Tomar vacinas. Matricular-se em uma escola pública ou privada. Usar o SUS. Ir a um hospital particular. Votar. Ter um emprego. Casar. Alugar uma casa. Registrar filhos. Divorciar-se. Fazer exames clínicos. Viajar de ônibus ou avião. Ganhar Bolsa Família. Receber pensão. Ter conta no banco. Dirigir. Parcelar compras no shopping. Ter cartão de crédito ou débito. Registrar um celular. Receber seguro-desemprego. Fazer concurso público. Ter um advogado. Hospedar-se em um hotel. Financiar um imóvel. Pagar impostos. Aposentar-se. Ver um filme adulto no cinema. Pegar um livro em uma biblioteca. Ir ao exterior. Ganhar um diploma. Ter um enterro digno.
Ter um nome.
Sob as copas das árvores amazônicas, alvo de debates e preocupação mundial nos últimos meses, uma multidão de brasileiros invisíveis vive à margem da sociedade e tem todos esses direitos negados sem sinais de comoção ou indignação nacional.
Os membros desta sociedade paralela – equivalente à população inteira de países como Armênia, Jamaica ou Albânia – são invisíveis ao Estado e não aparecem em qualquer estatística oficial porque lhes falta o básico: uma certidão de nascimento.
A região Norte, onde ficam os principais Estados amazônicos, tem a maior concentração do país de pessoas sem documentos, segundo o IBGE. Lá, 9 de cada 100 pessoas não têm documentos e não são consideradas cidadãs. Apesar de os números absolutos serem maiores pela maior concentração de pessoas, o percentual de brasileiros não identificados no sudeste é muito menor – ou 1 a cada 100 pessoas.
Não à toa, também estão no Norte do país os mais baixos índices de desenvolvimento humano do Brasil. "O que temos aqui no Norte é a correlação umbilical entre pobreza e subregistro", diz à BBC News Brasil a Defensora Pública Geral do Pará, Jeniffer de Barros Rodrigues de Araújo.
"Quase 6 milhões de pessoas ganham até 3 salários mínimos no Pará. E mais da metade delas está abaixo da linha da pobreza", diz ela. A trajetória de privações e derrotas de Adriano Lima Ferreira, um rapaz alto e forte, de cabelo escuro e traços que misturam características indígenas e afro-brasileiras, ilustra o desafio encarado pelos brasileiros invisíveis na Amazônia.
O primeiro documento de Adriano foi sua certidão de óbito.
Já a primeira menção oficial à sua existência aconteceu enquanto ele ocupava uma câmara gelada do Instituto Médico Legal de Belém. Para o Estado brasileiro, naquele momento, o nome de Adriano, nascido no interior do Pará e morto aos 26 anos na periferia da capital, era "Cadáver Ignorado Protocolo 2019.01.050549".
A triste imagem do 'Encostado'
Nascido em uma enfermaria de Abaetetuba, onde 65% das pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, segundo o Ministério Público, Adriano não foi registrado pelos pais, que se separaram na época de seu nascimento.
Ele escapou da alta taxa de mortalidade infantil na região – 20 a cada 1.000 nascidos, ou o dobro do aceitável segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) – e chegou à idade escolar.
Foi quando ganhou um apelido bastante comum nas cidades ribeirinhas da Amazônia, e absolutamente desconhecido entre a classe média do Sudeste do país: Adriano, então um garoto magro e agitado, passou a ser conhecido como "encostado".
Ele não era o único. "Encostado aqui é como chamamos o aluno que não está regularmente matriculado na escola. Para ser regularmente matriculada, a pessoa precisa ter certidão de nascimento, se não a escola não admite", conta a advogada Beatriz dos Reis, uma defensora pública que atua em algumas das regiões mais remotas do país.
"Por uma questão de empatia, solidariedade, ou de missão mesmo, os diretores de escola aceitam que essas crianças frequentem a escola, para não ficarem soltas na rua e para terem lanche. Isso é muito, muito comum", diz.
Ao lado da defensora, que conversa com a reportagem por telefone, está Luciana Ferreira, irmã de Adriano.
"Ele estudou encostado e depois só conseguia bicos. Foi para Belém e perdemos o contato. Um dia, no jornal da Record, falaram de um casal que tinha sido assassinado. Falaram que era um jovem de aproximadamente 20 a 25 anos. Mostraram o corpo cheio de sangue e apareceu a tatuagem que ele tinha no braço. E também o pé dele, que era 'muito dele', diferente de qualquer pé. A gente falava sempre do pé dele. Não tinha como não reconhecer."
As reportagens sobe o crime ainda podem ser facilmente encontradas na internet. Nas fotos, o corpo de Adriano, vestindo bermuda e uma camisa azul, aparece ensanguentado em uma sarjeta.
Segundo um site local, "um casal, ainda não identificado, foi assassinado na madrugada desta sexta-feira (12/07/2019) (….) em Ananindeua, Região Metropolitana de Belém. Segundo informações da Polícia Militar, populares relataram que o casal estaria tentando roubar fiação telefônica da rua, quando foi surpreendido por um homem desconhecido, que chegou no local atirando. As vítimas ainda tentaram correr, mas foram alcançadas pelo assassino. Os peritos do Instituto Médico Legal (IML) foram acionados, e identificaram que o homem e a mulher foram executados com uma arma de grosso calibre."
A descoberta do assassinato do irmão pela televisão foi só o início da peregrinação da família em busca de um enterro digno para Adriano.
A corrida contra a vala comum
O dado que mais se aproxima da quantidade real de brasileiros vivendo na situação de Adriano é o levantamento de sub-registros de nascidos vivos do IBGE, que mostra quantas crianças não são registradas pelos pais no primeiro ano e meio de vida.
Segundo o órgão – e estimativas citadas pela Câmara dos Deputados e pela Associação Nacional de Defensores Públicos – 2,94 milhões de brasileiros não têm registro de nascimento e são, portanto, invisíveis.
"Falei da reportagem para a minha mãe, mas ela não acreditou de cara. Fomos até o IML e ela estava calma, nem parecia que tinha perdido um filho. A gente não pode abrir o caixão, porque Adriano já estava se decompondo. O corpo dele estava bem seco. Foi aí que bateu o desespero na minha mãe. Ela gritava que não acreditava, não acreditava. Dizia que estava mentindo. Aí deixaram abrir o caixão e mostraram só o pé. Ela acreditou e começou a passar mal."
A família informou que o Cadáver Ignorado Protocolo 2019.01.050549 era Adriano. Um exame com amostras de DNA do cadáver, da mãe e da irmã foi colhido. Depois de 9 dias de espera, o laudo comprovaria o parentesco: "A probabilidade encontrada para esse vínculo genético é de 99,9989007449928%", dizia o documento.
No entanto, a família – pessoas pobres, sem estudos, que viajaram de carona até a capital na tentativa de enterrar o parente assassinado – não conseguiu retirá-lo do IML – o primeiro ambiente com referências hospitalares em que Adriano esteve desde o dia em que nasceu. Pessoas sem documentos, como ele, não podem usar o SUS ou mesmo participar de campanhas de vacinação, tornando-se potenciais vetores de doenças para as suas comunidades.
Segundo as normas dos Centros de Perícias Científicas, para onde são levados os corpos de vítimas de mortes violentas, "é impossível liberar um cadáver sem documentação, pois sem identificação civil não há como emitir um atestado de óbito".
Assim, mesmo com o exame de DNA em mãos, enquanto a família não conseguisse uma certidão de nascimento que permitisse a emissão de seu atestado de óbito, o "cadáver Ignorado Protocolo 2019.01.050549" continuaria na geladeira.
Isso até que o prazo se esgotasse.
'Risco de ser sepultado como se não fosse gente'
Um memorando enviado às pressas ao IML pela Defensoria Pública do Estado ilustra o maior temor da família.
"Por não ter o cadáver reclamado qualquer registro, o corpo de Adriano encontra-se sob a designação "cadáver Ignorado Protocolo 2019.01.050549, sob o risco de ser sepultado como se não fosse gente", diz o texto.
É que os cadáveres sem documentos que permanecem em geladeiras por mais de 30 dias devem ser, segundo a lei, sepultados em vala comum, sem identificação.
"A família começou a peregrinação pelos documentos", conta a defensora Beatriz dos Reis, que cuidou pessoalmente do caso – um entre os "incontáveis" que vão parar em sua mesa todos os dias.
"Eles foram à escola onde ele estudou encostado e nada. Falaram com parentes com quem tinham perdido o contato. Tentaram todo mundo."
Na busca, a irmã e a mãe de Adriano não encontraram qualquer referência oficial à existência dele.
Mas fizeram importantes descobertas.
'Guardado escondido em uma delegacia'
"Ele ficou preso durante 3 meses e a gente só descobriu porque uma tia contou", conta a irmã à reportagem. "Foi por causa de um roubo que ele tinha feito e recolheram ele. Quando a minha tia ia visitar, eles deixavam eles entrarem com comida. Ele tinha visita. Mas, quando fomos procurar, não tinha registro nenhum. Como se não tivesse passado por lá, ele ficou guardado escondido na delegacia."
Adriano teria, portanto, sido preso em uma delegacia, sem direito a advogado, audiência de custódia ou julgamento. Pela decisão arbitrária de um delegado, teria sido colocado numa cela até que quem o prendeu decidisse soltá-lo.
"Quantos temos nessa situação?", pergunta a defensora. "Ninguém sabe. Ele ficou preso sem qualquer registro, de forma totalmente invisível. e não temos sequer como provar porque as provas são apenas testemunhais. Os parentes falaram que ele foi preso em razão de um roubo. É provável que ele estivesse praticando roubos porque é esse o destino de muitas das pessoas que têm a cidadania tirada pela falta de documentos."
Segundo o processo legal, quando uma pessoa comete um crime, primeiro ela é levada à delegacia, a porta de entrada do sistema penitenciário no Brasil. Lá é feita uma triagem que define se a pessoa será encaminhada a um presídio, e tem início o inquérito policial para averiguar o possível crime. Neste momento, um pedido de documentação deve ser feito para identificar o investigado.
"O gargalo no caso dele ficou na delegacia, não o encaminharam e ele ficou totalmente à margem do processo legal", diz Reis. Ela continua: "Posso responsabilizar somente os delegados? Não posso. Isso é um retrato da falta de estrutura generalizada do Estado".
A BBC News Brasil procurou a Susipe (Superintendência Penitenciária do Estado do Pará), por meio do governo do Estado, em busca de informações sobre o caso.
O órgão informou apenas que "ele não foi localizado no sistema Infopen/PA". Questionado sobre a possível prisão irregular, o órgão disse se limitou a explicar o procedimento legal.
"Os presos são apresentados na Central de Triagem de Altamira pela Polícia Civil, e então submetidos às audiências de custódia. No momento da prisão, eles não apresentam documentos. Após as audiências, eles são transferidos para o Centro de Recuperação Regional de Altamira. Em relação às informações das documentações, a unidade prisional ainda faz o levantamento para apresentar os dados solicitados."
Enterrado
A corrida contra o tempo da família e da defensoria surtiu efeito e o corpo de Adriano foi mantido na geladeira do IML até que sua certidão de nascimento fosse expedida.
Finalmente, o cadáver Ignorado Protocolo 2019.01.050549 ganharia um novo status para o Estado brasileiro:
NOME: ADRIANO LIMA FERREIRA
FILHO DE: MARIA LÚCIA LIMA FERREIRA
DATA DE NASCIMENTO: 28 DE MAIO DE 1993
LOCAL: ABAETETUBA-PA
AVÓS MATERNOS: MARIO SILVA LIMA e RAIMUNDA DA SILVA LIMA.
Uma cerimônia discreta foi feita em cemitério da região. Luciana e dona Maria Lúcia, além de alguns amigos e parentes, estavam lá para finalmente se despedirem.
Na sepultura simples, a algumas centenas de metros de uma série de valas comuns não-identificadas, está marcado para sempre o nome completo do jovem que morreu cedo depois de passar a vida toda privado de seus direitos mais básicos: saúde, educação, emprego e acesso ao sistema judiciário.
'Vontade política'
"Se eu montar uma tenda de mutirão para documentação neste minuto e não avisar a ninguém, nem fizer qualquer campanha de divulgação, em 2 horas teremos fila dobrando o quarteirão. O documento atrai muita gente", diz a defensora pública geral do Pará, Jeniffer de Barros Rodrigues de Araújo.
Para Araújo, não existe vontade política para resolver o problema da sub-documentação no Estado.
"O Estado nega esse direito ao cidadão e depois oferece como se fosse uma esmola. É algo tão simples de o Estado fornecer. No município de Breves, no Marajó, leva de 30 a 40 dias para a pessoa ter uma identidade. É algo que oferecemos na hora durante os mutirões. O que vejo é que os agentes do Estado criam dificuldades, problemas que não deveriam existir, para depois oferecerem a solução e ganharem o status de salvadores da pátria. Eles querem gerar um sentimento de gratidão", diz.
"Os fins são eleitoreiros", continua a defensora-geral. "'Você não tem, então eu estou aqui levando para você, mas você vai ser grato'. É como criar uma solução para um problema que não deveria existir."
Araújo diz ainda que "a ausência total de Estado" em muitas cidades isoladas da região gera desconfiança.
"Quando fazemos visitas, encontramos pessoas totalmente desconfiadas. O Estado que elas conhecem é o que vai punir, não o que vai oferecer direitos", explica.
Ela exemplifica: "Fomos a um lixão na periferia de Belém para oferecer registros. Um senhor olhou para mim e perguntou para que o Estado queria dar um documento pra ele. Ele disse: 'É para me prender?'
À BBC News Brasil, o governo do Estado do Pará disse que tem trabalhado para reverter o cenário, informando que expede "uma média de 50 mil cédulas de identidade por mês" e que "até o final do ano passado existia um dado nacional de que o Pará era o 10º Estado que mais emite documento de identidade no Brasil".
Em nota, o governo informou que "desde janeiro, início da nova gestão no Estado, a polícia civil tem intensificado as chamadas 'Ações de cidadania' para oferecer o serviço de emissão de documento de identidade às comunidades".
"A polícia civil mantém contato direto com associações comunitárias, onde é identificada a necessidade de garantir esta emissão tanto em Belém como no interior do Estado. Dessa forma, a polícia civil prepara essas ações de cidadania e, através de mutirões, monta equipes especificamente pra se deslocar para essas regiões do Pará para atender essa demanda reprimida pelo documento de identidade", continua o governo.
O governo ainda informa que "uma das queixas da população do interior é com relação à distância".
"Muitas vezes, essas pessoas pertencem às comunidades mais remotas, moram em distritos, vilas, zonas rurais e queixam-se muito da dificuldade de ter acesso ao documento. Pois necessitam se deslocar à sede do município onde pertencem ou, até mesmo, a outro município mais distante. Sabendo disso, o Estado, por meio da polícia civil, tem unido esforços para levar o serviço até onde a comunidade vive."
Fonte: UOL