Jurisprudência mineira – Apelação cível – Prestação de contas pelo inventariante – Cessão de direitos hereditários do autor em favor dos demais herdeiros – Termo não formalizado por escritura pública

APELAÇÃO CÍVEL – PRESTAÇÃO DE CONTAS PELO INVENTARIANTE – CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS DO AUTOR EM FAVOR DOS DEMAIS HERDEIROS – TERMO NÃO FORMALIZADO POR ESCRITURA PÚBLICA – IMPRESTABILIDADE DO ACORDO PARA PRESTAÇÃO DE CONTAS – PRESTAÇÃO DEVIDA


– A cessão de direitos hereditários somente possui validade se formalizada por escritura pública, ainda que aceita por todos os herdeiros.


– Não havendo, nos autos, comprovação do requisito formal de validade da cessão de direitos hereditários, o acordo entre os herdeiros não tem o condão de afastar a necessidade de prestação de contas pela inventariante, cabendo ao juízo competente para julgamento do inventário decidir sobre eventual nulidade do contrato particular.


– Reconhecida pela primeira instância o dever de prestar contas, devem os autos retornar à comarca de origem para prosseguimento da prestação, nos termos do arts. 915, § 3°, e 917, ambos do CPC/73.


Apelação Cível nº 1.0625.10.007866-0/001 – Comarca de São João Del-Rei – Apelante: David Gabriel Teixeira Barbosa – Apelada: Gabriela Trindade Barbosa – Relator: Des. Peixoto Henriques


ACÓRDÃO


Vistos etc., acorda, em Turma, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em dar provimento ao recurso.


Belo Horizonte, 11 de outubro de 2016. – Peixoto Henriques – Relator.


NOTAS TAQUIGRÁFICAS


DES. PEIXOTO HENRIQUES – Via apelação (f. 149/159), insurge-se David Gabriel Teixeira Barbosa contra sentença (f. 145/147) que, prolatada nos autos da ação de prestação de contas ajuizada em desfavor de Gabriela Trindade Barbosa, julgou extinto o processo, com resolução do mérito, ante o acordo celebrado entre as partes na segunda fase da presente ação, determinando, por fim, o pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios, estes no valor de R$1.000,00, na proporção de 50% pra cada, suspensa a exigibilidade do autor/apelante por litigar sob o pálio da justiça gratuita.


Em suma, aduz o réu/apelante: que o autor é irmão unilateral da ré/apelada e de dois herdeiros do falecido genitor; que a presente ação foi ajuizada com o intuito de resguardar o direito do autor, buscando-se transparência da administração dos bens deixados pelo de cujus, que estão na posse da apelada (inventariante) e dos demais herdeiros; que a sentença de f. 93/96 condenou a apelada a prestar as contas, o que não foi cumprido; que a apelada juntou aos autos compromisso particular de cessão de direitos hereditários mediante compra e venda, realizado entre o autor e os demais herdeiros, sendo o mesmo nulo e ineficaz; que o referido documento foi realizado por instrumento particular, sendo, portanto, nulo por ausência de escritura pública; que os herdeiros prejudicaram o autor,omitindo a existência de todos os bens deixados pelo falecido e dos reais valores devidos; e, ainda, que foram ajuizadas ações de remoção da inventariante e sonegação de bens, devendo haver a prestação de contas dos bens já arrolados no inventário.


Requer o provimento do recurso, para que seja reformada a sentença e condenada a apelada a prestar contas de sua administração como inventariante do espólio de João Bosco Barbosa.


Desnecessário o preparo (art. 511, § 1°, CPC/73).


Contrarrazões ofertadas (f. 164/169).


A d. PGJ/MG preferiu se abster (f. 180).


Fiel ao breve, dou por relatado.


Inicialmente, mantendo coerência com o entendimento por mim adotado nos casos sob minha relatoria, saliento que, prolatada a sentença e interposto o recurso sob a vigência do CPC/1973, em se tratando de situações jurídicas consolidadas ou atos jurídicos perfeitos, há óbice à aplicação da nova legislação processual civil (Lei nº 13.105/2015), em observância ao disposto no art. 5º, XXXVI, da CR/1988.


Corroboram com este entendimento os Enunciados nos 2 do STJ e 54 deste Tribunal, os quais, respectivamente, assim dispõem: “Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 1916) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas, até então, pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.


A legislação processual que rege os recursos é aquela da data da publicação da decisão judicial, assim considerada sua publicação em cartório, secretaria ou inserção nos autos eletrônicos”.


Conheço do recurso, presentes os pressupostos para superação do juízo de admissibilidade.


Extrai-se dos autos que o autor/apelante é filho do falecido João Bosco Barbosa (f. 17) e irmão dos herdeiros Gabriela Trindade Barbosa, ora ré/apelada, Pedro Trindade Barbosa e João Bosco Barbosa Junior, sendo o espólio do de cujus representado pela apelada nos autos do Inventário n° 0625.04.037255-3, em curso até a presente data.


Reconhecendo a obrigação de prestar contas enquanto inventariante, a apelada informou que "os documentos constituídos de 12 (doze) volumes […] encontram-se à disposição dos ilustres patronos no escritório do signatário desta, para o devido exame e conferência" (f. 85). Conclusos os autos ao Magistrado primevo, adveio a sentença de procedência do pedido inicial, condenando a ré/apelada à prestação de contas nos moldes do art. 915, § 3°, do CPC/73, não sendo válida a mera informação de disponibilidade de documentos (f. 93/96). Nota-se, porém, que, após a mencionada manifestação da apelada, em 24.03.2011, os autos ficaram paralisados por mais de um ano, vindo a ser conclusos ao Juiz a quo somente em 03.08.2012 (f. 87).


Uma vez prolatada a sentença, insurgiu-se a apelada, esclarecendo que "antes da prolatação (sic) da r. decisão, as partes já haviam transacionado, obviamente com a ciência de seus ilustres patronos, através de um contrato" (f. 101).


O referido contrato (f. 102/105), intitulado "compromisso particular de cessão de direitos hereditários e compra e venda", foi assinado, em 22.08.2011, pelo autor/apelante, sua genitora, a apelada, os demais herdeiros (dois) e dois advogados, cujo conteúdo refere-se à cessão hereditária, a título oneroso (compra e venda), dos direitos do autor em favor dos três irmãos, recebendo em contraprestação a importância de R$158.000,00 e "a casa de morada e cômodo comercial, ambos na Rua Berço da Liberdade, em Tiradentes" (f. 103).


Conforme recibo assinado pelo autor/apelante (f. 106), a importância foi paga em 01.09.2011, mediante cheque.


Na parte que aqui interessa, o contrato: prevê a desoneração do cedente (autor) das despesas, multas e ações atinentes ao espólio, bem como plena concordância com o plano de partilha a ser apresentado pelos herdeiros; permite a imediata posse do autor no imóvel dado em pagamento, devendo aguardar o término do inventário para regularização da propriedade, como arcar com os custos relacionados à escritura e averbação; e, estipula ao cedente a integral quitação de qualquer "crédito existente no Espólio em seu favor […] desistindo, expressamente, de qualquer ação judicial em andamento, dentre as quais a de prestação de contas e pensão" (f. 104).


Valendo-se da existência da citada cessão de direitos, entendeu o Juiz a quo que a mesma "deve ser considerada como compromisso, e, portando, qualquer discussão deve ser resolvida no âmbito obrigacional", não sendo cabível a questão acerca de eventual nulidade ou invalidade da cessão hereditária (f. 146).


Cinge-se a controvérsia, portanto, ao (não) reconhecimento da cessão de direitos hereditários a título oneroso (f. 102/106) como acordo válido entre as partes, o bastante para afastar a prestação de contas requerida.


Sobre a cessão de direitos hereditários, assim dispõe o Código Civil de 2002:


“Art. 1.793. O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o coerdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública.”


Para fins legais, o direito à sucessão aberta é considerado bem imóvel (art. 80, II, CC/2002), sendo necessária a escritura pública para validade dos negócios jurídicos que visem constituição, transferência, modificação ou renúncia de tal direito (art. 108, CC/2002).


Dessa forma, imprescindível que a cessão de direitos hereditários seja formalizada por escritura pública.


Nesse sentido, lecionam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery:


“A forma prescrita pela lei para que possa ser feita validamente a cessão de direitos hereditários é a escritura pública. Caso seja realizada a cessão por instrumento particular, o negócio jurídico será inválido. Nesse sentido: Diniz. CC Anotado, p. 1.167 (Código Civil comentado. 8. ed., Revista dos Tribunais, p. 1.302).


Não destoa desse entendimento a jurisprudência pátria, manifestando-se o c. STJ e este eg. TJMG pela imprescindibilidade de escritura pública na cessão de direitos hereditários; confira-se:


“A cessão de direitos hereditários deve ser formalizada por escritura pública, consoante determina o artigo 1.793 do Código Civil de 2002” (REsp 1.027.884/SC, Rel. Min. Fernando Gonçalves, Quarta Turma, DJe de 24.08.2009)” (AgRg no REsp n° 1.416.041/RS, 3ª T/STJ, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe de 09.06.2014 – ementa parcial).


“Apelação cível. Inventário. Cessão de direitos hereditários. Escritura pública. Exigência do art. 1.793 do Código Civil/2002. Reservas de bens. Impossibilidade. Anulação do negócio jurídico. Vias ordinárias. Recurso não provido. – I. Exigindo o Código Civil brasileiro forma especial para a transmissão dos direitos hereditários, por se tratar de ato de disposição de bem considerado imóvel, a cessão de direitos hereditários, realizada sem atendimentos da forma prevista em lei, não detém eficácia. II. O cessionário de direitos hereditários somente possui direito a quinhão, se o contrato entabulado entre as partes for formalizado por escritura pública, nos termos do art. 1.793 do Código Civil de 2002. III. Eventuais danos sofridos pelo cessionário e o não recebimento dos honorários pelos serviços prestados aos herdeiros deverão ser discutidos em ação própria” (Acórdão n° 1.0481.03.024109-7/001, 7ª Câmara Cível/TJMG, Rel. Des. Washington Ferreira, DJe de 18.07.2014).


“Cominatória c/c obrigação de fazer. Cessão de direitos hereditários. Escritura pública. Necessidade. Não comprovação do negócio jurídico. – A cessão de herança é negócio jurídico sujeito aos requisitos necessários à validade e eficácia dos contratos. Realizada a título oneroso – compra e venda, exige-se a escritura pública. Não tendo sido comprovada a existência do negóciojurídico de compra e venda da área descrita na inicial, não há como ser determinada a outorga de escritura pública” (Acórdão n° 1.0194.09.096240-9/001, 10ª Câmara Cível/TJMG, Rel. Des. Pereira da Silva, DJe de 14.03.2014).


“Agravo de instrumento. Desapropriação. Titularidade do domínio. Registro de imóveis. Suposta cessão de direitos hereditários. Instrumento particular e referência a bens específicos. Ineficácia. Ausência de instrumento público e inventário. Invalidade. Cessionário. Terceiro estranho. Ausência de interesse e legitimidade. – A cessão de direitos hereditários cuja validade depende de instrumento público, art. 1.793, caput, in fine, do CC/02, somente resta eficaz quando se referir ao direito de participação na sucessão de bens e direitos a ser ultimada pelas vias regulares – administrativa ou judicial – não podendo, pois, sob pena de ineficácia, art. 1.793, § 3º, do CC/02, se referir a bens específicos da herança que ainda não foram partilhados” (AI n° 1.0558.14.001085-8/001, 6ª Câmara Cível/TJMG, Rel.ª Des.ª Selma Marques, DJe de 30.10.2014 – ementa parcial).

 

No presente caso, a cessão de direitos hereditários realizada entre o autor/apelante e os demais herdeiros não foi formalizada por escritura pública, e, mesmo havendo a anuência de todos os herdeiros, não se vislumbra sequer homologação desta cessão pelo Juízo competente no julgamento do inventário (Proc. n° 0625.04.037255-3).


Carece o documento, portanto, de validade e eficácia para o fim proposto.


Não se pode olvidar, porém, que a presente ação se trata de prestação de contas exigidas por um herdeiro em face da inventariante, nos termos do art. 919 do CPC/73. A matéria aqui discutida restringe-se ao reconhecimento do direito de exigir a prestação de contas e ao dever de prestá-las, bem como à aceitação de seu conteúdo. Não cabe, neste julgamento, a decretação de nulidade de um documento intrinsecamente relacionado ao processo de inventário, em que o herdeiro que se sentir lesado poderá questionar a validade das transações. Eis que ao juízo do inventário é dado reconhecer a eventual nulidade do instrumento particular celebrado entre o autor/apelante e os demais herdeiros para fins de cessão de direitos hereditários (art. 984, CPC/73).


Lado outro, atentando-me aos documentos que instruem o caderno processual, não reputo válido o contrato particular de f. 102/106 para fins de prestação de contas e resolução do mérito.


A uma, repito, por inexistir, nos autos, comprovação do requisito de formalidade da cessão de direitos hereditários, qual seja a escritura pública; e, a duas, porque, para terminar o litígio, o documento deveria ser apresentado como transação ou desistência, não se prestando para nenhum dos dois.


Como se sabe, é lícito às partes fazerem concessões mútuas acerca de direitos patrimoniais privados, de forma a prevenirem ou terminarem o litígio (arts. 840 e 841, CC/2002). No entanto, requer-se que a transação seja feita por escritura pública ou termo nos autos quando tratar de direitos contestados em juízo, devendo haver assinatura das partes e homologação pelo juiz (art. 842). Nenhum destes pressupostos se faz presente no acordo particular em questão, inexistindo, inclusive, assinatura (presença) de qualquer um dos advogados que patrocinam esta causa em nome do autor/apelante.


Por tais considerações, não vislumbro razões para considerar o acordo particular de f. 102/106 como instrumento válido a afastar o dever de prestar contas pela inventariante, ora apelada, não se prestando sequer como desistência expressa do autor/apelante no prosseguimento da ação, visto que ausente a assinatura de qualquer um de seus signatários devidamente constituído nos autos (f. 14, 78 e 115).


Considerando-se a decisão proferida na primeira fase da presente ação (f. 93/95), na qual o Juízo primevo reconheceu o dever da apelada, enquanto inventariante, de prestar contas de sua administração do espólio, devem os autos retornar à instância de origem para prosseguimento da segunda fase, cabendo à apelada prestar as contas "em forma mercantil, especificando-se as receitas e a aplicação das despesas, bem como o respectivo saldo; e serão instruídas com os documentos justificativos" (ex vi do art. 917, CPC/73).


Isso posto, dou provimento ao recurso para, cassando a sentença guerreada (f. 145/147), determinar o retorno dos autos à comarca de origem para prosseguimento da ação, com o cumprimento da obrigação da apelada, na qualidade de inventariante, de prestar as contas do espólio de João Bosco Barbosa, no termos da decisão de f. 93/95.


É como voto.


Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Oliveira Firmo e Wilson Benevides.


Súmula – DERAM PROVIMENTO AO RECURSO.

 

 

Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG