Durante todo o ensino fundamental e médio, a vida escolar de Caio Henrique Campos, hoje com 19 anos, foi marcada por uma série de constrangimentos. Caio conta que o motivo principal é que precisava segurar a vontade de ir ao banheiro. Algo que para muitas pessoas parece simples, para ele sempre foi sua maior dificuldade, pois logo aos 7 anos, se deu conta de que precisaria ir ao banheiro das meninas, mas não se identificava como tal, e se fosse ao dos meninos, vinha um inspetor de alunos tirar. Por causa desses episódios, ele passou a segurar o máximo que podia, mas por duas vezes o xixi escapou. "Uma na sala de aula e outra na van, voltando da escola", lembra. Há três meses, agora na faculdade, Caio conquistou o direito de poder usar o banheiro masculino e ser chamado por um nome com o qual se identifica. O benefício do nome social é um direito recente, válido nas escolas e universidades de todo o Estado de São Paulo a estudantes transgêneros, sejam eles transexuais ou travestis. Na rede pública estadual, as solicitações de alunos saltaram nos últimos meses, de 182 para 290, em todo o Estado, totalizando um aumento de 59,3%. Na região de Sorocaba, 15 alunos fizeram o pedido, sendo que dois são daqui da cidade, conforme balanço feito pela equipe técnica de Diversidade Sexual e de Gênero da Secretaria de Estado da Educação.
O termo transgênero refere-se a pessoas cuja expressão social ou identidade de gênero difere daquela tipicamente associada ao gênero que lhes foi atribuído no nascimento. Transexual é o indivíduo que além da identidade de gênero diferir daquela designada no nascimento, procura fazer a transição para o gênero oposto através de intervenção médica (administração de hormônios e cirurgia de redesignação sexual). Já o termo travesti é usado para se referir aos que se vestem como o sexo oposto, mas optaram por não fazer cirurgia.
Aluno do 1º ano do curso de Administração da UFSCar, onde faz uso do nome social, Caio Henrique afirma que seria mais fácil poder trocar o nome do registro civil. Para ele, o nome social é um direito mínimo. "Entendo que o nome social é uma resistência da sociedade para conceder o registro civil. É até preconceito, pois é uma forma de distinguir a pessoa".
Se na universidade Caio é chamado pelo nome que se identifica, o mesmo não ocorre quando precisa dar seu documento em qualquer outro lugar. "É um constrangimento que você passa, ter de justificar por que sua aparência não condiz com seu nome".
Para conseguir mudar o registro civil, é preciso passar por psiquiatra durante dois anos, fazer um tratamento hormonal e ter previsão de cirurgia. Caio pretende passar pela transformação. "O nome do registro civil não me representa, não me faz bem quando me chamam por ele. Tudo bem que o nome não muda quem você é, mas muda o que as pessoas vão esperar de você".
Conforme ele, no SUS a fila é grande – 16 anos de espera pela cirurgia. "Para poder tomar hormônio é preciso que o psiquiatra dê o laudo da doença, mas não me sinto doente. Me sinto uma pessoa que nasceu com falta de hormônio. Faltou a testosterona para mim. Não sou doente, apenas sou alguém que não nasceu num corpo adequado ao que me sinto".
Caio pretende retirar os seios e comenta que tem amigos que não queriam tomar hormônio, mas a Justiça só concede a mudança do registro civil se a pessoa o fizer. "No meu caso eu quero tomar pois gostaria muito de poder fazer a barba. Acredito que esse seja o sonho de muitos garotos que observam seus pais quando criança. Mas não penso em fazer implante. Não preciso de um órgão para me sentir homem".
Desde pequeno
Caio lembra que desde pequeno começou a perceber que não se encaixava nas brincadeiras de meninas e o maior conflito veio com o uso do banheiro, já no período escolar. O estudante lembra que costumava andar só com os primos homens e enquanto as meninas sempre quiseram estojo da Barbie, ele tinha estojo básico preto. E nunca chegou a usar saia. "Deixei de ir a vários lugares, eventos sociais como casamentos, porque teria de ser obrigado a colocar saia ou vestido e isso me incomodava, eu achava que estava me fantasiando, que não era eu", diz, lamentando que muitas crianças terão de passar por isso, já que em Sorocaba, uma lei aprovada pela Câmara no ano passado (Lei 11.185/2015) determina o uso de uniforme nas escolas municipais e particulares de acordo com o sexo biológico e também proíbe o uso do banheiro de acordo com o gênero. Para Caio, é muito triste saber dessa decisão.
O estudante conta que somente quando saiu do colegial é que cortou o cabelo bem curto. "Até então eu tinha um pouco de apreensão por causa da minha família, que é muito fechada. Minha mãe é pastora e sempre achou que meu comportamento era assim porque acreditava ser uma fase mais moleque e que iria passar. Para ela é mais difícil aceitar", diz.
Seu maior medo era que a mãe o expulsasse de casa quando soubesse. "Descobrir que na verdade não tinha uma filha e sim um filho significa negar tudo o que ela planejou para sua vida", acredita Caio.
A mãe ainda não aceita e o chama pelo nome antigo. "Ela disse que reza muito por mim e que eu ainda vou mudar".
Dados apontam que os transexuais são os mais expulsos de casa, mais do que os homossexuais, pois para a família a mudança de sexo é um choque maior.
Medida paliativa para uma sociedade transfóbica
O nome social possibilita a transexuais e travestis o mínimo de respeito às suas identidades, porém serve para amenizar uma demanda maior, que é a mudança do gênero e do nome de registro. Muitos consideram uma vitória, mas uma espécie de "puxadinho"", afirma Kadu Nunes, um dos organizadores da Parada LGBT de Sorocaba.
Para Kadu, o correto seria a aprovação da Lei João W. Nery, que reconhece a identidade de gênero. "Mesmo sendo uma medida paliativa, ainda estão querendo tirar esse pequeno direito [para quem é do funcionalismo público]", lamenta.
Em 2016, a Parada LGBT de Sorocaba tem como objetivo colocar em debate questões relativas às transidentidades. "Será uma forma de apelo para que toda a população se sensibilize contra a transfobia", diz Kadu. Já o pesquisador Marcos Garcia, doutor em Psicologia Social pela USP e professor do Departamento de Ciências Humanas e Educação da UFSCar Sorocaba, afirma que o nome social só existe por preconceito. "Nossa sociedade é transfóbica e não aceita a transexualidade. Ela exige que as pessoas que nascem com pênis e as que nascem com vagina sejam consideradas respectivamente homens e mulheres, e isso é extremamente opressor para quem não se identifica com o corpo biológico".
Marcos, que é integrante do Núcleo de Estudos de Gênero e Diversidade Sexual da UFSCar, lembra que os episódios de agressão direcionados à população LGBT se acentuam em famílias que vêm de religiões mais fundamentalistas, como evangélica e católica tradicional. "A expulsão familiar é muitas vezes sutil, a família fica provocando conflitos de tal modo que a pessoa é obrigada a sair".
Ainda de acordo com o professor, a transfobia sem dúvida alguma não envolve só a orientação sexual mas também a identidade de gênero. "Para os pais, existe a vergonha do que o vizinho vai achar, o amigo, etc. Quanto mais afeminado o menino, mais masculinizada a menina, mais a família quer esconder. Muitos pedem que esse jovem aja com o que é esperado para seu gênero ou saia de casa".
Pedido pode ser feito a qualquer momento
Desde o dia 14 de maio de 2014, com a deliberação número 125, do Conselho Estadual de Educação (CEE), passou a ser regulamentada a inclusão do nome social nos registros escolares das instituições públicas e privadas de ensino do Estado de São Paulo para pessoas cuja identidade de gênero seja distinta de seu sexo biológico. Caso seja menor de idade, o estudante deverá ter a autorização do pai ou responsável na hora do pedido. Igualmente o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) permite o uso do nome social, porém o prazo para este ano terminou ontem.
Na Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, a legislação entrou em vigor em 2015. Conforme Thiago Sabatine, coordenador do Núcleo de Educação para a Diversidade Sexual e de Gênero da Secretaria, a ação da Pasta engloba não apenas a instituição do uso do nome social, como também investimentos na formação dos educadores para estarem preparados para acolher esses alunos. "As escolas devem respeitar o uso do nome social e promover ações pedagógicas com a finalidade de desconstruir preconceitos e atitudes discriminatórias. Quando a gente olha para pesquisas em âmbito educacional, vemos que muitos trans acabam abandonando os estudos dada a situação de vida deles", diz.
Para o aluno pedir a inclusão do nome social nas escolas estaduais, basta requerer à instituição onde estuda, a qualquer tempo, em qualquer período do ano. A escola, então, tem sete dias para incluir o nome social no sistema de cadastro de alunos, a partir do qual são gerados os documentos escolares de circulação interna como lista de chamada, carteirinha de estudante e boletim.
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Fonte: Jornal Cruzeiro