APELAÇÃO CÍVEL – PROMESSA DE CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS – INTERPRETAÇÃO DA REAL VONTADE DAS PARTES E PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DOS CONTRATOS – PROMESSA DE COMPRA E VENDA – INSTRUMENTO PÚBLICO – PRESCINDIBILIDADE – DIREITO DE PREFERÊNCIA – AUSÊNCIA DOS REQUISITOS LEGAIS
– Verificado que a vontade das partes era a transferência de propriedade de fração de bem imóvel, após a partilha, a avença deve ser interpretada como promessa de compra e venda, presentes os requisitos desta.
– Nas declarações de vontade, deve-se perquirir a real intenção das partes, a qual prevalece ao sentido literal da linguagem – art. 112 do Código Civil.
– A promessa de compra e venda, ainda que de bem imóvel, pode ser celebrada por instrumento particular, a teor do art. 462 do Código Civil.
– O exercício do direito de preferência exige o preenchimento dos requisitos previstos no art. 504 do Código Civil.
Apelação Cível nº 1.0372.13.004863-3/001 – Comarca de Lagoa da Prata – Apelantes: Magda de Carvalho Bernardes Pereira de Lima, Mônica Carvalho Bernardes Santos, Carlos André Bernardes, Marilena Carvalho Bernardes Santos, Antônio Carlos Bernardes – Apelados: Espólio de Edil dos Santos Handan, Elenice de Castro, Geni Bernardes dos Santos, Desi Santos Castro – Relator: Juiz de Direito convocado Ronaldo Claret de Moraes
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em negar provimento ao recurso.
Belo Horizonte, 16 de fevereiro de 2017. – Ronaldo Claret de Moraes (Juiz de Direito convocado) – Relator.
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
JUIZ DE DIREITO CONVOCADO RONALDO CLARET DE MORAES – Apelação interposta por Magda de Carvalho Bernardes Pereira de Lima, Marilena de Carvalho Bernardes, Antônio Carlos Bernardes, Carlos André Bernardes e Mônica Carvalho Bernardes, contra sentença da lavra do MM. Juiz Aloysio Libano de Paula Júnior, da 1ª Vara da Comarca de Lagoa da Prata, que, nos autos da ação de declaratória de nulidade de negócio jurídico proposta em desfavor de Elenice de Castro, Espólio de Edil dos Santos Handan, Geni Bernardes dos Santos e Desi dos Santos Castro, assim decidiu:
“Assim, julgo improcedente o pedido lançado na inicial e resolvo o mérito da demanda, com fulcro no art. 487, I, do CPC. Outrossim, condeno os autores ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios de sucumbência, estes arbitrados em 10% do valor atualizado da causa, na forma do § 2º do art. 85 do CPC” (f. 116/119).
Os apelantes, em razões recursais, pleitearam a reforma da sentença, sustentando que a avença referente à cessão de direitos hereditários deve ser declarada nula, tendo em vista a existência de vícios, e, ainda, em razão de não ter sido comprovado o pagamento do preço. Aduziram que inexistiam direitos hereditários a serem cedidos, uma vez que, no momento da celebração do contrato, já havia sido encerrado o inventário de Alzira Maria dos Santos, com partilha dos bens. Alegaram, também, que há necessidade de realização do ato por instrumento público e que não foi concedido o direito de preferência aos demais herdeiros (f. 121/127).
Recurso devidamente preparado (f. 128).
Os apelados, em contrarrazões, requereram a manutenção da sentença, por seus próprios fundamentos (f. 129/142).
É o relatório.
Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.
Registro que a sentença vergastada foi proferida já sob a égide do Código de Processo Civil de 2015, razão pela qual o exame da questão controvertida será feito à luz desse diploma legal.
Consta, na exordial, que os ora apelantes são herdeiros necessários de Edil dos Santos Handan, por serem filhos de um irmão deste, ambos falecidos, e que Edil morreu solteiro e sem deixar filhos. Aduziram que Edil era filho de Alzira Maria dos Santos, quem lhe deixou, por herança, 25% de um imóvel situado na Rua Luiz Guadalupe, na Cidade de Lagoa da Prata, havendo inventário, com partilha judicial ocorrida em 26.06.1995. Ocorre que, em 29.11.2010, Edil dos Santos Handan celebrou contrato particular de promessa de cessão de direitos hereditários, a qual é eivada de vícios formais, visto que inexistiam direitos hereditários a serem cedidos, já que, no momento da celebração do contrato, já havia sido encerrado o inventário de Alzira Maria dos Santos, com partilha dos bens; a realização do ato exigia instrumento público, e não foi concedido o direito de preferência aos demais herdeiros. Aduziram, ainda, que não se comprovou o pagamento do preço, razões pelas quais a avença dever ser declarada nula.
O douto Magistrado singular julgou improcedente o pedido inicial, sob a fundamentação de que não se alegou vício de vontade ou incapacidade, mas apenas vícios formais, os quais podem ser superados, devendo-se preservar a avença, considerando-a como promessa de compra e venda, tendo em vista os requisitos deste negócio jurídico, bem como a prevalência da vontade dos contratantes.
A sentença não merece reforma.
Conforme bem ressaltado pelo Juiz primevo, a demanda visa à declaração de nulidade, sob argumentação de existência de vícios formais na celebração do negócio jurídico, quais sejam: inexistência de direitos hereditários a serem cedidos, uma vez que, no momento da celebração do contrato, já havia ocorrido a partilha dos bens; a realização do ato exigia instrumento público; não concessão do direito de preferência e não comprovação do pagamento do preço.
Com efeito, na exordial, não houve qualquer alegação específica referente a vício de vontade – dolo, coação, erro, fraude, simulação ou outro -, ou, ainda, que Edil dos Santos Handan não tinha o intuito de transferir a parte de que dispunha do imóvel para Elenice de Castro.
Dessarte, tendo em vista que os autores, na exordial, limitaram a extensão da lide aos vícios formais, pelo princípio da congruência, o julgamento deve-se ater a estes.
Imperioso destacar, ainda, que não se alegou qualquer incapacidade e que Edil dos Santos Handan não tinha herdeiros necessários, ausentes, assim, restrições para dispor de seus bens.
Quanto à alegada ausência de direitos hereditários à época da celebração da avença, constata-se que, de fato, a partilha dos bens ocorreu em 26.06.1995, tendo-se atribuído a Edil dos Santos Handan 25% de um imóvel situado na Rua Luiz Guadalupe, na Cidade de Lagoa da Prata, e a avença existente entre Edil e Elenice ocorreu em 29.11.2010, ou seja, após a individualização dos bens de cada herdeiro, f. 25 e 37.
Contudo, apesar da atecnia jurídica do instrumento da avença, tal fato não é hábil a torná-lo nulo.
O art. 112 do Código Civil preceitua que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.”
Sobre o tema leciona o doutrinador Ricardo Fiúza:
“A interpretação do ato negocial situa-se na seara do conteúdo da declaração volitiva, pois o intérprete do sentido negocial não deve ater-se, unicamente, à exegese do negócio jurídico, ou seja, ao exame gramatical de seus termos, mas sim fixar a vontade, procurando suas consequências jurídicas, indagando sua intenção, sem se vincular, estritamente, ao teor linguístico do ato negocial. Caberá, então, ao intérprete investigar qual a real intenção dos contratantes, pois sua declaração apenas terá significação quando lhes traduzir a vontade realmente existente. O que importa é a verdade real” (FIÚZA, Rcardo. Novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 120).
Da análise do instrumento contratual ora em debate, verifica-se que é inequívoca a vontade de Edil dos Santos Handan em prometer a transferência da fração que lhe cabia no imóvel à requerida Elenice de Castro, a teor do constante nas seguintes cláusulas:
“Cláusula quarta: Que, conforme processo de arrolamento de bens nº 0040/94, que tramita perante a comarca de Lagoa da Prata, o outorgante adquiriu a propriedade e posse de ¼ do imóvel suprarreferido, mantendo-a em comum com seus irmãos, conforme formal de partilha expedido em 26.06.1995, e declara ainda que os direitos supramencionados incidentes sobre o imóvel encontram-se completamente livres e desembaraçados de qualquer ônus, dívidas, inclusive fiscais, hipotecas legais, judiciais e convencionais, ações reais ou pessoais reipersecutórias e de quaisquer outros gravames. […]
Cláusula décima: Pelo falecimento de qualquer dos ora contratantes, não caberá qualquer desobrigação do presente ajuste, obrigando-se os seus respectivos herdeiros e sucessores, a qualquer título, a cumprir o aqui pactuado” (f. 22/24).
Nesse contexto, independentemente do nome atribuído à avença e da atecnia jurídica, referente à cessão de direitos hereditários, é imperiosa a conclusão de que foi celebrada, na realidade, promessa de compra e venda de fração do imóvel.
Destaca-se que a equivocada redação, provavelmente, decorreu da ausência do registro de formal de partilha no Cartório de Registro de Imóveis, que só se concretizou no ano de 2011 (f. 38/39).
Ademais, conforme bem consignado pelo Juiz a quo, ainda que se entendesse pela existência de nulidade no contrato, o caso ensejaria a aplicação do disposto no art. 170 do Código Civil, que preceitua que, “se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.”
Dessarte, por qualquer ângulo que se analise, constata-se que a avença deve ser interpretada como promessa de compra e venda.
Nesse sentido:
“Apelação cível. Cessão de direitos hereditários. Bem singular ou individualizado. Nulidade. Inexistência. Ineficácia relativa. Reconhecimento. Princípio da preservação dos contratos. – A lei declara ineficaz e não nula a cessão, pelo coerdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente. – O princípio da preservação dos contratos preconiza que, na medida do possível e razoável, deve se prestigiar a manutenção das avenças, porquanto os contratos são meios de circulação de riqueza, criando, destarte, condições favoráveis para o desenvolvimento econômico e social. Assim, a alienação de bem singular se tornará eficaz se houver autorização judicial posterior, convalidando-a, ou, ainda, se, consumada a partilha, o bem alienado vier a compor o quinhão do alienante” (TJMG – Apelação Cível 1.0672.09.411747-6/001 – Relator: Des. Estevão Lucchesi – 14ª Câmara Cível – j. em 1º.09.2011 – p. em 20.09.2011).
“Ação cominatória. Cessão onerosa de direitos hereditários. Bem imóvel. Contrato de compra e venda. Obrigação de dar. Falta de interesse de agir. Extinção do processo sem julgamento do mérito. – A cessão de direitos hereditários a título oneroso equivale à compra e venda que constituiu 'obrigação de dar coisa certa' […]” (TJMG – Apelação Cível 1.0435.08.005697-9/001 – Relator: Des. Tibúrcio Marques – 15ª Câmara Cível – j. em 29.07.2010 – p. em 31.08.2010).
No que se refere à alegação de nulidade em razão de a avença não ter sido realizada por instrumento público, tem-se que também não pode prosperar, tendo em vista que a promessa de compra e venda, ainda que de bem imóvel, pode ser celebrada por instrumento particular, a teor do art. 462 do Código Civil.
No que tange à sustentada supressão de direito de preferência, interpretando-se a avença como promessa de compra e venda, não se aplica o disposto no art. 1.794 do Código Civil, mas sim o contido do art. 504 do citado diploma legal, nos seguintes termos:
“Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de decadência”.
Todavia, verifica-se que não consta dos autos prova da manifestação inequívoca em se exercer o direito de preferência, bem como da observância de seus requisitos, notadamente o depósito do preço, no prazo de 180 dias da ciência do negócio jurídico.
Por fim, tem-se que, após o registro do formal de partilha, constatou-se que a fração do imóvel que se prometeu transferir à Elenice de Castro de fato pertencia a Edil dos Santos Handan, f. 38/38-v., e que, no próprio instrumento da avença, se registrou a quitação, tendo o preço sido pago no momento da assinatura do contrato, conforme disposto na cláusula sétima, f. 22/24, ausente, assim, qualquer irregularidade em relação ao objeto da promessa de compra e venda, bem como ao pagamento.
Pelo exposto, nego provimento ao recurso, mantendo na íntegra a sentença.
Considerando que a apelação foi interposta já na vigência do Código de Processo Civil de 2015 e que o art. 85, § 11, do referido diploma legal preceitua que o Tribunal, ao julgar recurso, deverá majorar os honorários advocatícios anteriormente impostos, aumento esses para 15% sobre o valor atualizado da causa.
Custas recursais, pelos apelantes.
É como voto.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores José Américo Martins da Costa e Antônio Bispo.
Súmula – NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO
Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG