Jurisprudência mineira – Direito das famílias – União estável contemporânea a casamento

JURISPRUDÊNCIA MINEIRA

JURISPRUDÊNCIA CÍVEL

DIREITO DAS FAMÍLIAS – UNIÃO ESTÁVEL CONTEMPORÂNEA A CASAMENTO – UNIÃO DÚPLICE – POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO EM FACE DAS PECULIARIDADES DO CASO – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO

– Ao longo de vinte e cinco anos, a apelante e o apelado mantiveram um relacionamento afetivo, que possibilitou o nascimento de três filhos. Nesse período de convivência afetiva – pública, contínua e duradoura – um cuidou do outro, amorosamente, emocionalmente, materialmente, fisicamente e sexualmente. Durante esses anos, amaram, sofreram, brigaram, se reconciliaram, choraram, riram, cresceram, evoluíram, criaram os filhos e cuidaram dos netos. Tais fatos comprovam a concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isso é família. O que no caso é polêmico é o fato de o apelado, à época dos fatos, estar casado civilmente. Há, ainda, dificuldade de o Poder Judiciário lidar com a existência de uniões dúplices. Há muito moralismo, conservadorismo e preconceito em matéria de Direito de Família. No caso dos autos, a apelada, além de compartilhar o leito com o apelado, também compartilhou a vida em todos os seus aspectos. Ela não é concubina – palavra preconceituosa – mas companheira. Por tal razão, possui direito a reclamar pelo fim da união estável. Entender o contrário é estabelecer um retrocesso em relação a lentas e sofridas conquistas da mulher para ser tratada como sujeito de igualdade jurídica e de igualdade social. Negar a existência de união estável, quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantém-se ao desamparo do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder. Como se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social que sempre aconteceu, acontece e continuará acontecendo. A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar irresponsabilidades e o enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor do outro.

Apelação Cível n° 1.0017.05.016882-6/003 –

Comarca de Almenara – Apelante: M.S.S. – Apelado: O.S.S. – Relatora: Des.ª Maria Elza

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em dar provimento parcial.

Belo Horizonte, 20 de novembro de 2008. – Maria Elza – Relatora.

N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S

DES.ª MARIA ELZA – Cuida-se de recurso de apelação cível interposto por M.S.D.S. contra ato do Juízo da 2ª Vara da Comarca de Almenara, que julgou improcedente o pedido de reconhecimento de união estável formulado pela apelante em face de O.S.S., ora parte apelada, sob o fundamento de que não há união estável quando uma das partes é casada civilmente.

Em razões recursais de f. 208/211-TJ, a recorrente afirma que, do relacionamento afetivo vivido com o apelado, foram gerados três filhos, o que evidencia a ocorrência de uma entidade familiar. Pede seja provido o recurso.

Em resposta ao recurso, o recorrido pugna, às f. 213/215-TJ, pelo seu não-provimento.

Parecer do Procurador de Justiça Luiz Varella, às f. 221/225-TJ, opinando pelo não-provimento do recurso.

É o relato. Decido.

Conheço do recurso, pois presentes os requisitos legais de admissibilidade. Ao longo de vinte e cinco anos, a apelante e o apelado mantiveram um relacionamento afetivo, que possibilitou o nascimento de três filhos: O.S.S.S., O.S.S.S. e O.S.S.S.

Nesse período de convivência afetiva – pública, contínua e duradoura -, um cuidou do outro, amorosamente, emocionalmente, materialmente, fisicamente e sexualmente. É o que comprova o conjunto probatório.

Durante esses anos, amaram, sofreram, brigaram, se reconciliaram, choraram, riram, cresceram, evoluíram, criaram os filhos e cuidaram dos netos. Tais fatos comprovam a concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isso é família.

O que no caso é polêmico é o fato de o apelado, à época dos fatos, estar casado civilmente. Há, ainda, dificuldade de o Poder Judiciário lidar com a existência de uniões dúplices. Há muito moralismo, conservadorismo e preconceito em matéria de Direito de Família.

No caso dos autos, a apelada, além de compartilhar o leito com o apelado, também compartilhou a vida em todos os seus aspectos. Ela não é concubina – palavra preconceituosa -, mas companheira. Por tal razão, possui direito a reclamar pelo fim da união estável. Entender o contrário é estabelecer um retrocesso em relação a lentas e sofridas conquistas da mulher para ser tratada como sujeito de igualdade jurídica e de igualdade social.

Negar a existência de união estável, quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantémse ao desamparo do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder. Como se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social que sempre aconteceu, acontece e continuará acontecendo.

A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar irresponsabilidades e o enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor do outro.

Sobre o tema, a doutrina de Maria Berenice Dias:

“Cabe questionar o que fazer diante de vínculo de convivência constituído independentemente da proibição legal e que persistiu por muitos anos, de forma pública, contínua, duradoura e, muitas vezes, com filhos. Negar-lhe a existência, sob o fundamento de ausência do objetivo de constituir família em face do impedimento, é atitude meramente punitiva a quem mantém relacionamentos afastados do referendo estatal. Rejeitar qualquer efeito a esses vínculos e condenálos à invisibilidade gera irresponsabilidades e enriquecimento ilícito de um em desfavor do outro. O resultado é mais que desastroso, é perverso. Negase divisão de patrimônio, nega-se obrigação de alimentar, nega-se direito sucessório. Com isso, nada mais se estará fazendo do que incentivar o surgimento desse tipo de relacionamento. Estar à margem do direito traz benefícios, pois não impõe nenhuma obrigação. Quem vive com alguém por muitos anos necessita dividir bens e pagar alimentos. Todavia, àquele que vive do modo que a lei desaprova, simplesmente, não advém qualquer responsabilidade, encargo ou ônus. Quem assim age, em vez de ser punido, acaba sendo privilegiado. Não sofre qualquer sanção e acaba sendo premiado” (Manual de direito das famílias. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 164).

Assim, à luz de uma interpretação baseada no princípio/fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, a existência concomitante do casamento não impede o reconhecimento da união estável, configurando o que a jurisprudência convencionou chamar de união dúplice.

Neste Tribunal, é a primeira vez que adoto esse posicionamento. Não por conservadorismo. Mas pelo fato de os casos anteriores não terem deixado tão evidente a existência de um núcleo familiar caracterizador de uma união estável.

A partir do exame dos elementos específicos que o caso concreto ora apresenta, evidenciados os requisitos caracterizadores da união estável (art. 1.723 do CC), considero o reconhecimento da união estável entre a apelante e o apelado, em concomitância ao casamento, ser a medida mais adequada à realidade e ao estágio atual de convivência entre as pessoas em nossa sociedade. 

O contrário disso, conforme ressalta o Desembargador Rui Portanova, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

“[…] é fechar os olhos a uma realidade que cada  vez mais tem batido à porta do Judiciário, não sendo possível o Estado deixar de dar a devida tutela a toda uma história de vida das pessoas envolvidas no litígio, sob pena de causar uma grave injustiça (Apelação Cível nº 70021319421).

Nesse sentido, a título de contribuição para o entendimento ora defendido, as palavras da Desembargadora Maria Berenice Dias, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em voto proferido no julgamento da AC nº 70017045733:

“O ordenamento civil, consubstanciado no princípio da monogamia, não reconhece efeitos à união estável quando um do par ainda mantém  íntegro o casamento (art. 1.723, § 1º, do Código Civil). Certamente, esse é o ideal da sociedade: um relacionamento livre de toda a ordem de traições e, se possível, eterno até que `a morte os separe`. Contudo, a realidade que se apresenta é diversa, porquanto comprovada a duplicidade de células familiares. E conferir tratamento desigual a essa situação fática importaria grave violação ao princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana. O Judiciário não pode se esquivar de tutelar as relações baseadas no afeto, não obstante as formalidades muitas vezes impingidas pela sociedade para que uma união seja `digna` de reconhecimento judicial”.

Nessa mesma linha, cito jurisprudência que admite a possibilidade de reconhecimento de união estável paralela a outro vínculo preexistente de um dos companheiros, seja ele casamento ou união estável:

“Apelação cível. 1) União estável paralela a outra união estável. Reconhecimento. – O anterior reconhecimento judicial de união estável entre o falecido e outra companheira não impede o reconhecimento da união estável entre ele e a autora, paralela àquela, porque o Direito de Família moderno não pode negar a  existência de uma relação de afeto que também se revestiu do mesmo caráter de entidade familiar. Preenchidos os requisitos elencados no art. 1.723 do CC, procede a ação, deferindo-se à autora o direito de perceber 50%  dos valores recebidos a título de pensão por morte pela outra companheira. 2) Ressarcimento de danos materiais e extrapatrimoniais. – Descabe a cumulação de ação declaratória com ação indenizatória, mormente considerando-se que o alegado conluio, lesão e má-fé dos réus na outra ação de união estável já julgada deve ser deduzido em sede própria (segredo de justiça). Apelação parcialmente provida” (Apelação Cível nº 70012696068, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator José Ataídes Siqueira Trindade, j. em 06.10.2005).

“Apelação. União dúplice. União estável. Prova. Meação. `Triação`. Sucessão. Prova do período de união e união dúplice. – A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante a outra união estável também vivida pelo de cujus. Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. Meação (Triação). Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre as companheiras e o de cujus. Meação que se transmuda em `triação`, pela duplicidade de uniões. Deram provimento à apelação. Por maioria.” (Segredo de justiça) (Apelação Cível nº 70011258605, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Rui Portanova, j. em 25.08.2005.)

“União estável. Reconhecimento.  Duplicidade de células familiares. – O Judiciário não pode se esquivar de tutelar as relações baseadas no afeto, inobstante as formalidades muitas vezes impingidas pela sociedade para que uma união seja `digna` de reconhecimento judicial. Dessa forma, havendo duplicidade de uniões estáveis, cabível a partição do patrimônio amealhado na concomitância das duas relações. Negado provimento ao apelo”. (Segredo de justiça) (Apelação Cível nº 70010787398, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relatora Maria Berenice Dias, j. em 27.04.2005). “União estável. Reconhecimento. Casamento de papel. União dúplice. – Caso em que se reconhece a união estável da autora apelada com o de cujus, apesar de até o falecimento, o casamento dela  com o apelante estar registrado no registro civil. – Negaram provimento, por maioria, vencido o Relator”. (Apelação Cível nº 70006046122, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Rui Portanova, j. em 23.10.2003.) 

“Apelação. Casamento e concubinato. União dúplice. Efeitos. Notório estado de união estável do de cujus com a apelada, enquanto casado com a apelante. De se reconhecer o pretendido direito ao pensionamento junto ao IPERGS. negaram provimento. Por maioria”. (Apelação Cível nº 70006936900, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Rui Portanova, julg. em 13.11.2003.)

Para o Desembargador Rui Portanova, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

“Conferir conseqüências jurídicas distintas a duas situações fáticas semelhantes (duas células familiares) importaria violação ao princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Seria, do ponto de vista daquele que pleiteia o reconhecimento de sua relação, em muitos casos, dizer que a pessoa não viveu aquilo que viveu, que é uma pessoa `menor` do que aquelas que compõem a relação protegida pelo Estado, circunstância que, evidentemente, configura uma indignidade. Nesta linha, é o ensinamento de Ingo Sarlet, `nem mesmo o interesse comunitário poderá justificar ofensa à dignidade individual, esta considerada como valor absoluto e insubstituível de cada ser humano`” (Apelação Cível nº 70021319421).

Por conseguinte, resta demonstrada a viabilidade jurídico-constitucional quanto ao reconhecimento das uniões paralelas, uma vez presentes os pressupostos da segunda união, previstos no art. 1.723 do CC.

Configurada união estável, possui a apelante direito de pleitear alimentos. Ao longo dos anos de vida em comum com a apelante, foi o recorrido o responsável por prover as despesas básicas de manutenção da recorrente.

A esse respeito, vejam-se as declarações do recorrido, à f. 102-TJ:

“[…]que contribuía com a feira da casa da requerente semanalmente, que a casa em que a requerente mora atualmente foi doada pelo requerido”.

Dessarte, configurado o dever de alimentar, arbitro os alimentos no valor de 3 (três) salários mínimos. Montante este compatível com a capacidade econômica do recorrido e com a necessidade da apelante.

O pedido de reparação material pelos serviços prestados deve ser rejeitado, porquanto tais serviços decorreram em proveito do casal, e não apenas do apelado.

O pedido de reparação por dano moral também deve ser rejeitado. O fim de um relacionamento amoroso, por mais doloroso que seja, não gera reparação por dano moral. A dor de amor é aquela dor que faz parte da vida e quem ama estará sempre sujeito a ela. Afinal, ninguém é obrigado a ficar com ninguém. Ademais, não configura ato ilícito terminar um relacionamento afetivo.

Pelo exposto, dou parcial provimento ao recurso, para julgar procedentes os pedidos de reconhecimento de união estável, de dissolução  de união estável e de obrigação alimentar, no valor de três salários mínimos, do apelado para com a apelante, a ser paga até o dia 10 (dez) de cada mês. Por ter decaído a recorrente de parte mínima  do pedido, ficam invertidos os ônus de sucumbência.

Custas, pelo recorrido.

Votaram de acordo com a Relatora os Desembargadores Nepomuceno Silva e Mauro Soares de Freitas.

Súmula – DERAM PROVIMENTO PARCIAL.

 

Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico