JURISPRUDÊNCIA MINEIRA
INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
Corte Superior
INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE: DIREITO DE FAMÍLIA – UNIÃO ESTÁVEL – SUCESSÃO – COMPANHEIRO SOBREVIVENTE – ART. 1.790, INCISO III, DO CÓDIGO CIVIL
– O tratamento diferenciado entre cônjuge e companheiro encontra guarida na própria Constituição Federal, que distinguiu entre as duas situações jurídicas. Não é inconstitucional o art. 1.790, III, do Código Civil, que garante ao companheiro sobrevivente, em concurso com outros parentes sucessíveis, o direito a 1/3 da herança dos bens comuns.
Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade Cível n° 1.0512.06.032213-2/002 na Apelação Cível nº 1.0512.06.032213-2/001 – Comarca de Pirapora – Requerente: 6ª Câmara Cível TJMG – Requerida: Corte Superior – Relator: Des. Paulo Cézar Dias
A C Ó R D Ã O
Vistos etc., acorda a Corte Superior do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sob a Presidência do Desembargador Cláudio Costa, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, em rejeitar preliminar de sobrestamento, por maioria, e julgar improcedente o pedido, por maioria.
Belo Horizonte, 9 de novembro de 2011. – Paulo Cézar Dias – Relator.
N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S
DES. ARMANDO FREIRE – Sr. Presidente, pela ordem. Gostaria de fazer uma proposição de sobrestamento, porque me parece que essa matéria teve seu julgamento sobrestado no STJ, ou seja, recursos respectivos.
Admito, igualmente, o presente incidente de inconstitucionalidade, que tem por objeto o exame da constitucionalidade do art. 1.790, inciso III, do Código Civil de 2002, que regula, em linhas gerais, o direito sucessório do companheiro sobrevivente. Antes de expor meu entendimento quanto ao mérito, suscito, de ofício, com a devida vênia, preliminar de suspensão do julgamento.
Permito-me trazer ao conhecimento de V.Exas. que, por ocasião da sessão de julgamento de 07.06.2011, durante a apreciação da Apelação Cível n° 1.0534.09.014315-5/001, de minha relatoria, o eminente Desembargador Eduardo Andrade suscitou a preliminar de suspensão do recurso, que ora reitero, com a devida e especial vênia, nos seguintes termos:
"O sempre cuidadoso Relator, Des. Armando Freire, nega provimento ao recurso para confirmar a sentença primeva que julgou procedente o pedido inicial e anulou a adjudicação homologada no Processo nº 1.0534.06.005983-7, dos bens deixados pelo falecimento de A.A.S.
Considera Sua Excelência que, em que pese à Constituição da República de 1988 ter garantido tratamento igualitário ao casamento e à união estável (art. 226, § 3º), quanto à sucessão e partilha de bens, deverão ser observadas aos disposições do Código Civil, concentradas no art. 1.790.
O douto revisor, Des. Alberto Vilas Boas, por sua vez, põe-se pelo provimento do apelo, para julgar improcedente o pedido formulado na ação anulatória de partilha, considerando inconstitucional o art. 1.790 do Código Civil, por violação ao postulado da igualdade, na medida em que impõe tratamento diferenciado entre o cônjuge e o companheiro no âmbito do direito sucessório. Entende aplicável, portanto, a disciplina contida no art. 1.829 do mesmo diploma legal.
Verifica-se, portanto, que o desfecho da demanda perpassa, necessariamente, a análise da constitucionalidade, ou não, do art. 1.790 do Código Civil, em que se assenta o pedido inaugural.
E, conforme notícia veiculada no site do Superior Tribunal de Justiça, na última terça feira, 31.05.11, ‘a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) suscitou incidente de inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 1.790 do Código Civil, editado em 2002, e que inovou o regime sucessório dos conviventes em união estável’ (disponível em http://www.stj.jus.br/portalstj/publicacao/engine.wsp ?tmp.area=398 &tmp. texto=101990).
Constou, ainda, do referido informativo:
‘A questão foi levantada pelo ministro Luis Felipe Salomão, Relator de recurso interposto por companheira de falecido contra o espólio do mesmo.
Com isso, a questão será apreciada pela Corte Especial do STJ.
Segundo o ministro, a norma tem despertado, realmente, debates doutrinário e jurisprudencial de substancial envergadura. Em seu voto, o Relator citou manifestações de doutrinadores, como Francisco José Cahali, Zeno Veloso e Fábio Ulhoa, sobre o assunto. ‘A tese da inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC tem encontrado ressonância também na jurisprudência dos tribunais estaduais. De fato, àqueles que se debruçam sobre o direito de família e sucessões, causa no mínimo estranheza a opção legislativa efetivada pelo art. 1.790 para regular a sucessão do companheiro sobrevivo’, afirmou.
O ministro lembrou que o caput do art. 1.790 faz alusão apenas a bens ‘adquiridos onerosamente na vigência da união estável’. ‘É bem de ver, destarte, que o companheiro, mesmo na eventualidade de ter ‘direito à totalidade da herança’ [inciso IV], somente receberá aqueles bens a que se refere o caput, de modo que os bens particulares do de cujus, aqueles adquiridos por doação, herança ou antes da união, ‘não havendo parentes sucessíveis’, terá a sorte de herança vacante’, disse Salomão.
Quanto ao inciso III (‘Se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança’), o ministro destacou que, diferentemente do que acontece com a sucessão do cônjuge, que somente concorre com descendentes e ascendentes (com estes somente na falta daqueles), o companheiro sobrevivo concorre também com os colaterais do falecido, pela ordem, irmãos; sobrinhos e tios; e primos, sobrinho-neto e tio-avô. ‘Por exemplo, no caso dos autos, a autora viveu em união estável com o falecido durante 26 anos, com sentença declaratória passada em julgado, e ainda assim seria, em tese, obrigada a concorrer com irmãos do autor da herança, ou então com os primos ou tio-avô do de cujus’, alertou o ministro.
Salomão frisou, ainda, que o Supremo Tribunal Federal (STF), em duas oportunidades, anulou decisões proferidas por tribunais estaduais que, por fundamento constitucional, deram interpretação demasiadamente restritiva ao artigo, sem submeter a questão da constitucionalidade ao órgão competente, prática vedada pela Súmula Vinculante nº 10. ‘Diante destes elementos, tanto por inconveniência quanto por inconstitucionalidade, afigura-se-me que está mesmo a merecer exame mais aprofundado, pelo órgão competente desta Corte, a questão da adequação constitucional do art. 1.790 do CC/02, afirmou o ministro".
Em vista disso, reconhecendo o papel do Superior Tribunal de Justiça como órgão ao qual compete a última palavra em matéria de interpretação de lei federal, e cuidando para não criar, para a parte, expectativa, que, ao final, poderá não ser acolhida por aquela Corte, tenho por bem arguir, de ofício, a preliminar de suspensão do recurso, para que aguarde o julgamento do incidente de inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 1.790 do Código Civil de 2002, suscitado no bojo do REsp 1135354.
Deverão os autos aguardar, em Secretaria, até o julgamento do mencionado incidente".
Considero pertinente e oportuno arguir tal questão de ordem preliminar, a fim de que os eminentes Desembargadores examinem se, em sede do presente incidente de arguição de inconstitucionalidade, a solução deverá ser a mesma, ou seja, se o julgamento deverá ser suspenso enquanto não julgado o incidente de inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 1.790 do Código Civil de 2002, suscitado no bojo do REsp 1135354.
DES. PAULO CÉZAR DIAS – Sr. Presidente.
Apreciei toda essa matéria e não vejo como sobrestar o julgamento deste feito, aqui, na Corte, em razão de julgamentos que estão sendo efetivados no STJ.
A questão está clara e evidente dentro do fundamento que está no voto que irei proferir e por decisões já proferidas pelos tribunais relativos à matéria, no sentido de que não existe inconstitucionalidade manifesta no art. 1.790, inciso III, do Código Civil.
Por esse motivo, rejeito a proposta feita pelo culto Revisor.
DES. DÁRCIO LOPARDI MENDES – Sr. Presidente. Rejeito a proposição.
DES. ANTÔNIO ARMANDO DOS ANJOS – Sr. Presidente. Sou pela continuidade do julgamento, acompanhando o Relator.
DES. FRANCISCO KUPIDLOWSKI – Rejeito, data venia.
DES. MAURÍCIO BARROS – Sr. Presidente.
Rejeito e justifico, porque a eventual suspensão deve dar-se em caso de eventual recurso especial a ser interposto futuramente, e não do julgamento do presente incidente.
Com a devida vênia, rejeito.
DES. DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA – Sr. Presidente. Rejeito, acompanhando o douto Relator.
DES.ª HELOÍSA COMBAT – Sr. Presidente. Com a devida vênia, rejeito, fazendo minhas as palavras do ilustre Des. Maurício Barros.
DES.ª SELMA MARQUES – Sr. Presidente. Também rejeito, nos termos do voto do Des. Maurício Barros.
DES. ALBERTO DEODATO NETO – Com o Relator.
DES. RONEY OLIVEIRA – Rejeito.
DES. CARREIRA MACHADO – Rejeito.
DES. ALMEIDA MELO – Sr. Presidente. Está no STJ um incidente de inconstitucionalidade, em recurso especial, portanto, provavelmente, o STJ não entrará na matéria constitucional, porque não tem competência para isso, a não ser em jurisdição originária. Em jurisdição de recurso especial, ele não pode tratar de matéria constitucional, ainda que, às vezes, indevidamente, trate de matéria constitucional, mas, tecnicamente, ele não pode fazê-lo.
E a nossa decisão, aqui, em incidente de inconstitucionalidade, o recurso que cabe não é ao STJ, ou seja, o recurso eventualmente excepcional que vai caber é o extraordinário lá no Supremo.
Então, a decisão do STJ não tem a menor repercussão sobre a nossa jurisdição neste caso.
Data venia, entendo que é nosso dever dar continuidade ao julgamento.
DES. JOSÉ ANTONINO BAÍA BORGES – Sr. Presidente. Peço vênia ao Des. Armando Freire para acompanhar o voto do Relator e dar continuidade ao julgamento, especialmente com essa observação muito bem posta do Des. Almeida Melo.
DES. KILDARE CARVALHO – Sr. Presidente.
Voto pela continuidade do julgamento, porque, como suscitou o Des. Almeida Melo, o resultado do julgamento, nesta Corte, do incidente de inconstitucionalidade só poderia eventualmente ser revisto pelo Supremo Tribunal Federal, e não pelo STJ.
DES.ª MÁRCIA MILANEZ – Acompanho a divergência.
DES. BRANDÃO TEIXEIRA – Sr. Presidente.
Rogando vênia ao Des. Armando Freire, coloco-me de acordo com o eminente Relator, pela continuidade do julgamento, tendo em vista a questão suscitada pelo eminente Des. Almeida Melo, porque eventual recurso da decisão que aqui for tomada será destinada ao excelso Supremo Tribunal Federal, e não ao Superior Tribunal de Justiça.
DES. ALVIM SOARES – Com o Relator.
DES. EDIVALDO GEORGE DOS SANTOS – Sr. Presidente. Dou-me por suspeito em razão de foro íntimo.
DES. GERALDO AUGUSTO – Sr. Presidente.
Embora o merecido respeito às opiniões em contrário, acompanho as razões do eminente Des. Armando Freire.
DES. BELIZÁRIO DE LACERDA – Acompanho o Relator.
DES. EDILSON FERNANDES – Sr. Presidente.
Com a devida vênia, rejeito a questão levantada pelo eminente Des. Armando Freire.
DES. ELIAS CAMILO – Sr. Presidente. Acompanho o eminente Relator, data venia.
DES. TIBÚRCIO MARQUES – Sr. Presidente.
Também acompanho o Relator, até pela questão suscitada pelo Des. Almeida Melo, de que a competência para julgar eventual recurso seria do Supremo Tribunal Federal.
DES. PRESIDENTE (CLÁUDIO COSTA) – Por maioria, rejeitaram o sobrestamento proposto pelo Des. Armando Freire. Com a palavra o Relator quanto ao mérito.
DES. PAULO CÉZAR DIAS – Cuida-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela 6ª Câmara Cível deste Tribunal no julgamento da Apelação Cível nº 1.0512.06.032213-2/001, em que é apelante L.J.S e M.S.S e apelados M.S.S., J.T.D. e L.J.S.
Entendendo imprescindível à apreciação do mérito do recurso interposto, o Relator da apelação, o eminente Desembargador Edivaldo George dos Santos, arguiu o presente incidente, que tem por escopo o exame da constitucionalidade do art. 1.790, inciso III, do Código Civil, que regula, em linhas gerais, o direito sucessório do companheiro sobrevivente.
Argumenta, em síntese, que o dispositivo em tela reserva tratamento discriminatório e preconceituoso ao companheiro sobrevivente, tendo em vista que a CR/88 expressamente reconheceu a união estável entre homem e mulher, conferindo-lhe o status de família, razão por que não pode o legislador infraconstitucional impor qualquer diferenciação entre os dois institutos.
Atendido o disposto no art. 249, caput (final), do Regimento Interno deste Tribunal, foram os autos enviados à douta Procuradoria de Justiça, que se manifestou pelo acolhimento do incidente e pela declaração da inconstitucionalidade da norma, por afronta aos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
É o relatório.
Ausentes as hipóteses previstas no art. 248 do Regimento Interno, reconheço a relevância da presente arguição.
O antigo Código Civil não contemplou a união estável. A questão atinente à sucessão do companheiro era disciplinada pelas Leis 8.971/94 e 9.728/96, que deferiam ao companheiro sobrevivente, na falta de descendente e ascendente, o mesmo status do cônjuge supérstite, afastando os parentes colaterais da sucessão e conferindo-lhe a totalidade da herança.
O Código Civil de 2002, no tocante à união estável, estabeleceu norma semelhante à do casamento, dispondo serem aplicáveis àquela as disposições do regime da comunhão parcial se de outra forma não dispuserem os conviventes (art. 1.725), o mesmo não se dando quanto à sucessão hereditária. No que diz respeito à meação, na união estável, repartem-se os bens comuns, ou seja, aqueles advindos de uma atividade em colaboração com o de cujus ou adquiridos onerosamente no curso da união, excluídos os bens particulares e os obtidos a título gratuito, e no casamento o direito estende-se aos bens adquiridos por apenas um dos cônjuges, em razão do regime de bens adotado.
O atual Código Civil modificou substancialmente a questão sucessória entre cônjuges e companheiros. Na parte que nos interessa, o texto legal hostilizado dispõe, in verbis:
"Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;\
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança".
O cônjuge supérstite, por sua vez, segundo a ordem de vocação hereditária disciplinada no atual Código Civil, além da parte a que tem direito com a extinção da sociedade conjugal e observado o regime legal pactuado, ainda foi contemplando como herdeiro, nos seguintes termos:
"Art. 1.829 – A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.
Art. 1.832 – Em concorrência com os descendentes (artigo 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com quem concorrer.
Art. 1.837 – Concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau.
Art. 1.838 – Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente".
Do confronto dos dispositivos legais supramencionados, resta claro que, na falta de descendentes e ascendentes do de cujus, caberá ao companheiro sobrevivente o direito a um terço da herança que couber aos colaterais ou ascendentes, enquanto o cônjuge supérstite divide o quinhão com o ascendente, mas, concorrendo colaterais, tem direito à sua integralidade.
Cinge-se a controvérsia em saber se o tratamento diferenciado conferido pela lei civil ao cônjuge supérstite e ao companheiro sobrevivente malfere os princípios da igualdade, da dignidade humana, bem como a regra disposta no art. 226, § 3º, da Constituição da República, dispondo, in verbis:
"Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[…]
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".
Penso que não. Embora a Constituição reconheça a união estável como entidade familiar, merecedora da proteção do Estado, não equiparou os dois institutos, mantendo a peculiaridade de cada um, motivo por que são regidos por disposições distintas. O casamento continua sendo o paradigma, principal instituto do Direito de Família, tanto que o legislador constituinte manda que a lei venha a facilitar a conversão da união estável em casamento; noutras palavras, se o constituinte pretendeu que toda união estável se converta em casamento, é porque reconheceu que união estável não é casamento, não equiparando os institutos, pois, quando quis assim, o fez como no caso da filiação.
Em que pesem divergências existentes, tenho que o tratamento diferenciado ao direito sucessório do companheiro não vulnera o princípio constitucional da igualdade, pois este não tem por fim tratar todos igualmente, senão naqueles aspectos em que as pessoas se encontram em situações idênticas, o que não ocorre na espécie.
Apropriadamente ressaltou Manoel Gonçalves Ferreira Filho (em sua obra intitulada Curso de direito constitucional):
"[…] a própria Constituição Federal ainda prefere à união estável o casamento. De fato, manda que a lei venha a ‘facilitar sua conversão em casamento’" (35. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2009, p. 374/375).
Sobre o tema em comento, confira-se a lição de Maria Helena Diniz (em sua obra Curso de direito civil brasileiro. 19. ed. 5º volume, p. 370):
"[…] Em momento algum a norma constitucional colocou a união estável no mesmo patamar do casamento; este foi até mesmo priorizado.
Realmente, se, com a união estável, os conviventes tiverem os mesmos deveres e direitos, qual seria a motivação para efetuar aquela conversão? Se as pessoas vivem em união estável, o fazem para escapar das obrigações matrimoniais. Deveria o Estado, então, atribuir-lhe os mesmos efeitos do casamento? Se, ao optar pela união estável, os conviventes expressam o livre exercício da liberdade de não aderir ao matrimônio, o art. 226, § 3º, da Constituição Federal apenas cria a função estatal de proteger o companheirismo como entidade familiar, editando, p. ex., normas sobre subvenção familiar para aquisição de casa própria ou assistência educacional e de promover o incentivo de sua conversão em casamento, apontando procedimentos rápidos e eficazes para tanto".
O egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, apreciando a matéria sub judice, assim se pronunciou:
"Constitucional e civil. Arguição de inconstitucionalidade. Artigo 1.790, inciso III, do Código Civil. Direito sucessório do companheiro diferenciado em relação ao cônjuge supérstite. União estável não equiparada ao casamento pela Constituição. Artigo 226, § 3º, da CF. Arguição rejeitada.
– Embora o legislador constituinte tenha reconhecido a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, não a equiparou ao casamento de modo a atrair a unificação do regime legal acerca do direito sucessório, haja vista a observação final no texto constitucional da necessidade de lei para a facilitação de sua conversão em casamento – art. 226, § 3º, da CF.
– Não incide em inconstitucionalidade o tratamento diferenciado conferido pelo art. 1.790, inciso III, do Código Civil, acerca do direito sucessório do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite quanto à concorrência daquele com outros parentes sucessíveis do de cujus.
– Arguição rejeitada. Unânime" (AI – Arguição de Inconstitucionalidade nº 2010002004631-6 – Relator Desembargador Otávio Augusto).
No mesmo sentido, em caso similar, decidiu o egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: "Incidente de inconstitucionalidade. Família. União estável. Sucessão.
– A Constituição da República não equiparou a união estável ao casamento. Atento à distinção constitucional, o Código Civil dispensou tratamento diverso ao casamento e à união estável. Segundo o Código Civil, o companheiro não é herdeiro necessário. Aliás, nem todo cônjuge sobrevivente é herdeiro. O direito sucessório do companheiro está disciplinado no art. 1.790 do CC, cujo inciso III não é inconstitucional. Trata-se de regra criada pelo legislador ordinário no exercício do poder constitucional de disciplina das relações jurídicas patrimoniais decorrentes de união estável. Eventual antinomia com o art. 1.725 do Código Civil não leva a sua inconstitucionalidade, devendo ser solvida à luz dos critérios de interpretação do conjunto das normas que regulam a união estável. Incidente de inconstitucionalidade julgado improcedente, por maioria" (Arguição de Inconstitucionalidade nº 70029390374 – Relatora para o acórdão Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza).
Dessa forma, o que se verifica é o respeito à autonomia da vontade, tanto para quem assumiu o ônus do casamento, tanto para quem não o assumiu e viveu em união estável, estando ambas as situações devidamente regulamentadas e protegidas. Em ambos os casos, há limitações aos quinhões, no primeiro decorrente do regime de bens adotado, e no segundo da regulamentação legal do direito sucessório dos companheiros. O tratamento diferenciado entre cônjuge e companheiro pode não ter sido a melhor opção do legislador ordinário, mas encontra guarida na própria Constituição Federal. Cumpre, por oportuno, observar que os colaterais não são herdeiros necessários, assim nada impede que o autor da herança, como no casamento civil, disponha em testamento dos seus bens particulares e da sua meação relativamente ao patrimônio comum, nomeando seu companheiro herdeiro universal. Logo, não representa ofensa à norma constitucional que reconhece a união estável como entidade familiar, ou a qualquer princípio constitucional, o tratamento conferido pelo art. 1.790, inciso III, do Código Civil, que garante ao companheiro sobrevivente, em concurso com demais parentes sucessíveis – ascendentes e colaterais até quarto grau, o direito a 1/3 da herança, resguardados, digase de passagem, o direito à meação dos bens adquiridos onerosamente durante a convivência.
Ante o exposto, rejeito o presente incidente, haja vista a manifesta constitucionalidade do art. 1.790, inciso III, do Código Civil.
Concluído o julgamento, sejam os autos devolvidos à colenda Sexta Câmara Cível, para que prossiga no julgamento da apelação.
DES. ARMANDO FREIRE – Sr. Presidente. Peço vista dos autos.
DES. FRANCISCO KUPIDLOWSKI – Sr. Presidente, pela ordem. Com a devida vênia do Des. Armando Freire, acompanho o Relator, em adiantamento de voto.
DES. DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA – Sr. Presidente, pela ordem. Gostaria de adiantar o meu voto. Data venia, acompanho o Relator para julgar improcedente.
DES.ª SELMA MARQUES – Sr. Presidente, pela ordem. Com a devida vênia, adianto o meu voto para acompanhar o eminente Relator.
DES. ALBERTO DEODATO NETO – Sr. Presidente, pela ordem. Gostaria de adiantar o meu voto. Com o Relator.
DES. ALVIM SOARES – Sr. Presidente, pela ordem. Gostaria de adiantar o meu voto.
Compulsando estes autos atentamente, peço vênia para julgar este incidente procedente.
Com efeito, dispõe o art. 1.790, III, do Código Civil que o companheiro ou a companheira participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, na proporção de 1/3 da herança, se concorrer com outros parentes sucessíveis que não aqueles previstos nos incisos I e II do mesmo dispositivo legal.
O art. 1.838 do Código Civil, por sua vez, estabelece que, em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente.
Veja-se, portanto, que o tratamento sucessório conferido ao companheiro ou à companheira é completamente discriminatório, malferindo o art. 5º, caput, e o art. 226, § 3º, da Constituição da República.
Não há razão de ser para que seja dado tratamento diferenciado para as situações que tanto se assemelham, mesmo porque a família constituída pelo casal em união estável não pode ser considerada uma família "inferior" àquela constituída pelas pessoas que realizaram o casamento civil ou mesmo o religioso.
A não ser por esse tratamento discriminatório entre a família civil e a família constituída mediante união estável, não há razão de ser da norma impugnada. Ora, a sociedade não ver mais, ou pelo menos não deveria ver, a união estável como algo reprovável, e mesmo aqueles que a veem fundam-se mais em um critério religioso do que jurídico, o que não pode ser admitido por ser a República Federativa do Brasil um Estado laico.
Mister ressaltar que o pilar de nosso Estado Democrático de Direito se funda na dignidade da pessoa humana, segundo art. 1º, III, da Constituição Federal, sendo até mesmo curiosa a atitude de nosso legislador, que, em pleno século XXI, diferencia cônjuge de companheiro, algo inadmissível, data venia.
O que importa na realidade não é o ato de se casar, mas de constituir uma família, esta sim a base da sociedade, a quem o Estado deve conferir especial proteção. Pensar de forma contrária, data venia, é dar mais valor a um simples ato civil, "casamento", do que realmente ao que interessa, "a constituição da família". É dar mais valor à forma do que ao conteúdo.
Ante o exposto, julgo procedente este incidente para declarar a inconstitucionalidade do art. 1.790, III, do Código Civil.
É como voto.
Súmula – POR MAIORIA, REJEITARAM PRELIMINAR DE SOBRESTAMENTO LEVANTADA PELO DES. ARMANDO FREIRE. PEDIU VISTA O DES. ARMANDO FREIRE, APÓS VOTAREM JULGANDO IMPROCEDENTE O RELATOR E, EM
ADIANTAMENTO DE VOTO, OS DES. FRANCISCO KUPIDLOWSKI, DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA, SELMA MARQUES ALBERTO DEODATO NETO. JULGAVA PROCEDENTE, EM ADIANTAMENTO DE VOTO, O DES. ALVIM SOARES. DEU-SE POR SUSPEITO O DES. EDIVALDO GEORGE DOS SANTOS.
N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S
DES. PRESIDENTE (CLÁUDIO COSTA) – O julgamento deste feito foi adiado na sessão do dia 26.10.2011, a pedido de S.Ex.ª, após, por maioria, rejeitarem preliminar de sobrestamento levantada pelo Des. Armando Freire, depois de votarem o Relator e, em adiantamento de voto, os Des. Francisco Kupidlowski, Dídimo Inocêncio de Paula, Selma Marques e Alberto Deodato Neto julgando improcedente, e o Des. Alvim Soares, em adiantamento de voto, julgando procedente. Deu-se por suspeito o Des. Edivaldo George dos Santos.
Com a palavra o Des. Armando Freire.
DES. ARMANDO FREIRE – Vencido quanto à questão do sobrestamento do feito, que sugeri diante da existência de julgamento de incidente de inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 1.790 do Código Civil, iniciado pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no AI no Recurso Especial nº 1.135.354 – PB, passo a expor minhas demais conclusões.
O presente incidente de inconstitucionalidade tem por objetivo o exame, por esta Corte Superior, da constitucionalidade da referida norma infraconstitucional, que regula, em linhas gerais, o direito sucessório do(a) companheiro(a) sobrevivente.
Também reconheço a relevância da arguição e admito o incidente, que veicula situação que impõe observância ao que dispõe a Súmula Vinculante nº 10 do Supremo Tribunal Federal.
Aliás, a título de ilustração, destaco que o Ministro Carlos Ayres Britto, em decisão (§ 1º-A do art. 557 do CPC) proferida no RE 597952/RS, aos 24.06.2009, cassou acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que havia sido proferido sem que o colegiado tivesse remetido a apreciação da declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790, III, do Código Civil para julgamento perante o Pleno daquele Tribunal de Justiça. Com efeito, o eminente Ministro determinou que se procedesse a novo julgamento, nos termos do art. 97 da Constituição Federal.
Quanto ao mérito, após reapreciar a arguida inconstitucionalidade da citada norma do Código Civil, concluo por manter entendimento que antes adotava (exposto no julgamento da 1ª Câmara Cível referido na preliminar que suscitei) e me coloco de acordo com o eminente Relator, considerando, sobretudo, os respeitáveis fundamentos que o conduziram à conclusão de que o tratamento diferenciado entre cônjuges e companheiros no âmbito do direito sucessório regulado pela norma infraconstitucional encontra guarida na própria Constituição da República.
Com a vênia devida dos que entendem diversamente, a exemplo da douta Procuradoria de Justiça, que, em substancioso parecer, opina pelo acolhimento do incidente, entendo que a norma não revela afronta aos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
A Constituição da República reconhece, para efeito da proteção do Estado, "a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar", o que não significa que união estável seja instituto idêntico ao casamento. São espécies do gênero entidade familiar, mas, de fato, não são a mesma coisa e não geram os mesmíssimos efeitos jurídicos. Tanto é assim que, tal como exposto no erudito voto do eminente Relator, os dois institutos apresentam peculiaridades, sendo regidos por disposições necessariamente distintas. Tanto não são iguais que a Carta Magna estabelece que a lei deve facilitar a conversão de um em outro (§ 3º do art. 223).
A propósito, o fato de o ordenamento jurídico constitucional considerar a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, não impede que a legislação infraconstitucional discipline a sucessão para os companheiros e os cônjuges de forma diversa para o caso de o(a) companheiro(a) sobrevivente "concorrer com outros parentes sucessíveis".
Aliás, a questão sucessória do(a) companheiro(a) sobrevivente deve ser resolvida no plano infraconstitucional. O legislador infraconstitucional pode estabelecer norma que veicula tratamento sucessório específico à união estável, diverso da situação em que se insere o cônjuge supérstite frente ao instituto do casamento. Pode prestigiar a igualdade material, tratando de forma diferente situações reconhecidamente desiguais.
Ainda no plano infraconstitucional, antes mesmo de se falar em sucessão de companheiro supérstite, há que se provar a existência da união estável. Após caracterizada a entidade familiar, no âmbito de uma inequívoca convivência pública, contínua e duradoura entre os companheiros com o intuito de constituição de família (art. 1.723, CC), é que se verificaram quais os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, para efeitos de sucessão (art. 1.790, caput, CC).
Cumpre dizer que o reconhecimento de direitos sucessórios de companheiro(a) com suporte na incidência direta do dispositivo constitucional que confere proteção à união estável não prescinde de leitura e interpretação da legislação infraconstitucional. De tal modo, o instituto recebe a proteção do Estado, mas tal "garantia institucional", de acordo com o Ministro Joaquim Barbosa, "não esgota sua normatividade no texto constitucional", sendo que "é o legislador ordinário que dará densidade normativa ao instituto, respeitando-se, entretanto, o chamado núcleo essencial da garantia" (RE 203030/SP). O eminente Ministro registra, ainda, que pretensão à "total equiparação da união estável, como entidade familiar, ao casamento, já foi rechaçada por esta Corte no julgamento do MS 21.449, Rel. Min. Octávio Gallotti", conforme anotado no parecer então oferecido pelo Ministério Público Federal. Ao opinar pelo não conhecimento daquele recurso extraordinário, o Subprocurador- Geral da República, Paulo de Tarso Braz Lucas, transcreveu trecho do referido precedente do STF:
"Também não vejo, no dispositivo constitucional em causa, a extensão que se lhe quer atribuir na petição inicial.
Há, nele, uma nítida gradação de valores entre as duas instituições: a união estável, de um lado, e o casamento, de outro, tanto que deve a lei, segundo a Constituição, facilitar a conversão do primeiro estado no segundo".
O Código Civil regula a matéria, e não a Constituição da República. O Código Civil deve ser lido à luz da Constituição, e não o contrário. Mas, na hipótese em apreço, a filtragem constitucional, sob enfoque principiológico, não confere ao intérprete poderes para modificar regra específica de sucessão no âmbito da união estável.
Fruto da superação da dogmática jurídica tradicional, que teve questionada sua cientificidade, objetividade, neutralidade e estabilidade absoluta do ordenamento, o novo paradigma hermenêuticoconstitucional eleva o nível de efetivação dos princípios a diferentes graus de importância. O caso concreto é examinado pelo Judiciário mediante uso da interpretação principiológica, que volta os olhos aos valores, à ética, à moral, à justiça.
Interpretações desenvolvidas sob a perspectiva do neoconstitucionalismo, que buscam a máxima eficácia da Constituição, mediante a concretização de direitos fundamentais e hierarquização axiológica entre normas e princípios, merecem respeito ao buscarem melhor conexão com o mundo em transformação. Mas, ao mesmo tempo em que não se limitam ao que está escrito na norma legal, devem ser moderadas ao estabelecerem uma espécie de graduação aos princípios frente a determinadas regras infraconstitucionais.
A propósito, a predisposição do aclamado jusfilósofo alemão Robert Alexy em utilizar a força dos princípios em ambientes de colisão entre direitos fundamentais abarca a ideia de que a principiologia seja capaz de conferir racionalidade às soluções dos conflitos jurídicos. Sua teoria assimila princípios a valores, e não a normas, de tal modo a permitir que o elemento ético/moral se apresente como legitimador de direito.
No pós-positivismo, especialmente com a normatividade dos princípios, a dogmática jurídica moderna passa a se enquadrar em duas grandes categorias não hierarquizadas: regras, que contêm mais objetividade e incidência restrita; princípios, de maior abstração, com finalidade mais destacada no sistema.
E, no contexto do novo paradigma de que fala Luís Roberto Barroso, a Constituição da República de 1988 se apresenta como um sistema aberto de princípios e regras, com valores jurídicos, ideais de justiça e direitos fundamentais.
Mesmo descartando o uso da interpretação mais formalista, vinculada ao tradicional método subsuntivo, o Juiz-intérprete que pretende produzir solução que lhe pareça mais justa ao caso concreto, mediante interpretação principiológica mais voltada aos valores, à ética e à justiça, deve ser extremamente cauteloso para, à luz das circunstâncias, não causar insegurança no sistema jurídico que pressupõe harmonia e independência entre os Poderes.
Especificamente, penso que os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade não estariam a vedar a aplicação de norma infraconstitucional que disciplina a matéria de forma legítima e válida. Caso, ao longo do tempo, a sociedade enfrente desconforto com a reiterada aplicação da norma e passe a julgá-la injusta, incumbirá ao legislador infraconstitucional modificá-la, em sede de procedimento em que se permita o debate democrático. Mutações constitucionais e infraconstitucionais devem ser equilibradas no Estado Democrático de Direito, primado pela harmonia e independência entre os Poderes.
Diante de tais reflexões, entendo que a norma infraconstitucional não viola a Constituição da República, assim como concluiu o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que, ao julgar incidente de inconstitucionalidade, proclamou, por maioria de 19 votos a 5, a constitucionalidade do art. 1.790, III, do Código
Civil, dispositivo legal que atribui ao companheiro a terça parte dos bens da herança. Eis a ementa do v. acórdão:
"Incidente de inconstitucionalidade. Família. União estável. Sucessão. – A Constituição da República não equiparou a união estável ao casamento. Atento à distinção constitucional, o Código Civil dispensou tratamento diverso ao casamento e à união estável.
Segundo o Código Civil, o companheiro não é herdeiro necessário. Aliás, nem todo cônjuge sobrevivente é herdeiro. O direito sucessório do companheiro está disciplinado no art. 1.790 do CC, cujo inciso III não é inconstitucional. Trata-se de regra criada pelo legislador ordinário no exercício do poder constitucional de disciplina das relações jurídicas patrimoniais decorrentes de união estável.
Eventual antinomia com o art. 1.725 do Código Civil não leva a sua inconstitucionalidade, devendo ser solvida à luz dos critérios de interpretação do conjunto das normas que regulam a união estável.
Incidente de inconstitucionalidade julgado improcedente, por maioria" (TJRS – Arguição de Inconstitucionalidade nº 70029390374 – Porto Alegre – Órgão Especial – Rel. Des. Leo Lima – Rel.ª para o acórdão Des.ª Maria Isabel de Azevedo Souza – DJ de 11.05.2010).
Colho algumas ilustrações doutrinárias e brilhantes reflexões do voto da Relatora para o acórdão, Desembargadora Maria Isabel e Azevedo Souza: "Na lição de Barbosa Moreira, ‘a norma do § 3º (do art. 116), de maneira alguma atribui ao homem ou à mulher, em união estável, situação jurídica totalmente equiparada à de homem casado ou à de mulher casada. Ao admitir-se tal equiparação, teria desaparecido por completo a diferença entre união estável não formalizada e o vínculo matrimonial.
Isso, porém, é insustentável à luz do próprio texto: se as duas figuras estivessem igualadas, não faria sentido estabelecer que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento. Não é possível converter uma coisa em outra, a menos que sejam desiguais: se já são iguais, é desnecessário e inconcebível a conversão’ (6).
O Código Civil de 2002, atento à distinção constitucional entre casamento e união estável, dispensou-lhes tratamento diverso em inúmeros dispositivos, como, por exemplo, no direito sucessório.
Segundo Eduardo de Oliveira Leite, ‘O novo Código, em manifesto esforço, repita-se, procura guindar a união estável ao patamar do casamento civil (art. 226, § 1º); ao menos nos seus dois grandes efeitos patrimoniais, isto é, no que diz respeito a alimentos e no direito sucessório. E o faz com largueza de espírito no art. 1.790. em incidir, porém, em excessos que só uma doutrina dominada por excessiva ideologia populista justificaria. O novo Código o faz com cuidado, com cautela, com bom senso, qualidades perfeitamente encontráveis na proposta do constituinte de 1988’ (7).
De pronto, cabe referir que o art. 1.845 do Código Civil apenas instituiu herdeiro necessário o cônjuge, verbis: ‘São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge’. Ou seja, o companheiro não é herdeiro necessário. Não consta, portanto, o companheiro na ordem de vocação hereditária do rol do art. 1.820 do Código Civil […]’
O tratamento distinto entre cônjuge e companheiro não padece de qualquer inconstitucionalidade. Aliás, conforme sinalado acima, tratou, também, distintamente, o Código Civil, ao efeito sucessório, os cônjuges, conforme o regime de bens.
O legislador ordinário valeu-se do seu poder constitucional para tratar diferentemente as distintas situações jurídicas. Portanto, o art. 1.790, inciso III, do Código Civil – que disciplina a sucessão em caso de união estável – não padece de vício de inconstitucionalidade.
A esse propósito, Eduardo de Oliveira Leite afirma que ‘o caput do art. 1.790 sublinha a diferença, desejada pelo constituinte de 1988, existente entre casamento e união estável, reafirmando que o(a) companheiro(a) participará da sucessão do outro quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Independentemente de qualquer consideração de caráter axiológico sobre o teor da disposição e da intenção do legislador de estabelecer limites entre as duas realidades, o fato é que o mesmo deixou suficientemente claro que a pretensão ao direito sucessório decorre exclusivamente do patrimônio adquirido onerosamente pelos companheiros. Situação inferior à do casamento, em que a regra geral continua sendo a de considerar a mulher como meeira do patrimônio comum do casal. O privilégio da meação, pois, fica ressaltado, ainda uma vez, no texto infraconstitucional, a afastar qualquer exegese equivocada que pretenda visualizar na união estável igualdade no casamento.
O cônjuge (casado, pois, e submetendo-se a regime legal determinado pela lei civil) é meeiro. O(a) companheiro(a) não o é e só terá direito à sucessão do(a) outro(a) nas condições estabelecidas pela lei.
O cônjuge, independentemente de qualquer participação na aquisição de bens (basta considerar as disposições relativas ao regime da comunhão universal de bens, plenamente em vigor), é sempre meeiro. O companheiro, não, e sua eventual inserção no mundo sucessório fica na dependência da efetiva participação (que lhe competirá provar em juízo) na aquisição onerosa dos bens.
Sutil nuance que reforça o eco do legislador atual, em impecável releitura do texto constitucional, a repetir a ratio que permeia o escopo inquestionável do constituinte de 1988′ (9)".
Portanto, embora tenha a Carta Magna de 1988 considerado a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, não a equiparou ao casamento, conforme ressaltou o douto Relator, "mantendo a peculiaridade de cada um, motivo por que são regidos por disposições distintas".
De tal modo, com a renovada venia do douto entendimento em contrário, concluo que o ordenamento jurídico constitucional não estaria a impedir que a legislação infraconstitucional discipline a sucessão para os companheiros e os cônjuges de forma específica, mediante tratamento diferenciado, sem que isso vulnere o princípio constitucional da igualdade.
Concluo, enfim, pela constitucionalidade da distinção estabelecida pelo artigo em comento entre casamento e união estável para fins sucessórios, posicionando-me, assim, no sentido de que as respectivas entidades familiares são institutos que contêm diferenciações e o legislador infraconstitucional, legitimamente, tratou-as de modo diverso, no exercício regular de seu poder legiferante.
À luz de tais considerações, também rejeito o presente incidente.
É como voto.
DES. ANTÔNIO ARMANDO DOS ANJOS – Com o Relator.
DES. MAURÍCIO BARROS – Com o Relator.
DES.ª HELOÍSA COMBAT – Com o Relator.
DES. RONEY OLIVEIRA – Com o Relator.
DES. CARREIRA MACHADO – Com o Relator.
DES. ALMEIDA MELO – Com o Relator.
DES. JOSÉ ANTONINO BAÍA BORGES – Com o Relator.
DES. KILDARE CARVALHO – Com o Relator.
DES. BRANDÃO TEIXEIRA – Com o Relator.
DES. GERALDO AUGUSTO – Com o Relator.
DES. EDILSON FERNANDES – O tratamento sucessório desigual promovido pelo Código Civil, em face do cônjuge e do companheiro sobreviventes, não encontra fundamento de validade na interpretação sistemática dos arts. 5º, caput, e 226, caput e § 3º, da Constituição Federal.
A família constituída por via da união estável ou do casamento se assemelha nos vínculos de afeto, solidariedade e respeito, com diferenças apenas relacionadas à sua formação, com a devida vênia, situação que não permite qualquer tratamento diferenciado em relação aos direitos dos conviventes, sendo oportunos os ensinamentos de Mauro Antonini:
"A Constituição dá preferência ao casamento porque o modo como é formado confere maior segurança jurídica aos nubentes, em termos de prova do enlace, do regime de bens, da data da constituição; o que não significa que possa a lei aviltar a família constituída pela união estável, para forçar os companheiros a se casarem. Nos aspectos em que as famílias, oriundas de casamento ou da união estável, são semelhantes, como é o caso das relações afetivas que geram, não pode haver tratamento legal diferenciado" (In PELUSO, Min. Cezar (Coord.). Código Civil comentado – doutrina e jurisprudência. 4. ed. p. 2100).
E acrescenta o supracitado doutrinador:
"Relevante argumento na defesa dessa segunda posição é, após a Constituição de 1988, mas antes da Lei nº 8.971/94 (que instituiu expressamente em nosso ordenamento os direitos sucessórios entre companheiros), ter havido manifestações da jurisprudência – não unânime e nem sempre vitoriosa -, segundo as quais, mesmo sem lei expressa, bastava a Constituição para se reconhecer direito sucessório ao companheiro sobrevivente, equiparando-o por força tão só da Constituição, por analogia, ao cônjuge sobrevivente, na terceira classe preferencial da ordem de vocação hereditária. Tais decisões reconheceram que, em termos de dignidade, não havia distinção entre as famílias oriundas do casamento e da união estável, razão pela qual, ainda que sem previsão legal expressa, era possível estender ao companheiro sobrevivente os mesmos direitos do cônjuge supérstite.
Nesse sentido, por exemplo, dois julgados do STJ: REsp nº 4.599, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. em 09.04.1991, v.m.; e o REsp nº 74.467, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. em 20.05.1997, v.m. Se a equiparação do cônjuge ao companheiro para fins sucessórios emana diretamente da Constituição, como assentaram esses acórdãos, o legislador infraconstitucional não poderia lhes dar tratamento desigual e, ao fazê-lo, violou a Constituição" (ob. cit., p. 2101, destaquei).
Nesse contexto, embora não haja pronunciamento definitivo dos Tribunais Superiores a respeito da controvérsia, quando consideradas as regras do vigente Código Civil, deve a matéria ser solucionada em prestígio ao tratamento isonômico previsto na Carta Magna, com a prevalência da entidade familiar mediante a ampliação de seus direitos, independentemente de sua forma de constituição, situação que torna flagrantemente inconstitucional qualquer legislação ordinária que promova distinções em relação aos direitos sucessórios de cônjuges e companheiros.
Com tais considerações, pedindo vênia ao ilustre Relator, acompanho o eminente Desembargador Alvim Soares para julgar procedente o incidente.
DES. TIBÚRCIO MARQUES – Com o Relator.
Súmula – REJEITARAM PRELIMINAR DE SOBRESTAMENTO, POR MAIORIA.
JULGARAM IMPROCEDENTE, POR MAIORIA.
Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG