Mobilização nacional quer garantir indenização do governo a filhos de hansenianos

Impedidos de conviver com familiares confinados em colônias, eles sofreram violência física, psicológica e social

Separados dos pais desde o nascimento, como forma de evitar o contágio, os filhos de portadores de hanseníase carregam sequelas na alma, mais difíceis de curar que as do corpo. Calcula-se que mais de 40 mil bebês e crianças cresceram isolados em 101 orfanatos e educandários no Brasil, enquanto seus pais eram separados em colônias. Tornaram-se “órfãos” de pais vivos por imposição do Estado. Meu maior sonho era poder tocar na mão da minha mãe”, diz Maria das Dores Moreira, de 53 anos, a Dadá, ex-interna da Pupileira Hernane Agrícola, no Bairro do Horto, na Região Leste de BH. Eram permitidas visitas das mães, desde que fosse mantida distância mínima de 100 metros, separadas por cerca de arame farpado.

Agora, para minimizar o impacto da violência física, psicológica e social sofrida por várias gerações, o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) está fazendo mobilização nacional para que os filhos separados sejam indenizados, a exemplo do que já ocorre com ex-internos. Inspirado na iniciativa das Avós da Praça de Maio, na Argentina, o Morhan pretende ajudar os ‘filhos separados’ a reencontrarem seus pais, por meio de parceria com o Instituto Nacional de Genética Médica Populacional (Inagemp), para mapear o histórico dos familiares e submetê-los a exames de DNA. Em Minas, o a entidade está promovendo debates e audiências públicas com apoio de parlamentares. Na quarta-feira, será realizada audiência pública na Câmara Municipal de Betim, para discutir o assunto.

A política de prevenção da hanseníase foi baixada em 1921 por meio de portaria. Minas Gerais era o estado com o maior número de colônias de hansenianos, incluindo a Colônia Santa Izabel, de Betim, a maior do país. Passados 90 anos, até agora os filhos e netos de portadores da doença evitaram contar suas histórias, que beiram ao desespero. Os depoimentos são comoventes. Sob o estigma da lepra, gerações inteiras cresceram sem colo de mãe, laços de família foram cortados e irmãos viveram como estranhos. É o caso de Tereza Miguel Caetano, de 39 anos, e de Maria de Fátima Oliveira, a Fafá, de 56 anos. Durante 35 anos, as duas dividiram o mesmo teto do educandário, sem saber que eram irmãs.

Apesar de sobrenome e idade diferentes, Tereza e Fafá sempre foram amigas inseparáveis dentro da instituição. A mais nova cuidava da mais velha, que apresenta leve retardo mental. “Cheguei aqui com um dia de vida, ainda com o coto do cordão umbilical. Disseram que minha mãe tinha falecido durante o meu parto e que, 15 dias depois, meu pai também teria morrido”, diz Tereza que, intimamente, nunca aceitou a versão contada pelas freiras. Queria ter uma família, conforme imaginou na redação com o tema “Minha família”, premiada como a melhor da sala na 4ª série. Há quatro anos, Tereza decidiu tirar a prova. Pagou, do próprio bolso, o teste de DNA que comprovou a suspeita de que ela e Fafá eram irmãs por parte de pai.

Traumas

Nem mesmo os campos de concentração nazistas cometeram a crueldade de isolar as crianças de suas origens. No Brasil, os filhos foram separados dos pais em creches e educandários até 1986, apesar da descoberta da cura da lepra na década de 1940. As internações continuaram por quase 50 anos, sem necessidade. “Há relatos de pessoas contando que, quando crianças, rezavam todas as noites para contrair a doença. Para elas, essa seria a única forma de voltar para casa”, explica Thiago Flores, presidente em Minas do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Mohan) e estudante de psicologia da PUC Minas. Em trabalho final de curso, ele identifica traumas profundos nos filhos de ex-pacientes, como traços de depressão, dificuldades de aprendizagem e fobia social.

“Minha única revolta é terem me separado do meu pai e da minha mãe. Queria ter ficado do lado deles, mesmo que estivessem doentes”, desabafa Antônio Marco de Souza Helino, de 38 anos, que atualmente trabalha como jardineiro e sacristão na igreja matriz da ex-colônia de Três Corações. “Eu sempre recebia a visita da madrinha Maria das Dores. Na inocência de criança, achava que ela era minha mãe. Até que um dia, lá pelos 13 anos, chegou um grupo de quatro senhoras para nos visitar. Eles colocaram as quatro juntas e perguntaram qual delas eu achava que seria a minha mãe. Apontei a Das Dores e só então fiquei sabendo que ela realmente não era minha mãe. Fiquei triste”, revela.

Toninho não culpa a mãe verdadeira por ter se dedicado mais a visitar os filhos que nasceram do outro lado da colônia, frutos de outra relação. Criado no educandário Olegário Maciel, em Varginha, sente mais mágoa por ter sido impedido de frequentar a escola normal, em função do preconceito. Era tachado de “filho de leprosos, filho de dedinhos, filho de pé torto”. Hoje, dedica-se com todas as forças a cuidar da própria família – a mulher e a filha de 9 anos, estudante da 5ª série. “O que não tive para mim quero dar a ela: carinho e uma boa faculdade”, diz. “No orfanato, nunca pude sentir o colo de minha mãe. Calor, era só de pano”, lamenta.

Desespero, fuga e castigo

“No dia da visita, minha irmã conseguiu contrabandear o retrato da nossa mãe por baixo da cerca. Tenho a foto guardada até hoje. Só assim lembro do rosto da minha mãe, Maria Piedade da Silva, Maria Piedade da Silva”, revela Dadá, repetindo diversas vezes “Maria Piedade da Silva”, como se fosse esquecer o nome da própria mãe, a quem mal conheceu. Aos 5 anos, Dadá organizou uma fuga em massa da pupileira. Incitou um grupo de pequenos a pularem o muro e irem a pé até a colônia. Não foram muito longe. “Só queria ir para casa”, diz. A tentativa lhe valeu uma surra e a inscrição de “muito rebelde e agressiva” na ficha de registro da instituição, à qual teve acesso meio século depois, ao voltar ao orfanato onde passou parte da infância.

No quartinho dos fundos do orfanato, hoje transformado em creche municipal, estão armazenadas caixas com milhares de fichas de ex-internos. Cada uma delas vai servir como prova na hora de reivindicar o pagamento de indenização aos filhos separados pelo governo. Seus pais, ex-internos de hospitais-colônia de hansenianos isolados compulsoriamente até 1986, já estão recebendo pensão federal vitalícia, no valor de R$ 884 mensais. “O Brasil tem uma dívida para com essas pessoas. Muitas não conseguiram se reintegrar depois em sociedade e seguir vida normal”, alerta Artur Custódio, presidente nacional do Mohan, que este ano lançou a bandeira dos filhos separados pelo isolamento compulsório.

Em nome do sofrimento de Antônia Barroso, moradora da Colônia Santa Izabel, mais de 6 mil ex-internos de hospitais-colônia submetidos ao isolamento compulsório já receberam cerca de R$ 200 milhões do INSS, desde a edição da Medida Provisória 373, de 2007. Aos 77 anos, Antônia Barroso é a personagem da história da “moça que estava grávida e a polícia sanitária a tirou de casa e a levou para o leprosário. O marido se suicidou, e a filha, quando nasceu, foi retirada dela imediatamente e colocada num dispensário, orfanato contíguo ao sanatório. As mães só podiam ver os filhos pelos vidros, sem ter contato. A filha desapareceu, e ela só a reencontrou 35 anos depois”. Por meio desse relato, o secretário da Presidência da República de Lula, Gilberto Carvalho, ainda no cargo, convenceu o ex-presidente a receber uma comitiva de 150 hansenianos, que chegou de surpresa a Brasília, sem marcar horário na agenda.

Tocado por depoimentos como os de Antônia, Lula deu prazo de 20 dias para que sua equipe preparasse medida provisória em benefício dos ex-internos das colônias de hansenianos. Em 40 dias, os primeiros ex-pacientes passavam a receber a pensão federal. “Tirei retrato com o Lula. Ele me abraçou três vezes”, confessa Antônia, que se internou em 1960 e, em 1962, já estava curada da doença, restando apenas dois dedos atrofiados na mão direita, além do semblante cansado. “Sofri tanto que até esqueci”, conclui.


Doença tem cura há 70 anos
Considerada a mais antiga doença da humanidade, a hanseníase é caracterizada pela presença de feridas no corpo do enfermo, que podem provocar deformidades físicas na fase aguda. É transmitida pela respiração, por meio de contato íntimo e prolongado com o portador do bacilo de Hansen. A doença tem cura desde 1940. No Brasil, o tratamento da poliiquimioterapia (PQT) é simples e oferecido gratuitamente nos postos de saúde. A doença já deixa de ser transmitida na primeira dose do medicamento, que mata 90% dos bacilos, mas o tratamento não pode ser interrompido. Dura, em média, seis meses.

 

Fonte: Jornal Estado de Minas

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