dos autos, claro está que não houve nenhum compromisso de venda e compra firmado entre as partes. Houve, sim, simulação, para garantir contrato de mútuo, com a cobrança de juros usurários.


No caso, a simulação realizou-se com o intuito de disfarçar o pacto comissório entabulado entre as partes, que é igualmente vedado em lei, ante o que dispõe o art. 765 do Código Civil de 1916, equivalente ao art. 1.428 do CC/2002.


Dessa forma, impõe-se a declaração de nulidade do contrato de mandato e o negócio de compra e venda de imóvel firmado para garantir o pagamento de empréstimo, visto que a manifestação de vontade dos autores fora viciada, visto que não tinham a intenção de alienar o imóvel, constatando-se que, na realidade, repita-se, traduz-se como instrumento para encobrir pacto comissório, vedado pelo ordenamento jurídico pátrio, nos termos do art. 1.428 do CC (equivalente ao art. 765 do CC/1916). 


Nesse sentido:


“Recurso especial. Ação de imissão de posse cumulada com ação condenatória. Compromisso de compra e venda firmado com cláusula de retrovenda. Ao concluir que o negócio jurídico foi celebrado no intuito de garantir contrato de mútuo usurário e, portanto, consistiu em simulação para ocultar a existência de pacto comissório, o tribunal de origem procedeu à reforma da sentença proferida pelo magistrado singular, julgando improcedentes os pedidos veiculados na demanda. Pacto comissório. Vedação expressa. Art. 765 do Código Civil 1916. Nulidade absoluta. Mitigação da regra inserta no art. 104 do diploma civilista (1916). Possibilidade de arguição como matéria de defesa. Insurgência recursal da parte autora. Ação de imissão de posse cumulada com ação condenatória ajuizada pelo promissário comprador em face de um dos alienantes, visando à desocupação do imóvel, bem assim ao ressarcimento dos prejuízos experimentados (aluguéis). Sentença de procedência reformada pelo Tribunal de origem, ao reputar demonstrada a simulação e o pacto comissório firmado entre as partes e, portanto, a nulidade do compromisso de compra e venda com cláusula de retrovenda, julgando improcedentes os pedidos veiculados na demanda. 1. A ausência de debate, pelas instâncias ordinárias, do conteúdo normativo dos dispositivos apontados como violados impede o conhecimento das teses recursais subjacentes, porquanto não configurado o necessário prequestionamento. Incidência do óbice inserto na Súmula 211/STJ. 2. É nulo o compromisso de compra e venda que, em realidade, traduz-se como instrumento para o credor ficar com o bem dado em garantia em relação a obrigações decorrentes de contrato de mútuo usurário, se estas não forem adimplidas. Isso porque, nesse caso, a simulação, ainda que sob o regime do Código Civil de 1916 e, portanto, concebida como defeito do negócio jurídico, visa encobrir a existência de verdadeiro pacto comissório, expressamente vedado pelo art. 765 do Código Civil anterior (1916). 2.1 Impedir o devedor de alegar a simulação, realizada com intuito de encobrir ilícito que favorece o credor, vai de encontro ao princípio da equidade, na medida em que o ‘respeito aparente ao disposto no art. 104 do Código Civil importaria manifesto desrespeito à norma de ordem pública, que é a do art. 765 do mesmo Código’, que visa, a toda evidência, proteger o dono da coisa dada em garantia (cf. REsp nº 21.681/SP, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, DJ de 03.08.1992). 2.2 Inexiste para o interessado na declaração da nulidade absoluta de determinado negócio jurídico o ônus de propor ação ou reconvenção, pois, tratando-se de objeção substancial, pode ser arguida em defesa, bem como pronunciada ex officio pelo julgador. 3. Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, não provido” (STJ – REsp: 1076571 SP 2008/0165413-0, Relator: Ministro Marco Buzzi, j. em 11.03.2014, T4 – Quarta Turma, DJe de 18.03.2014) (g.n.).


“Ação anulatória c/c indenização por danos morais e materiais. Contrato de mútuo. Empréstimo de dinheiro. Imóvel dado em garantia. Pacto comissório. Vedação. Nulidade da escritura de compra e venda. Ato ilícito. Construção de cerca. Impossibilidade. Indenização por danos morais. Danos materiais. Ausência de prova do prejuízo patrimonial. 1. É de ser reconhecida a nulidade de negócio jurídico realizado entre as partes, sob as vestes de mútuo de dinheiro com pacto adjeto de caução, quando constatado que, na realidade, traduz-se como instrumento para encobrir pacto comissório, vedado pelo ordenamento jurídico pátrio, nos termos do art. 1.428 do Novo Código Civil. 2. A construção de cerca em condomínio indiviso constitui ato ilícito a autorizar a indenização por danos morais. 3. A condenação na indenização por danos materiais reclama prova irrefutável do prejuízo patrimonial sofrido. 4. Primeiro recurso provido parcialmente e segundo recurso não provido” (TJMG – AC: 10287110007658001 MG, Rel. Des. José Arthur Filho, j. em 19.05.2015, Câmaras Cíveis / 9ª Câmara Cível, p. em 12.06.2015).


A figura do pacto comissório traduz-se, portanto, na proibição de celebração de negócio jurídico que autorize o credor a apropriar-se da coisa dada em garantia, em caso de inadimplência do devedor, sem antes proceder à execução judicial do débito garantido.


Desse modo, a vedação do pacto comissório (art. 1.428 do Código Civil de 2002) tem por escopo a proteção da parte economicamente mais fraca da relação jurídica contratual, que, premida por necessidades imperiosas da vida cotidiana, concorda com a celebração de negócio jurídico voltado à garantia real da obrigação originariamente (ou verdadeiramente) estipulada.


A pactuação realizada, de forma dissimulada, com o aludido mister é nula.


"Recurso especial. Embargos à execução de obrigação de fazer consistente na outorga de escritura pública de transferência de propriedade de bens imóveis. Promessa de compra e venda firmada em garantia a contrato de factoring sob a égide do Código Civil de 1916. Caracterização de pacto comissório vedado pelo ordenamento jurídico. Insurgência dos exequentes/embargados. […] 3. No caso, resta perfeitamente configurada a figura do pacto comissório, pois, simulando a celebração de contratos de compromisso de compra e venda, foram instituídas verdadeiras garantias reais aos ajustes de factoring, permitindo que, em caso de inadimplência, fossem os bens transmitidos diretamente ao credor. Avença nula de pleno direito, consoante o disposto no art. 765 do CC/1916, atual art. 1.428 do CC/2002. Precedentes da Corte. 4. Recurso especial desprovido" (REsp 954903/RS, Rel. Ministro Marco Buzzi, j. em 11.12.2012, DJe de 01.02.2013).


Na presente demanda, encontra-se comprovada a existência de mútuo usurário, bem como a indevida transferência do imóvel, em simulação que visava dar aos réus garantia real, motivo pelo qual se reconhece a nulidade dada a ilicitude, decorrente do vício na celebração do mandato e com a consequente alienação do imóvel, impondo a manutenção da sentença de procedência, com declaração de nulidade do mandato outorgado ao réu José Carlos de Oliveira (f. 12/13) e a escritura pública de compra e venda de f. 20/20-v., por ofensa ao art. 765 do CC/1916, equivalente ao art. 1.428 do CC/2002. 


Dispositivo.


Diante do exposto, nego provimento ao recurso para manter a sentença, conforme fundamentos constantes destes autos.


Custas do recurso, pelos apelantes, sem fixação de honorários recursais, visto que já fixados no limite legal.


Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Valdez Leite Machado e Evangelina Castilho Duarte.


Súmula – NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.

 

 

Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG