Lei que deu a filho adotivo direito de conhecer origem biológica melhora adaptação

A nutricionista Ester Gonçalves (nome fictício), de 44 anos, sente-se como se fosse personagem de uma novela, só que na vida real. Ela sempre soube que era adotada, mas ninguém contava a ela a história verdadeira. Nas visitas recebidas em casa, as pessoas trocavam olhares entre si e a mãe adotiva distribuía cotoveladas quando alguém ameaçava tocar no assunto proibido. Para evitar mais constrangimentos, Ester fingia não saber de nada. Desde os 4 anos, porém, descobriu o fio da meada com a chegada do irmão mais novo, também adotado. “Perguntei à mamãe porque a barriga dela não tinha crescido. Ela inventou uma história e disse que havia usado uma cinta durante a gravidez. Era o começo de uma vida de mentiras. Eu me sentia enganada o tempo todo”, afirma.

Se o processo de adoção de Ester tivesse ocorrido nos dias de hoje, ela teria direito a saber, desde criança, que é adotada, não apenas por uma mudança de comportamento em relação à adoção no país, mas também por força de lei. A partir da Lei Nacional da Adoção (12.010/09), o direito a conhecer a origem biológica passou a fazer parte do artigo 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Acolhida por um casal de advogados de renome de Belo Horizonte, Ester seria criada dentro dos novos termos da lei, o que evitaria problemas futuros. “Quando chegavam visitas, eu me trancava no quarto. Meu maior trauma era ter de fingir para todo mundo da família que eu não sabia a verdade”, completa.

Trauma

Só descobre que foi adotado quem nunca ficou sabendo a verdade desde criança. Segundo juristas, assistentes sociais e psicólogos, a revelação tardia da adoção é o principal motivo que pode prejudicar o sucesso de um processo de adoção, levando muitas vezes à revolta contra os pais adotivos. Ester não chegou a esse ponto, mas só se casou mais tarde, aos 38 anos, e nunca quis ter filhos. “Quando tinha 20 e poucos anos, eu e meu irmão fomos à casa da mulher de um senador, que havia facilitado a transação. Ele nem abriu a porta. Pela janela do casarão, disse que nem que enfiassem uma faca no seu peito ela iria contar a verdade. Parecia uma cena de novela, que ficou gravada na minha memória”, revela.

Com a lei, o momento de contar a verdade tem se tornado cada vez menos traumático para a criança e também para os pais. Se quiser saber toda a verdade sobre seus pais biológicos, o filho adotivo terá acesso irrestrito aos detalhes do seu processo de adoção. Basta procurar o Juizado da Infância e da Juventude. A revelação da origem biológica poderá ser feita após ele completar 18 anos ou até antes disso. Se for menor de idade, terá de obter a autorização do juiz, que vai designar um psicólogo e um advogado para acompanhar o caso.

Processo aberto

Segundo o juiz Marcos Padula, titular do Juizado da Infância e da Juventude de Belo Horizonte, a requisição da pasta de adoção em nome da criança independe de autorização dos pais. “O jovem vem aqui e pede para ter acesso a seu processo, que será entregue em mãos. Se tiver interesse, ele pode ter acesso aos nomes dos pais biológicos e, na maioria dos casos, ao endereço da mãe e também de algum familiar biológico, além do estudo psicossocial que levou à entrega do filho para adoção”, explica. Para que isso ocorra, porém, o processo terá de ser feito sob a barra dos tribunais.

A revelação tardia para o filho é o maior fator de insucesso no processo da adoção, alerta a psicóloga Lídia Weber, da Universidade Federal do Paraná. Ela mediu práticas parentais de 600 crianças, jovens e adultos brasileiros, adotados ou não. “Ficamos sabendo de histórias mágicas de adoções interraciais, de adoções tardias (de filhos mais velhos), de grupos de irmãos. Todas elas deram certo. Tiveram adaptação mais demorada ou mais rápida, dependendo da família. Já a revelação tardia mostrou ser um sério fator de risco”, compara.

O que diz a lei

A Lei Nacional da Adoção, nº 12.010/2009, incluiu o direito à revelação da origem biológica no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). Artigo 48: “O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 anos”. Parágrafo único: “O acesso ao processo de adoção poderá ser também deferido ao adotado menor de 18 anos, a seu pedido, assegurada orientação e assistência jurídica e psicológica”.

Revelação tardia é traumática

Adotado aos 13 anos, o escritor e contador de histórias Roberto Carlos Ramos, de 47 anos, parte do princípio de que “não existe verdade que não deva ser falada”. Com a revelação imediata, é possível evitar choques futuros ou a busca desesperada pelos pais biológicos. “Quando se descobre de forma tardia, todos os desesperos da adolescência e a rebeldia passa a ter uma causa. Essa situação poderia ser evitada”, afirma o escritor, que já adotou 14 filhos.

Segundo ele, quando o jovem se sente abraçado como se fizesse parte da família e está bem estruturado, ele nem sente a necessidade de reencontrar os pais biológicos. Ex-menino de rua em Belo Horizonte, Roberto Ramos foi adotado em 1979 pela pesquisadora francesa Margherit Duvas, que o conheceu na antiga Febem. Sua história inspirou o diretor Luiz Villaça no filme O contador de histórias.

“Tudo conversado é resolvido”, afirma o percussionista, Marcelo Adalton, de 36. Desde que se entende por gente ele sabe que é adotado. Ele afirma que, aos 11 anos, foi forçado pela família adotiva a conhecer a mãe biológica. “Foi um baque. Antes de ir já não queria e depois nunca mais procurei. Não quero misturar as coisas. Para mim, é como se nunca tivesse existido a outra família e sinto que esse sentimento é recíproco da parte dos meus pais”, afirma.

Segundo Marcelo, hoje ele até se esquece de contar a história da adoção. O segredo ficou em segundo plano. “Quando conto para alguém, a pessoa geralmente não acredita, pois me pareço muito com as pessoas daqui de casa”, afirma. Solteiro, ele faz companhia para a mãe, a dona de casa Mariza de Sousa Freitas, de 66, no Bairro Nova Vista, em BH.

Sucesso em acolhida temporária

A recomendação da advogada carioca Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão Nacional da Adoção pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), é contar a verdade desde o primeiro contato da família adotiva com a criança ou adolescente. “Desde o momento em que a criança chega em casa, mesmo que não tenha idade para perceber tudo, ela tem de ter noção de que é uma criança escolhida pelos pais. Tem de saber que não veio da barriga da mãe. A base de um relacionamento é a confiança”, lembra.

Nem todos os casais que adotam, porém, estão totalmente preparados para receber uma criança e muito menos para contar a verdade ao filho. “Atendo uma família em que a menina já tem 7 anos e o casal está em pânico para contar a adoção. Geralmente, quem esconde a verdade tem medo de ser rejeitado pela criança, mas ela não faz isso nunca com os pais adotivos, pois está louca para ganhar um lar; os pais é que são inseguros”, afirma Sandra Amaral, coordenadora do grupo de apoio à adoção De Volta para Casa, de Divinópolis. Segundo ela, o casal chegou a simular uma foto da mãe grávida, como forma de sustentar a mentira até chegar a hora de abrir o jogo.

Para Sandra, antes de partir para a adoção, que é irreversível segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, os casais deveriam passar pela experiência de se tornar família acolhedora, de forma temporária e por prazo determinado. “É uma forma sutil e delicada de o juiz da infância mostrar ao casal que ele não está pronto para adotar uma criança. Muitos desistiram de adotar ao descobrir que a criança chora à noite e precisa de trocar fralda”, explica.

 

Fonte: Jornal Estado de Minas