‘Me sinto um cachorro’: a difícil vida de brasileiros sem documentos

Reginaldo, 63 anos: “Sou um zero à esquerda”. Maria da Conceição, 52 anos: “Eu me sinto um cachorro”. Fátima, 57 anos: “Eu me sinto como um nada”. Carlos, 22 anos: “A pessoa quando não se registra fica como um ninguém, a pessoa não existe”.

São pessoas que Fernanda da Escóssia encontrou pelo seu caminho como pesquisadora. Jornalista que já havia debruçado sobre o assunto ao longo da carreira, durante o doutorado na Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV CPDOC) Fernanda investigou como a falta de um documento fundamental – a certidão de nascimento – impacta na vida de brasileiros.

O epicentro das apurações de Fernanda foi o chamado ônibus da Praça Onze, no Rio, esforço conjunto de frentes do Estado para reduzir os sub-registros. Três perguntas guiaram a pesquisadora durante o trabalho: Como um adulto vive sem documentos numa sociedade documentada? Como se vê sem documentos? Que papel atribui ao registro de nascimento? Agora, uma versão da tese chega aos leitores: “Invisíveis: Uma Etnografia Sobre Brasileiros Sem Documentos” (FGV Editora).

Alguém não ter sequer a certidão de nascimento pode ser uma situação inimaginável para muita gente. Segundo dados de 2015 do IBGE, no entanto, cerca de 3 milhões de brasileiros não tinham documentos. E quem não tem registro feito ao nascer não pode tirar RH, CPF, CNH, carteira de trabalho… A consequência disso? Nada de votar, ter emprego formal, conta em banco, bem no próprio nome ou auxílio de políticas sociais. Atendimento médico? Só em caso de emergência.

Fernanda escaneia o perfil desses brasileiros à margem da burocracia oficial. São quase sempre pobres ou muito pobres. Mulheres, na maioria, com predomínio das negras. Olhando para histórias particulares, alguns pontos se repetem: são pessoas que vivem açoitadas num ciclo contínuo de diferentes formas de violência: agressões, fome, miséria, racismo, machismo… “Minha mãe não quis me registrar porque disse que eu era muito preta, nem parecia filha dela”, conta uma das entrevistadas. Outra relata que o pai registrou apenas os homens da família; para o tacanho, mulheres não precisavam de documentos.

É gente que muitas vezes vê a obtenção de um papel timbrado pelo Estado como a chance para a solução de seus problemas. Não que seja um processo fácil. Nossa burocracia labiríntica soa ainda mais incompreensível para quem está apartado dos arquivos oficiais. Esses brasileiros, aponta Fernanda, têm um tipo peculiar de convívio com a ideia de cidadania: “Uma cidadania que percebe o Estado como uma sucessão de balcões, paralisada e paralisante, e que não soluciona o problema a ele apresentado. Acima de tudo, uma cidadania forjada numa espera que aponta para a submissão”.

Num universo de caminhos burocráticos que muitas vezes não levam a lugar nenhum, certas situações beiram o surreal. A dos presos sem documentos é um bom exemplo. Paradoxalmente encarcerados pelo Estado que até então negava toda a sua estrutura por não lhes reconhecer, passam a ter identificação criminal mesmo sem o registro civil. Viram pessoas “legíveis para a punição do crime, mas ilegíveis para o conjunto mais amplo dos direitos”.

Apesar do texto um tanto engessado pelo academicismo que carrega de sua origem, a pesquisa de Fernanda tem um grande mérito: o olhar cuidadoso para as pessoas, as histórias individuais, não apenas para grandes estatísticas ou teorias. É bacana acompanhar como, num mundo kafkiano, muitos dos que buscam por documentos também encontram solidariedade e acolhimento. É bom constatar que há burocratas que contrariam a caricatura sisuda e pouco afável da própria burocracia.

Fernanda enfatiza: para quem nunca teve nenhum tipo de registro, passar a ter um documento é ter acesso não só a benefícios, direitos e serviços, mas também “acesso à cidadania e à esperança”. O poder simbólico de se entender com o básico da papelada dentro do emaranhado burocrático estatal ecoa nas palavras de Rita. “Agora eu vou me sentir viva, né?”, disse após obter o primeiro registro.

As palavras de Maria da Conceição são as que, talvez, melhor sintetizem o valor simbólico da obtenção de um documento. “É um ouro que não tem preço. Antes eu não vivia. Agora eu sou rica. Eu antes não podia fazer nada. Pra mim todo o ouro do mundo não tem o valor desse documento. Se eu ganhasse na loteria, eu não era tão feliz. Além do mais, quando eu morrer vou ter nome no túmulo”.

 

Fonte: Splash UOL