Aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas na última semana, órgão dá aos direitos humanos o mesmo peso que a segurança e o desenvolvimento na hierarquia da ONU. Mas seu real modo de funcionamento ainda não foi definido, o que deixa em aberto a efetiva proteção da dignidade humana nos países.
Há um ano, o secretário geral da ONU, Kofi Annan, lançou um documento intitulado “Em maior liberdade: desenvolvimento, segurança e direitos humanos para todos”, em que apresentava quatro áreas “problemáticas” da Organização das Nações Unidos. O documento tentava apontar caminhos para uma reforma da ONU que ajudasse na retomada da credibilidade da instituição, sobretudo diante das mudanças do sistema internacional pós final da guerra fria e de acontecimentos como a invasão não autorizada do Iraque em 2003, que colocaram em xeque a eficiência do órgão. Neste cenário, após a Cúpula do Milênio + 5 realizada em setembro do ano passado, o sistema de promoção e defesa dos direitos humanos da ONU havia perdido eficiência e seu fortalecimento passou a ser visto como um fortalecimento das próprias Nações Unidas.
A solução apontada como ideal neste processo foi a criação do Conselho de Direitos Humanos, em substituição à antiga Comissão, que há tempos vinha recebendo críticas de diversos países e da sociedade civil. Na última semana, a Assembléia Geral das Nações Unidas finalmente aprovou a criação do Conselho, depois de um longo processo de negociação entre os países, que durou cerca de seis meses. A Comissão, que volta a se reunir em Genebra nesta segunda (27), trabalhará agora pelo encerramento de suas atividades e para a transição das funções.
Criada em 1946 e formada por 53 Estados-membros, eleitos a cada três anos, a Comissão de Direitos Humanos da ONU funcionou até agora como uma esfera fiscalizadora. Todos os anos, entre março e abril, os países se reuniam por seis semanas para analisar e definir medidas de proteção e promoção dos direitos humanos e também de punição às violações cometidas em todo o mundo. Em média 100 resoluções eram apresentadas por ano, e a maioria era aprovada por consenso. Uma vez que um Estado era condenado, havia um constrangimento moral internacional para o país dentro ONU. No entanto, nos últimos anos, a Comissão vinha sendo acusada de seletividade e de uma excessiva (ou negativa) politização. Por exemplo, em função dos países colocarem seus interesses acima dos direitos humanos, era difícil para a Comissão tratar de um tema como orientação sexual ou condenar situações de extrema violação, como a base norte-americana de Guantánamo, em Cuba.
“Politizada a ONU é. O problema é que a Comissão agia de forma hiperpolitizada, o que fazia com que os países fossem tratados de forma desigual dependendo do seu poder de barganha. Grandes países faziam parte da Comissão para se proteger, mais do que para proteger os direitos humanos. Cuba, por exemplo, criticava todos os anos que era impossível condenar os Estados Unidos pelo órgão. Todos concordavam que ele estava seletivo e politizado demais”, explica Lúcia Nader, coordenadora de Relações Internacionais da Conectas Direitos Humanos, uma das organizações civis brasileiras que participaram do processo de negociação para a criação do Conselho.
A segunda razão para a criação do novo órgão é fazer com que os direitos humanos tenham dentro da ONU o mesmo peso que a questão da segurança e do desenvolvimento – debatidas no âmbito do Conselho de Segurança e do Conselho Econômico e Social (Ecosoc), ao qual até agora estava subordinada a Comissão. Simbolicamente, colocar os direitos humanos ao lado de segurança e desenvolvimento significa aumentar seu status dentro da máquina das Nações Unidas. O próprio Kofi Annan afirmou que não há segurança sem desenvolvimento e direitos humanos, nem direitos humanos sem segurança e desenvolvimento. Os três aspectos seriam indissociáveis.
NEGOCIAÇÕES
Após a aprovação pela Cúpula de setembro de 2005 que a ONU passaria a ter um Conselho de Direitos Humanos com este status, teve início uma série de negociações entre os países acerca de aspectos como manto e funções do Conselho, tamanho, composição e critério para eleição dos membros, regras de procedimento e métodos de trabalho. Os debates foram conduzidos pelo presidente da Assembléia Geral, Jan Eliasson, e pelos embaixadores Ricardo Alberto Arias, do Panamá, e Dumisani S. Kumalo, da África do Sul, escolhidos como Co-Chairs das negociações. Eles elaboraram um documento com todas as contribuições formuladas pelos Estados. E as negociações então passaram a ser conduzidas a partir deste documento. Durante este período, houve muitas dúvidas se o Conselho seria mesmo criado, já que o documento aprovado pelos chefes de Estado na Cúpula se resumia a afirmar que o órgão devia se encarregar de violações de direitos humanos, fazendo recomendações aos países, sem maiores especificações.
No final de fevereiro, Jan Eliasson apresentou uma proposta de resolução que acolhia pontos onde tinha sido possível avançar, assumindo que o documento não estava perfeito e que certamente não agradaria a todos. Mas que os 16 parágrafos da resolução apresentada era o que de mais forte em termos de proteção e defesa dos direitos humanos tinha sido acordado entre os Estados.
Aprovados na semana passada por 170 votos a favor e 4 contra – Estados Unidos, Israel, Ilhas Marshall e Palau –, além de 3 abstenções – Venezuela, Belarus e Irã –, a resolução determina que o Conselho se reportará diretamente à Assembléia Geral e será integrado por 47 países (em vez dos 53 da Comissão) eleitos por maioria absoluta (ou seja, metade mais um dos Estados presentes votando).
“Uma das maiores quedas de braço durante as negociações foi como seriam eleitos os membros do Conselho. O Estados Unidos e grande parte da sociedade civil defendiam a eleição por dois terços dos votos, para evitar que países considerados grandes violadores de direitos humanos fossem eleitos”, conta Lúcia Nader. Em fevereiro, a Conectas enviou uma carta ao conselheiro Antonio Luis Espinola Salgado, do Ministério das Relações Exteriores, que acompanhava as negociações pelo Brasil. No documento, a ONG afirmava que a defesa da aprovação por dois terços se sustentava “na crença de que a exigência da maioria qualificada contribuiria para inibir a possibilidade de eleição de Estados notoriamente reconhecidos por serem violadores sistemáticos dos direitos humanos”.
Os norte-americanos também pediam a limitação do Conselho a 30 membros e exigiam que um país sob investigação internacional por desrespeito dos direitos humanos fosse automaticamente excluído. No entanto, o critério de maioria absoluta prevaleceu para não inviabilizar a participação de países importantes e evitar que a conformação do Conselho acabasse sendo muito ocidental. Qualquer país pode se candidatar, sendo que os eleitos terão seu desempenho avaliado durante os três anos de mandato. A grande novidade é que, agora, os Estados podem votar pela saída de um membro em razão de “sistemáticas violações dos direitos humanos”.
CONSTRANGIMENTO INTERNACIONAL
Outra pressão feita pelas entidades de defesa dos direitos humanos aqui no Brasil foi para manter no novo Conselho um mecanismo da Comissão que permitia que um país apontasse violações de direitos humanos cometidas pelo outro. O sistema de resoluções de violações em países específicos (country-resolutions), ou seja, a pressão diplomática sobre os Estados que sofrem denúncias de violações e a exposição internacional dos votos de cada Estado membro, era o que garantia parte da efetividade da Comissão – apesar de vir sendo usado com seletividade e hiperpolitização. Na opinião das ONGs, o problema não estava no mecanismo em si – que corria o risco de ser descartado pelo novo Conselho, já que as negociações caminhavam no sentido de relativizar a função de monitoramento e proteção universal dos direitos do órgão –, mas sim na forma como os países o vinham utilizando.
Durante as negociações, havia três propostas que poderiam comprometer o sistema de proteção e promoção do novo Conselho: o fortalecimento das atividades de cooperação técnica, o mecanismo de revisão periódica e a manutenção das country-resolutions apenas para situações de crises urgentes.
“Mesmo reconhecendo a importância do reforço da cooperação técnica, é notório que alguns países alegam necessidade de cooperação visando amenizar suas responsabilidades por violações sistemáticas aos direitos humanos. Preocupa-nos ainda, em outros casos, que o reforço do mecanismo de cooperação técnica aumente a seletividade do órgão, pois poucas vezes os países desenvolvidos que violam direitos humanos poderão ser submetidos aos trabalhos do Conselho sob esse item. Dessa forma, continuariam sendo expostos apenas os países em desenvolvimento”, afirmaram Conectas e o Centro de Justiça Global em uma carta enviada ao ministro Celso Amorim, das Relações Exteriores.
No caso da manutenção das resoluções somente para crises urgente, “ o receio é que muitos casos de violações sejam excluídos por não configurarem uma crise urgente, esvaziando ainda mais o papel de proteção dos direitos humanos do Conselho de Direitos Humanos e da própria ONU”, disseram as entidades.
Na opinião da coordenadora da Conectas, um país precisa ser sempre confrontado ao constrangimento internacional para mudar sua postura. Se ela não mudar, não haverá diferenças resultantes da criação de novos órgãos no bojo das reformas da ONU.
“Criou-se uma estrutura institucional que é melhor que a Comissão, que simbolicamente coloca os direitos humanos no mesmo patamar de segurança e desenvolvimento, e que dá fôlego novo num cenário que estava desmoralizado. O cenário agora é bom, mas nada disso vai mudar se os países que compõem o Conselho não colocarem a proteção aos direitos humanos acima dos interesses geopolíticos. Todas as críticas feitas ao sistema multilateral – quem manda, quem paga, como funciona – valem para o Conselho também. É um avanço, mas o trabalho está só começando. A luta para que não se repita a história da comissão é diária. A postura dos países tem que mudar e a credibilidade da ONU como um todo está mais do que na hora de ser recuperada”, conclui Lúcia.
A Comissão de Direitos Humanos da ONU será abolida em 16 de junho, e o Conselho se reúne pela primeira no dia 19 do mesmo mês. As eleições para os 47 novos membros acontecem no dia 9 de maio.
Fonte: Agência Carta Maior