APELAÇÃO CÍVEL – INVENTÁRIO – CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA – PAGAMENTO – AUSÊNCIA DE REGISTRO – FALECIMENTO DO COMPRADOR – ARROLAMENTO DE DIREITOS – POSSIBILIDADE – ART. 993, INCISO IV, ALÍNEA ‘G’, CPC/73 – RECURSO PROVIDO – SENTENÇA CASSADA
– O juízo do inventário possui caráter universal, sede na qual devem ser resolvidas todas as questões de fato e de direito atinentes ao julgamento da partilha, salvo matérias fáticas que impõem ampla dilação probatória.
– Não realizada a transmissão da propriedade quando em vida, transmite-se aos herdeiros a obrigação de fazê-la, já que a herança compreende um todo unitário, não só de direitos, mas também de deveres.
– O compromisso de compra e venda de um imóvel é suscetível de apreciação econômica e transmissível a título inter vivos ou causa mortis, independentemente de registro.
– Embora o contrato de promessa de compra e venda não registrado em cartório não se trate de direito real, a ausência de registro não o invalida.
– É admissível o arrolamento do direito sobre o imóvel objeto de contrato de compromisso de compra e venda firmado pelo de cujus, para que ostentem os herdeiros a posição jurídica que lhes permita demandar o cumprimento integral da avença: a concessão do título hábil de transmissão do domínio.
Apelação Cível nº 1.0024.98.015783-8/001 – Comarca de Belo Horizonte – Apelante: Espólio de Manoel Gonçalves da Rocha, representado pelo inventariante Alexandre Freitas Rocha e outro – Relator: Des. Washington Ferreira
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em dar provimento ao recurso.
Belo Horizonte, 4 de outubro de 2016. – Washington Ferreira – Relator.
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
DES. WASHINGTON FERREIRA – Cuida-se de recurso de apelação interposto contra a sentença de f. 183-184-v., proferida pelo MM. Juiz de Direito da 4ª Vara de Sucessões e Ausências da Comarca de Belo Horizonte que, nos autos do inventário dos bens deixados por Manoel Gonçalves da Rocha e Inês de Freitas Rocha, julgou extinto o feito, sem resolução de mérito, pela impossibilidade jurídica do pedido de partilha de posse de imóvel e ausência de interesse de agir, nos termos do art. 267, VI, do CPC.
Nas razões recursais às f. 195-199, Alexandre Freitas Rocha, ora inventariante, alega que as sucessivas trocas de inventariantes dativos contribuíram para a morosidade do trâmite processual. Afirma que Manoel Gonçalves da Rocha adquiriu o imóvel constituído pelo lote 09-B da quadra 20, bairro Lagoa, em Belo Horizonte, mas não efetuou o respectivo registro da escritura pública no cartório competente. Assevera que, não obstante, apresentou as certidões negativas de débito e efetuou o pagamento do ITCD. Destaca que, a tempo e modo, requereu a expedição de segunda via do alvará judicial para regularização do registro do imóvel, para posterior elaboração do esboço da partilha. Afirma que, em hipótese alguma, pleiteou a partilha da posse do único imóvel deixado por seus genitores, até porque, de fato, o pedido seria juridicamente impossível. Bate-se pelo provimento do recurso e o prosseguimento do feito na instância de origem.
Dispensada a manifestação da douta Procuradoria de Justiça, ante a ausência de interesse a justificar a intervenção ministerial.
É o relatório.
Apesar de o julgamento ser realizado na vigência do novo Código de Processo Civil – Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (NCPC), o feito será analisado segundo o CPC de 1973. Isso encontra coerência com o art. 14 do NCPC, e com o entendimento do colendo STJ, a exemplo do externado nos julgamentos do AgRg no REsp nº 1.574.932/PE e no EDcl no AgRg nos Embargos de Divergência em Agravo em REsp nº 623.886/BA.
Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso de apelação.
É certo que o processo em questão tramitou com inúmeras falhas, mas a extinção sem resolução de mérito, nos termos da sentença, não merece prosperar.
Como cediço, o Juízo do inventário possui caráter universal, de modo a resolver todas as questões de fato e de direito atinentes ao julgamento da partilha, salvo matérias fáticas que impõem ampla dilação probatória, exigindo um processo à parte.
No caso, trata-se de inventário conjunto (art. 1.043, CPC/73) do bem imóvel deixado por Manoel Gonçalves da Rocha e Inês de Freitas Rochas (certidões de óbitos às f. 05 e 127).
Afirma o inventariante que o seu falecido pai adquiriu o imóvel da Rua Josué Martins de Souza, 655, bairro Lagoa, Belo Horizonte (lote 09-B, quadra 20), todavia não promoveu a lavratura da escritura de compra e venda do imóvel perante o cartório competente.
Inexistente a escritura, entendeu o MM. Juiz que se tratava de inventário da “posse” de imóvel, concluindo que o pedido seria juridicamente impossível.
Com efeito, à f. 21, consta a “proposta de compra” do imóvel Lote B da quadra 20, assinada por Manoel Gonçalves da Rocha em 1968. Às f. 58-58-v., consta a certidão de registro do imóvel ainda em nome do promissário vendedor Hiron de Oliveira Santos. Portanto, não houve a transferência da propriedade, tendo em vista a ausência da escritura pública de compra e venda e correspondente registro no CRI. E, nos exatos termos do § 1º do art. 1.245, CC/02, enquanto não registrada a escritura, o alienante continua sendo considerado o dono do imóvel:
"Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
§ 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.
[…]".
No caso em apreço, repita-se, não há registro do imóvel em nome dos autores da herança, mas em nome do promissário vendedor Hiron de Oliveira Santos (f. 58-58-v.).
Por esse motivo, o inventariante, ora apelante, pleiteia nos autos do inventário “alvará judicial” para providenciar o registro na matrícula do imóvel adquirido por seus genitores no respectivo Cartório de Registro de Imóveis (CRI).
Não é essa a solução, todavia.
O compromisso de compra e venda de um imóvel é suscetível de apreciação econômica e transmissível a título inter vivos ou causa mortis, independentemente de registro. Trata-se de um negócio jurídico irretratável, tal como afirma a Lei 6.766/79, art. 25 (“São irretratáveis os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão, os que atribuam direito a adjudicação compulsória e, estando registrados, confiram direito real oponível a terceiros”).
Dessa forma, embora o contrato de promessa de compra e venda não registrado em cartório não trate de direito real, a ausência de registro, por outro lado, não afasta a sua validade.
Nessa perspectiva, é admissível o arrolamento do direito sobre o imóvel objeto do contrato de compromisso de compra e venda firmado pelo de cujus, para que ostentem os herdeiros a posição jurídica que lhes permita demandar o cumprimento integral da avença: a concessão do título hábil de transmissão do domínio.
Assim, ainda que o mero contrato de compromisso de compra e venda não permita, por si só, a transferência da propriedade, por outro lado, a efetivação das obrigações assumidas pelo comprador (prova do pagamento do valor acordado) lhe autoriza a buscar a ultimação da avença. Seguindo esse raciocínio, a transferência aos herdeiros do direito sobre o imóvel objeto do contrato de compromisso de compra e venda permite-lhes assumir a posição jurídica do contratante (falecido) de demandar a transmissão do domínio, mormente se quitado o valor contratado.
A propósito, estabelece o art. 993, inciso IV, alínea g, do CPC:
“Art. 993. Dentro de 20 (vinte) dias, contados da data em que prestou o compromisso, fará o inventariante as primeiras declarações, das quais se lavrará termo circunstanciado. No termo, assinado pelo juiz, escrivão e inventariante, serão exarados:
[…]
IV – a relação completa e individuada de todos os bens do espólio e dos alheios que nele forem encontrados, descrevendo-se:
[…]
g) direitos e ações;”.
À luz da mencionada norma, deve ser levado a inventário o direito sucessório proveniente do contrato de compromisso de compra e venda firmado entre o de cujus e Hiron de Oliveira Santos, para que os herdeiros possam exigir a transmissão do domínio.
Nesse sentido:
“Agravo de instrumento. Arrolamento/inventário de bens. Contrato de promessa de compra e venda de imóvel. Morte do promitente comprador. Adjudicação do imóvel pelo único herdeiro. Impossibilidade. Ausência de registro em nome do de cujus. Adjudicação do direito de aquisição decorrente do contrato. Possibilidade. Recurso parcialmente provido. 1. A teor dos arts. 1.784 e segs. do Código Civil, verifica-se a abertura da sucessão tão logo ocorrido o falecimento do autor da herança, momento em que, juridicamente, opera-se de imediato a transferência da propriedade aos herdeiros e legatários. 2. O art. 1.245 do Código Civil estabelece que a propriedade do bem imóvel somente se transmite com o efetivo registro do respectivo título translativo no Cartório de Registro de Imóveis, ou seja, enquanto não registrada a escritura, o alienante continua sendo considerado como o dono do imóvel. 3. Apresentada pelo inventariante, único herdeiro do de cujus, tão somente a cópia do Contrato de Promessa de Compra e Venda do imóvel arrolado, não faz jus à adjudicação do bem. 4. Nos termos do art. 993, IV, g, do Código de Processo Civil, os direitos decorrentes da pactuação do contrato de compromisso de compra e venda devem ser partilhados ou adjudicados em ação de inventário, a fim de que a posição jurídica até então ostentada pelo falecido possa ser assumida por seus sucessores. 5. Recurso provido em parte” (TJMG – Agravo de Instrumento Cível nº 1.0210.13.000465-3/001, Relator: Des. Corrêa Junior , 6ª Câmara Cível, j. em 08.10.2013, publicação da súmula em 18.10.2013).
Além disso, a Quarta Turma do STJ já decidiu pela inclusão, em inventário, dos direitos oriundos de um contrato de promessa de compra e venda de imóvel, ainda que sem registro imobiliário. A propósito:
“Recurso especial. Direito civil. Contrato de promessa de compra e venda. Direito real quando registrado. Art. 1.225 do Código Civil. Arrolamento de direitos. Inventário. Art. 993, inciso IV, alínea g, do Código de Processo Civil. 1. Inexiste violação do art. 535 do Código de Processo Civil se todas as questões jurídicas relevantes para a solução da controvérsia são apreciadas, de forma fundamentada, sobrevindo, porém, conclusão em sentido contrário ao almejado pela parte. 2. A promessa de compra e venda identificada como direito real ocorre quando o instrumento público ou particular é registrado no cartório de registro de imóveis, o que não significa que a ausência do registro retire a validade do contrato. 3. A gradação do instituto da promessa de compra e venda fica explícita no art. 25 da Lei n. 6.766/1979, que prevê serem irretratáveis os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão, os que atribuem direito a adjudicação compulsória e, estando registrados, conferem direito real oponível a terceiros. 4. Portanto, no caso concreto, parece lógico admitir a inclusão dos direitos oriundos do contrato de promessa de compra e venda de lote em inventário, ainda que sem registro imobiliário. Na verdade, é facultado ao promitente comprador adjudicar compulsoriamente imóvel objeto de contrato de promessa de compra e venda não registrado, e a Lei n. 6.766/1979 admite a transmissão de propriedade de lote tão somente em decorrência de averbação da quitação do contrato preliminar, independentemente de celebração de contrato definitivo, por isso que deve ser inventariado o direito daí decorrente. 5. O compromisso de compra e venda de imóvel é suscetível de apreciação econômica e transmissível a título inter vivos ou causa mortis, independentemente de registro, porquanto o escopo deste é primordialmente resguardar o contratante em face de terceiros que almejem sobre o imóvel em questão direito incompatível com a sua pretensão aquisitiva, o que não é o caso dos autos. 6. Recurso especial provido” (REsp 1185383/MG, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. em 08.04.2014, DJe de 05.05.2014).
A sentença, portanto, deve ser cassada.
Indeclinável ressaltar que o feito vem arrastando-se desde 1998, sem solução, sendo necessário chamá-lo à ordem de modo a permitir o arrolamento de direito oriundo do contrato firmado pelo de cujus.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso para cassar a sentença e determinar o prosseguimento do inventário, nos termos, agora, do NCPC.
Custas, ao final.
É como voto.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Armando Freire e Alberto Vilas Boas.
Súmula – DERAM PROVIMENTO AO RECURSO.
Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG