Justiça do Acre autoriza criança intersexual a mudar o nome na certidão de nascimento

Uma decisão pioneira e inédita no Acre repercutiu em todo o País. A Justiça determinou, após liminar da OAB-AC, a alteração do nome de uma criança de três anos, que nasceu com os dois sexos, na certidão de nascimento. A mãe só descobriu a ambiguidade sexual dias depois do registro do recém-nascido. Assim, a criança sempre foi chamada pelo nome feminino, além de usar cabelo comprido e roupas de menina.

 

No entanto, em agosto do ano passado, a mãe conseguiu realizar um exame cariótipo, que analisa a quantidade e a estrutura dos cromossomos em uma célula, e o resultado apontou que a criança é geneticamente um menino. Isso motivou a OAB-AC a entrar com um pedido de liminar, e agora, além de mudar o nome na certidão de nascimento, a criança, registrada como menina, também vai ter o sexo alterado para masculino no documento.

 

Segundo o presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB do Acre, Charles Brasil, responsável pela ação, “a decisão é importante ao proporcionar dignidade a essa criança, e também por ser a primeira vez em que uma criança intersexo tem a mudança do nome e sexo garantido por um juiz de primeiro grau no País”.

 

Sobre o impacto dessa decisão no Poder Judiciário, o advogado afirma que cada caso tem que ser analisado dentro de suas peculiaridades. No fato específico, o ineditismo do caso que chegou até a Justiça se configura por se tratar de alteração do nome e sexo de uma criança de três anos de idade, com suas identidades em plena formação, possuidora das características intersexo, o que ganhou destaque.

 

“A decisão pode auxiliar outras famílias que estão na mesma condição, pois os fundamentos jurídicos da decisão podem servir de parâmetros para as ações judiciais e o convencimento do juízo. Não podemos dizer que temos uma jurisprudência, pois para isso requer outras decisões. Mas podemos afirmar que essa primeira decisão pode impulsionar outras decisões judiciais. O importante são as famílias procurarem um bom profissional do direito e demandar uma petição no judiciário. Quando o poder judiciário é demandado ele tem o dever de responder o jurisdicionado”, afirma.

 

Explicando um pouco melhor o processo, no qual ele acompanhou de perto, Charles Brasil diz que levou a criança para alguns atendimentos com profissionais da saúde, como uma médica geneticista, assistente social e uma psicóloga. Cada profissional emitiu relatório sobre a condição econômica, social e biológica da criança, e todos laudos foram anexados nos autos.

 

De acordo com Charles, os laudos não afirmam a identidade de gênero da criança (diretamente), pois essa está em formação, mas apresentam os aspectos sociais e as formas em que a criança se relaciona com o mundo. E se caso, ao crescer, ela se reconhecer como menina, o advogado é enfático. “A lei de registros públicos garante a mudança do nome no cartório de registro público ao interessado no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil. Portanto, entre os dezoito e até os dezenove anos ela pode requerer administrativamente a mudança”, explica.

 

Especialistas do IBDFAM comemoram

 

Para Melissa Telles Barufi, presidente da Comissão da Infância e Juventude do IBDFAM, o caso não é somente feliz por ser inédito e possibilitar discussões tão necessárias sobre este tema, mas também por ser um exemplo a ser seguido, por demonstrar como o agir em conjunto da família, sociedade e Estado pode levar ao alcance da proteção integral da criança. “Neste caso podemos verificar que os envolvidos agiram com zelo e respeito, o que  reflete a inviolabilidade das integridades física, psíquica e moral da criança e abrange a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores. Zelaram pela dignidade da criança, colocaram a salvo de tratamento desumano, violento, vexatório ou constrangedor conforme prescreve o Estatuto da Criança e do Adolescente. Espera-se, a partir de agora, que a criança possa sentir-se completa para gozar sua vida com a dignidade que faz jus”, declara a advogada.

 

Patrícia Gorisch, presidente da Comissão de Direito Homoafetivo do IBDFAM, avalia tratar-se de decisão de extrema importância, principalmente pelo pioneirismo, já que o reconhecimento oficial traz dois fatos inéditos: primeiro, de uma criança que nasceu com intersexo; segundo, a questão do sexo biológico, cromossômico, que foi comprovado.

 

“É um grande passo, cada vez mais a gente vai ter a confirmação de situações dessas na Justiça, porque até então a gente só falava em LGBT. Há pouquíssimo tempo a gente passou a estudar essa questão do intersexo, e hoje já temos a inclusão do LGBTI. Então é importantíssima essa conquista da criança, e a jurisprudência que reconhece de fato a criança enquanto sexo, reconhece a identidade de gênero dela”, afirma.

 

A advogada ainda ressalta que a partir de agora é vida nova para essa criança. Na verdade, qualquer tipo de dano psicológico com relação a preconceito ocorreu a partir do fato que essa criança conviveu, enquanto pessoa do sexo oposto, e sendo já reconhecida como criança intersexo. Mas a partir do momento que a Justiça reconhece o intersexo, a identidade de gênero dela, e faz a identificação do nome/sexo na certidão de nascimento, cessa essa questão.

 

“Daqui pra frente toda vez que ela se apresentar, ela não sofrerá constrangimento porque o nome já está em consonância com a sua identidade de gênero. Então, daqui pra frente, na verdade a gente não vai ter mais danos”, finaliza.

 

 

Fonte: IBDFAM