Mais uma ação relacionada ao aborto tramita na Justiça. Desta vez, o Ministério Público Federal (MPF) pediu para que a Declaração de Óbito deixasse de ser exigida nos casos de “abortos induzidos previstos em lei” feitos no Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (MG). Entre outras questões, grupos pró-vida temem que o fim dessa exigência possa incluir também procedimentos realizados por meio de “teleaborto”. A exceção prevista na ação civil pública seria quando a mulher pedisse o documento para poder enterrar o corpo do bebê.
A ação civil pública foi ajuizada em janeiro de 2021 pelo procurador da República Leonardo Andrade de Macedo. Além do hospital, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a União constam como réus na ação. O pedido foi considerado improcedente em primeira instância, mas o MPF recorreu dessa decisão.
Após a sentença proferida pelo juiz federal Osmar Vaz de Mello da Fonseca Júnior, o defensor público da União Danilo de Almeida Martins entrou no caso na terça-feira (30). Ele apresentou pedido para ser parte da ação na qualidade de custos vulnerabilis (“guardião de vulneráveis”, papel constitucional utilizado pela Defensoria Pública da União (DPU) em outros casos) em favor dos nascituros. Ou seja, caso a requisição seja acatada pelo tribunal, ele vai defender os direitos da criança que ainda não nasceu ou daquela que morreu durante a gestação.
Norma do CFM determina que o documento de óbito deve ser preenchido pelo médico, em casos de aborto, quando se der uma das seguintes hipóteses: a partir de 20 semanas de gravidez; peso corporal do feto igual ou superior a 500 gramas; ou quando a estatura do bebê abortado for igual ou superior a 25 cm. A Declaração de Óbito é exigida para que se possa fazer um sepultamento no Brasil.
Para o procurador do MPF, nos casos em que a mulher não quer sepultar o feto – chamado por ele na petição inicial de “produto da concepção” -, a Declaração de Óbito não tem utilidade e causaria sofrimento à gestante, que teria de relatar mais uma vez as circunstâncias que a levaram a fazer o aborto, processo que ele cita como “revitimização estatal”.
“A Declaração de Óbito no caso de aborto induzido só se justifica quando solicitado pela mulher, para fins de sepultamento (por razões pessoais, culturais ou religiosas), hipótese em que o médico estará obrigado a emitir o documento. Nas situações em que o produto da concepção receba outras destinações (remessa ao instituto médico legal para processamento dos vestígios do estupro, doação a projetos institucionais para fins de estudo e pesquisa, incineração ou outras destinações previstas nas normas de gerenciamento de resíduos de serviços de saúde), a Declaração de Óbito não tem nenhuma utilidade, configurando, tão somente, mais um constrangimento à vítima, confrontada com as circunstâncias do aborto, parte do condenável processo de revitimização estatal”, argumentou Macedo.
No pedido, o MPF também mencionou o chamado “aborto legal”, termo que não existe na legislação brasileira. O aborto é crime tipificado no Código Penal, não sendo penalizado apenas em dois casos: quando a gravidez é decorrente de um estupro ou há risco de vida para a mãe. Além disso, em julgamento em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que bebês com anencefalia também podem ser abortados, caso esse seja o desejo da família.
Sentença e apelação do MPF
O pedido do MPF foi considerado improcedente pelo juiz federal Osmar Vaz de Mello da Fonseca Júnior, da 3ª Vara Federal Cível e Criminal da Subseção Judiciária de Uberlândia (MG), do Tribunal Federal da 1ª Região (TRF-1). A sentença foi dada em julho de 2021.
Na sentença, o magistrado apontou que, nos casos de aborto induzido não penalizados, não é a mulher a responsável pela Declaração de Óbito, mas o serviço de saúde e, portanto, não existiria a “revitimização” da gestante apontada pelo MPF. “Nos casos de interrupção da gravidez previstos em lei, não se deve atribuir à puérpera, salvo se assim o desejar, o dever de ambular do hospital ao cartório, deste à agência funerária e, dali, ao cemitério, para sepultar o feto concebido a partir de humilhante violação, ou nos demais casos informados na inicial. É que, conquanto seja imperativa a emissão da Declaração de Óbito, penso que tal medida e as subsequentes, cartorárias e para efetivação do sepultamento, devem estar a cargo do respectivo serviço de saúde”.
Além disso, como a Declaração de Óbito também é um documento importante para o estabelecimento de políticas públicas em favor das mulheres, e sua suspensão seria prejudicial também nesse sentido.
Após a decisão em primeira instância, o procurador da República recorreu da sentença. Na apelação, Macedo afirmou que, “para fins de registro e controle estatístico, o procedimento já é notificado por meio da Ficha de Notificação de Violência no âmbito do SINAN – Sistema de Informação de Agravos de Notificação, configurando erro técnico a dupla notificação do aborto no SINAN e por meio de Declaração de Óbito. Na realidade, diferentemente do que ocorre no aborto espontâneo, no aborto induzido o óbito fetal é um ato intencional; logo, não faz sentido inclui-lo, por meio da Declaração de Óbito, em estatísticas epidemiológicas sobre mortalidade fetal, para fins de investigação e controle de doenças e mortes passíveis de prevenção”.
Já no pedido para ser admitido e se manifestar na ação, o defensor público Danilo de Almeida Martins recordou que o artigo 2º do Código Civil resguarda os direitos do nascituro desde a concepção. Entre esses direitos estaria o de ampla defesa e os direitos de personalidade, incluindo a Declaração de Óbito nos moldes previstos na norma do CFM. “Mesmo que lhe ceifem a vida, a criança ainda no ventre de sua mãe tem seus direitos de personalidade assegurados, pois sua vinda a este mundo ocasiona repercussões jurídicas, dentre as quais podemos citar seu nome, imagem e direito à sepultura”, afirmou o defensor público.
Martins salientou ainda a validade dos argumentos utilizados pelo juiz de primeira instância para julgar improcedente o pedido do MPF: como a Declaração de Óbito é ato médico sem a necessidade de assinatura da mãe, ou seja, não existe o problema de “revitimização”. Com o uso da imagem de um feto de mais de 20 semanas descartado no lixo, o defensor criticou também a tentativa do MPF de desumanização ao chamar o bebê abortado de “produto da concepção” que poderia estar sujeito a “incineração ou outras destinações previstas nas normas de gerenciamento de resíduos”.
“Como se sabe, esses recursos de linguagem buscam suavizar o real significado das palavras a fim de dissimular as motivações daquele que as profere. Assim, referir-se ao ser humano como “produto da concepção” e defender que seu destino seja aquele referido nas “normas de gerenciamento de resíduos” soa muito mais agradável do que dizer que o destino do ser humano é a lata de lixo”, escreveu.
Nessa fase, a Procuradoria Regional do Ministério Público Federal (MPF) também será chamada a se pronunciar sobre a questão na qualidade de “Fiscal da Lei”. Essa manifestação, porém, será dada por membro do MPF diferente daquele que propôs a ação.
A decisão sobre o fim ou a continuidade da exigência da Declaração de Óbito para fetos abortados no Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (MG) ou por meio de teleaborto caberá aos desembargadores federais que compõem a Sexta Turma do TRF-1. Depois disso, recursos podem ser apresentados no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no STF.
Teleaborto
Se porventura a Justiça decidir que o Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia não pode mais exigir a Declaração de Óbito dos fetos abortados dentro do ambiente hospitalar, fontes ouvidas pela reportagem da Gazeta do Povo afirmam que essa obrigação poderá não ser mais cobrada também nos casos de aborto por telemedicina ou “teleaborto” orientados pelo hospital.
Já o MPF afirmou que a “ação seria inaplicável aos casos de telemedicina atendidos no HCU, porque estes são restritos a situações de gestação de até 9 semanas”. Confira a nota do MPF na íntegra no fim da reportagem.
Durante a pandemia, o próprio hospital em Uberlândia criou uma cartilha sobre o uso de medicação abortiva longe do ambiente hospitalar. A cartilha foi feita em parceria com o Instituto ANIS, que defende a legalização total do aborto. Em casos de gravidez decorrente de estupro, a mulher recebe o misoprostol, e faz o procedimento abortivo em casa – sem acompanhamento de equipe especializada in loco; ela seria orientada a como agir por meio de telemedicina.
Medicamentos como o misoprostol, de acordo com a bula, só podem ser utilizados em ambiente hospitalar. Além de provocar a morte e expulsão do feto, há riscos para a gestante. Embora a propaganda usada pelos defensores do aborto seja a de que o uso é simples e sem riscos, a verdade é que se trata de uma substância agressiva e perigosa.
O material contraria as normas do Ministério da Saúde, que prevê que o aborto – nos casos não punidos pela lei – só pode ser feito após exame físico, ultrassonografia e internação da mulher. Todos esses procedimentos, segundo a publicação, poderiam ser substituídos por uma teleconsulta para o “teleaborto”.
Além disso, a cartilha também não está de acordo com a regulamentação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que estabelece que o uso do misoprostol só pode ser feito em ambiente hospitalar. Por tantas irregularidades, o manual é alvo de uma ação do Ministério Público Federal (MPF) e da Defensoria Pública da União (DPU).
Outro lado
A reportagem pediu os posicionamentos do MPF, da DPU, do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, do CFM e da Advocacia-Geral da União (AGU) – que faz a defesa da União – sobre a ação civil pública.
À reportagem, a AGU ressaltou a importância da Declaração de Óbito e explicou sobre as funções principais do documento: elaboração de estatísticas de morbimortalidade da população brasileira e ainda possibilitar a lavratura da Certidão de Óbito.
“A necessidade de declaração de óbito decorre de imposição legal. A declaração de óbito tem dois objetivos principais: a) coleta os dados sobre a mortalidade que servem de base de cálculo para as estatísticas vitais e para elaboração do perfil de morbimortalidade da população brasileira; b) ser o documento hábil para lavratura, pelos Cartórios de Registro Civil, da Certidão de Óbito, indispensável para as formalidades legais do sepultamento, nos termos da Lei dos Registros Públicos – Lei 6.015/73 (art. 53).
No âmbito do Ministério da Saúde, a regulamentação se deu por meio da Portaria de Consolidação GM/MS nº 1º, de 28 de setembro de 2017, que trata da captação de dados sobre os óbitos no país a fim de fornecer informações sobre mortalidade para todas as instâncias do sistema de saúde. O objetivo é identificar os fatores determinantes e subsidiar a adoção de medidas que possam prevenir a ocorrência de óbitos evitáveis.
A ação ajuizada pelo MPF foi julgada improcedente, tendo o juízo reconhecido a importância da declaração de óbito para municiar o Estado de informações capazes de sustentar políticas em benefício das próprias mulheres que sofreram violência, a partir de estatísticas mais precisas. Também foi reconhecida a impossibilidade de interferência do Poder Judiciário em matéria de competência exclusiva do Poder Executivo. O MPF apresentou recurso, sem apreciação pelo TRF”, informou a AGU.
Já o CFM também ressaltou as finalidades legais e estatísticas da Declaração de Óbito e reforçou que os parâmetros para a emissão do documento estão de acordo com as regras estabelecidas pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde.
“O fornecimento da Declaração de Óbito é ato privativo do médico, conforme estabelece a Resolução CFM nº 1.779/2005, norma editada há mais de 15 anos pelo CFM, dentro das suas competências legais;
Os parâmetros para emissão da Declaração de Óbito em morte fetal presentes na Resolução do CFM estão em consonância com os fixados pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde;
A declaração de óbito no aborto por razões médicas e legais se enquadra nas finalidades da declaração de óbito, entre elas: conhecer a situação de saúde da população e gerar ações visando a sua melhoria; alimentar as estatísticas nacionais e oficiais sobre o perfil de morte no Brasil; e definir prioridades que compõem as políticas públicas em saúde;
Toda a argumentação do CFM acerca deste tema foi apresentada e acatada pelo Judiciário brasileiro, que, em julho deste ano, julgou improcedente a ação proposta pelo Ministério Público Federal. Após apelação (recurso) do MPF, o CFM apresentou contrarrazões que aguardam novo julgamento”, destacou o conselho.
Em nota enviada à reportagem, “a Gerência de Atenção à Saúde do Hospital de Clínicas da UFU (HC-UFU) informa que, enquanto réu da ação, o HC-UFU se manifestará nos autos do processo”.
No que diz respeito à DPU, a reportagem questionou quais foram as razões que levaram o órgão a não participar da ação desde o princípio. A resposta da DPU foi de que a atuação dos defensores se baseia no princípio da independência funcional.
Na nota, “a Defensoria Pública da União (DPU) esclarece que a atuação dos defensores públicos federais se baseia no princípio da independência funcional, previsto no § 4º do artigo 134 da Constituição Federal, assim como nos artigos 3º e 43, inciso I, da Lei Complementar 80/94.
Dessa forma, o fato de o defensor público federal Danilo de Almeida Martins ter feito ou não pedido para ser parte da ação 1000287-80.2021.4.01.3803 do Ministério Público Federal (MPF) na qualidade de custos vulnerabilis em favor dos nascituros não depende de prévia análise de mérito ou autorização hierárquica superior e também não representa necessariamente o posicionamento institucional sobre o tema”, informou a DPU.
Já os questionamentos direcionados ao MPF diziam respeito ao risco de o fim da exigência da Declaração de Óbito ser utilizada em situações não previstas em lei ou em casos de teleaborto.
Com relação ao primeiro ponto, o MPF ressaltou que “a ação se restringe apenas aos abortos previstos em lei, em especial, nos casos de gestações resultantes de estupros. Não há na ação pretensão de legitimar ou ocultar abortos clandestinos, praticados fora das hipóteses autorizadas pela lei”.
Sobre o teleborto, o órgão informou que “a Declaração de Óbito só é exigida atualmente quando a gestação tem duração igual ou superior a 20 semanas ou o feto tem peso corporal igual ou superior a 500 gramas e/ou estatura igual ou superior a 25 cm, por força de normas do Conselho Federal de Medicina e do Ministério da Saúde. Fora dessas hipóteses não há exigência de DO. Assim, a ação seria inaplicável aos casos de telemedicina atendidos no HCU, porque estes são restritos a situações de gestação de até 9 semanas”, disse o MPF.
Ainda em nota, o MPF reforçou alguns pontos e argumentos presentes na ação civil pública. Diz o órgão:
“Com relação à Ação Civil Pública, gostaríamos de prestar os seguintes esclarecimentos: De acordo com manual do Ministério da Saúde, a Declaração de Óbito tem dois grandes objetivos: (a) ser o documento padrão para coleta de informações sobre mortalidade, subsidiando as estatísticas vitais e epidemiológicas no Brasil; e
(b) viabilizar a lavratura da Certidão de Óbito pelos Cartórios de Registro Civil para efeito de liberação de sepultamento e outras medidas legais. No caso do aborto previsto em lei, a Declaração de Óbito não cumpre nenhuma dessas finalidades.
Para fins de registro e controle estatístico, o procedimento já é notificado por meio da Ficha de Notificação de Violência no âmbito do SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), configurando erro técnico a dupla notificação do aborto no SINAN e por meio de Declaração de Óbito. Na realidade, diferentemente do que ocorre no aborto espontâneo, no aborto induzido o óbito fetal é um ato intencional; logo, não faz sentido inclui-lo, por meio da Declaração de Óbito, em estatísticas epidemiológicas sobre mortalidade fetal, para fins de investigação e controle de doenças e mortes passíveis de prevenção.
A Declaração de Óbito no caso de aborto em vítimas de estupro só se justifica quando solicitado pela mulher, para fins de sepultamento (por razões pessoais, culturais ou religiosas), hipótese em que o médico estará obrigado a emitir o documento. Nas situações em que o produto da concepção receba outras destinações (remessa ao instituto médico legal para processamento dos vestígios do estupro, doação a projetos institucionais para fins de estudo e pesquisa, incineração ou outras destinações previstas nas normas de gerenciamento de resíduos de serviços de saúde), a Declaração de Óbito não tem nenhuma utilidade, configurando, tão somente, mais um constrangimento à vítima, confrontada com as circunstâncias do aborto, parte do condenável processo de revitimização estatal, como reconhecido na sentença pelo Juízo: “Nesse contexto, não se pode discordar da afirmação ministerial de que, sem menção às perturbações psíquicas, muitas vezes perpétuas, a mulher é vítima não apenas do seu algoz, mas passa por um processo de constrangimento em procedimentos os mais variados, da formalização de seu clamor à autoridade policial, às oitivas em processos penais, até a efetiva punição de seu agressor, além, é claro, de vivenciar a expedição da declaração de morte do produto da conjunção forçada, risco de vida à mulher e anencefalia, salientou o MPF na nota enviada à reportagem.
Fonte: Gazeta do Povo