Justiça de Minas Gerais reconhece parentalidade socioafetiva entre mulher e a irmã falecida

A 10ª Vara de Família de Belo Horizonte, em Minas Gerais, reconheceu a parentalidade socioafetiva de uma mulher com a irmã já falecida. De origens biológicas diferentes, elas foram criadas pela mesma mãe afetiva, mas nunca houve regularização por parte delas.

De acordo com a advogada Marcela Resende, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, que atuou no caso, a autora solicitou o reconhecimento da parentalidade socioafetiva após o falecimento da irmã, em 2016.

Segundo a mulher, as duas foram abandonadas por mães diferentes ainda quando bebês e criadas juntas até o óbito da mãe socioafetiva, em 2001. E apesar de terem mudado de casa, o convívio sempre existiu.

A irmã falecida era solteira, não tinha filhos e nem herdeiros conhecidos biológicos. Cantora, ela deixou patrimônios, projetos sociais e encargos pendentes. Por isso, a irmã pleiteou o reconhecimento da socioafetividade não só para dar continuidade nos projeto sociais, mas também para regularização das pendências e bens deixados.

A Justiça reconheceu a relação afetiva entre as irmãs, com vistas à regularização pela autora das pendências havidas em qualquer juízo ou instância. O processo tramita em segredo de justiça.

Para Marcela Resende, a decisão é importante para o direito como um todo.  “Principalmente para o Direito das Famílias que busca acompanhar e tutelar as constantes transformações nas organizações familiares, na sociedade moderna e nas relações fundadas no afeto”, destaca.

Ela ressalta que a família brasileira da atualidade não é a mesma de alguns anos atrás. Cabe aos operadores do Direito lutar contra o retrocesso legislativo, contra ameaças a direitos e garantias individuais, e apresentá-las diante do Poder Judiciário para serem reguladas.

“Com uma atuação séria, atualizada e proferida com maestria, o juiz de Direito, Paulo Gastão de Abreu, pautou sua decisão com enfrentamento às teses jurídicas, aos princípios que norteiam a atualidade e, de forma acurada e sensível, enxergou a situação fática que precisava ser reconhecida”, ressalta.

Embasamento jurídico

Marcela Resende diz que o artigo 1.593, do Código Civil Brasileiro, ao prever a formação do estado filiativo advindo de outras espécies de parentesco civil que não, necessariamente, a consanguínea, permite a interpretação da expressão "outra origem" como sendo adoção, a filiação proveniente das técnicas de reprodução assistida e até a filiação socioafetiva.

“A princípio estamos regulando uma relação existente decorrente do reconhecimento de entidade familiar, prevista em carta constitucional no art. 226, §4º, da Constituição da República, e nos artigos 1.593 e 1.596 do Código Civil Brasileiro”, explica.

A advogada também afirma que a afetividade como fundamento principiológico vem se solidificando nas relações sociais como um forte indicativo de que sua análise jurídica não pode ser deixada de lado.

“Implícito na Constituição e nas diversas outras regras do ordenamento jurídico, não podemos deixar que a ausência de uma normativa expressa e que constitui um código forte no direito contemporâneo deixe de gerar alterações profundas na forma de se pensar a família brasileira”, diz.

Outro ponto que auxilia no embasamento da decisão vem do Supremo Tribunal Federal  –  STF, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 898060, de relatoria do Ministro Luiz Fux, que reconheceu o princípio da afetividade nas relações familiares, aprovando a tese: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.

“O vínculo parental com base principiológica na socioafetividade veio possibilitar o reconhecimento destas relações e abriu um caminho sem volta, importantíssimo para o direito das famílias brasileiro. O reconhecimento de que relações construídas pelos laços do afeto têm o mesmo patamar hierárquico e jurídico das relações puramente biológicas, podendo ambas relações coexistirem em harmonia, uma não anulando a outra”, enfatiza.

Parte probatória

Nesse caso específico, a advogada conta que não havia a possibilidade jurídica de pleitear o reconhecimento da adoção pós mortem na linha vertical entre a mãe afetiva e as filhas afetivas, tendo em vista que a mãe e uma delas já haviam falecido.

Por isso, na sua visão, assertivamente o juiz considerou que o principal não seria a origem da maternidade socioafetiva, mas sim buscar reconhecer a afetividade entre as duas irmãs, ainda que não havia regularidade que comprovasse.

“A parte probatória foi extremamente importante e relevante para o caso. Se constituiu dentre inúmeros documentos, vídeos, fotografias de momentos íntimos e celebrações familiares. Depoimentos testemunhais da família biológica em que as irmãs afetivas foram inseridas. O prontuário médico da mulher que veio a falecer, em suas aproximadas 700 folhas, faz menção a expressão ‘irmã’ da paciente de forma clara, objetiva e formal”, revela.

Relevância da afetividade

A advogada reitera que a afetividade é um dos princípios do direito de família brasileiro, implícito na Constituição e no Código Civil. E que apesar de algumas críticas contundentes e polêmicas levantadas, é possível salientar que o corolário da afetividade, enquanto preceito implicitamente alocado no superprincípio da dignidade da pessoa humana, apresenta-se como proeminente vetor de inspiração das relações familiares.

“Outras decisões vêm surgindo, como a do caso em questão, sendo a socioafetividade um caminho sem volta do Direito de Família contemporâneo, consolidando ainda mais a afetividade como verdadeiro princípio jurídico do sistema nacional”, encerra.

Tese

Em 2006, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG teve a oportunidade de apreciar, com divergência de votos, a possibilidade do reconhecimento da irmandade socioafetiva, em ação representada pelo advogado Rodrigo da Cunha Pereira.

Sendo um dos precursores da tese que ele intitula “fraternidade socioafetiva”, Rodrigo da Cunha, presidente do IBDFAM, comenta: “A fraternidade socioafetiva pode gerar direitos e obrigações no cenário jurídico. A socioafetividade pode ser fonte geradora do parentesco, seja em razão do exercício da paternidade, maternidade, irmandade ou outro vínculo parental, que se consolida ao longo do tempo”.

 

Fonte: Ibdfam