O continente americano e a variedade de seus notariados

Talvez não existisse pessoa dentro da União Internacional do Notariado (UINL) com maior conhecimento em lidar com situações antagônicas. Notário há 34 anos na cidade de San Juan, capital de Porto Rico, Dennis Martínez Colón, se acostumou a lidar com a dualidade da ilha, fato que certamente lhe auxilia a compreender os diferentes sistemas notariais existentes em todo o continente americano.
 

Recentemente, após um referendo popular, os cerca de 4 milhões de habitantes optaram por manter o País vinculado aos Estados Unidos. Sua atual denominação é a de um território livre, sem personalidade jurídica, pertencente aos Estados Unidos. Os cidadãos são bilíngues – falam inglês e espanhol – e a atividade notarial é exercida conjuntamente com a advocacia, reunindo cerca de 9 mil notários, sendo que apenas 1/3 praticam atos notariais. “Cerca de 500 notários praticam mais de três partes da totalidade de escrituras no País”, disse Dennis.

 

Completados quatro anos à frente da Vice-presidência da UINL para a América do Norte, Central e Caribe, e reeleito para o cargo nesta última gestão, Dennis fala com autoridade dos variados sistemas notariais do continente, que vão desde o anglo-saxão praticado nos Estados Unidos, passando pela dualidade do sistema canadense, com notários do tipo latino e anglo-saxões convivendo no mesmo País, pela prática do notariado em conjunto com a advocacia nos países da América Central, até os regimes socialistas do continente, onde prevalece o notariado público.

 

Diante de tamanha variedade de contextos notariais, Dennis elogia o atual momento do notariado brasileiro e pede que os avanços obtidos pelo País nos últimos anos sejam compartilhados com o restante da América Latina. “Ouvi nos últimos eventos internacionais relatos de muitos avanços tecnológicos no Brasil, que são bastante atrativos e que podem inspirar grandes evoluções nos notariados das Américas.”

 


 

Leia abaixo a íntegra da entrevista.
 

CNB-CF – Como avalia a atual situação dos notariados na América Central e na América do Norte?
 

Dennis Martínez: O notariado na América Central é atípico e diferente do resto do mundo. Em quase todos os países as funções de advogado e de notário se fundem, criando conflitos éticos. As funções não são separadas, nem se distinguem as responsabilidades de ambas, e do ponto de vista da UINL isso gera muitos problemas, uma vez que os notários não se unem para trabalhar em benefício dos princípios do notariado. Geralmente, o grupo de notários é menor que o grupo de advogados, o que faz com que os advogados dominem as decisões. Temos um projeto muito difícil na América Central, mas muito interessante do ponto de vista da UINL. Estamos propondo que se realize anualmente uma Conferência Centro-Americana, com o intuito de que os notariados da América Central se reúnam para discutir seus problemas e que os convidados internacionais falem sobre a realidade no resto do mundo, que é muito diferente. Queremos que esses profissionais vejam que em outros países há notários e há advogados, profissões incompatíveis e separadas, pois essa realidade não é conhecida, nem aceita na América Central. A primeira conferência Centro-Americana já foi realizada em Honduras e obteve grandes resultados.
 

CNB-CF – Quais são os principais problemas que a fusão entre as atividades de notários e advogados causam à profissão?
 

Dennis Martínez: As duas profissões não são distintas. A função do notário é como se fosse um extra, uma tarefa adicional delegada ao advogado, que não dá o assessoramento devido e não é portador da fé pública. As atividades notariais geram apenas uma renda extra para o advogado, sem que ele entenda a importância da função notarial, que é o assessoramento, a garantia da legalidade e a força probatória. Os advogados não entendem isso e me procuram pedindo uma escritura ou uma solução para seus problemas. Eles não entendem a dinâmica do assessoramento, da garantia de legalidade de um negócio particular. Para eles, é meramente uma solução litigiosa e a população destes países acaba não entendendo qual é a função do notário, o que faz com que se crie um clima desfavorável para os Tabeliães destes países.
 

CNB-CF – Como funciona o sistema jurídico nos EUA, país que não é adepto do notariado tipo latino?
 

Dennis Martínez: O notariado anglo-saxão, The Notary Public dos EUA, exerce uma função social mínima. A única função que os notários têm é a de reconhecer e autenticar firmas. Não há assessoramento, nem fé pública em nenhum procedimento. A única fé pública que dão é o reconhecimento da assinatura e da data. É incontestável e incontroverso o fato de que uma pessoa afirmou e de que afirmou nessa data, mas o que foi acordado, o que havia antes desse acordo não importa ao notário, pode ser até uma sentença de morte, pois a função do Tabelião é a de somente autenticar a firma. Todos os outros aspectos são deixados a cargo de legislação especial, de bancos, de desenvolvedores de contratos e de advogados. Não há custas, nem garantia de assessoramento, não importa a situação que a demanda é apresentada, porque depois que é reconhecida e autenticada a firma, o documento é perfeitamente válido. Existe um profissional chamado Close Imediant, que é uma pessoa que recolhe dinheiro e documentos até que seja cumprida uma lista de requisitos que são exigidas por um banco ou pelo formador do contrato. Quando todos os elementos estão prontos, nomeia-se uma pessoa para legalizar a transação e o notário colhe as assinaturas e reconhece-as, juntamente com a data, concluindo assim o negócio. Se existir alguma irregularidade não há para quem reclamar. As pessoas vão à Justiça e os tribunais não acham uma solução. Não há ninguém mais a quem reclamar, o comprador vai pedir o reembolso para sua companhia de seguros e a empresa avaliará e pagará, porém pagará em dinheiro e a pessoa perderá a propriedade. Não existe garantia nenhuma para a propriedade. O comprador só será compensado em dinheiro, pois foi feito um seguro. Esse sistema funciona, o problema é que o notário não tem controle em nenhuma dessas decisões e o cidadão acaba sendo privado da propriedade pela qual pagou.

 

CNB-CF – Em comparação com o notariado de tipo latino, quais são as desvantagens do sistema anglo-saxão para os usuários e para o governo?
 

Dennis Martínez: Existe uma citação de um economista que disse que “Talvez se nos EUA existisse um notariado do tipo latino, não teria ocorrido a crise dos subprimes”. Este problema surgiu porque existem vendedores de produtos financeiros que motivam usuários inadimplentes a contrair uma dívida que depois não podem pagar, dizendo somente a parte boa do negócio e não informando suas deficiências. Essa é uma grande falha no sistema, pois se a pessoa tem algum problema, ela precisa resolvê-lo sozinha, pelo fato de não existir um profissional ao qual recorrer, tendo que arcar com as consequências de suas ações. Esse sistema em que cada um busca seu próprio assessoramento, não é justo e traz um problema como os subprimes, que teve impacto mundial. Não digo que se existisse um notário não teria ocorrido um problema dessa proporção, mas, por exemplo, no meu país havia o sistema latino e o problema dos subprimes não foi tão grande quanto nos EUA. Não vejo nenhuma razão para apoiar um sistema como esse quando se conhece os benefícios da justiça preventiva. Nós, latinos, temos a justiça preventiva. Os EUA tem a justiça restaurativa, que nada mais é do que esperar o problema vir e buscar uma solução, a qual muitas vezes eles não acham. Nós prevemos o problema antes, e ao evitá-lo produzimos a Justiça.
 

CNB-CF: Ainda na América do Norte, o Canadá é um país regido pelo sistema anglo-saxão, mas em Quebec é utilizado o sistema tipo latino. Como avalia esta mistura desses sistemas nesse país?
 

Dennis Martínez: Os notários de Quebec que eu conheço são muito exclusivos, não se misturam com o restante do Canadá. Em uma visita que fiz a Vancouver, tive a experiência de conhecer alguns Notary Publics que têm uma organização na qual é necessário ter mestrado para se associar. Existem exatamente 350 notários lá. É uma mistura, e não há relação entre os dois tipos de notariado. O do tipo latino não faz relações com o da British Columbia e vice-versa. É como se eles fossem de países diferentes, o que representa um problema para a UINL, porque o notariado de British Columbia não cumpre com os requisitos, mas tem alguns pontos que acreditamos serem bons, que devem ser incentivados.
 

CNB-CF – Houve uma experiência nos EUA para tentar implantar o notariado de sistema latino. Como está essa situação atualmente?
 

Dennis Martínez: O Estado da Flórida tem uma boa lei, que está baseada nas leis francesas. O problema é que a lei dos EUA não dá nenhuma competência exclusiva ao Civil Notary, que é o notário de tipo civil latino. O trabalho da UINL nesse caso é buscar um nicho, um lugar onde esse notário possa fazer o seu trabalho. Todos os procedimentos são feitos pelo Notary Public, enquanto o Civil Notary não é levado em conta. Existem no mercado americano negócios que interferem fora dos EUA, por exemplo, um contrato que será assinado nos EUA pode ir para o Brasil, para a França ou para a Espanha. Um Civil Notary na Flórida faz exatamente os mesmos procedimentos, nesse caso, que um notário na Espanha, na França ou no Brasil, porém as custas são diferentes e há uma certa ignorância da população sobre este serviço. Atualmente os notários da Flórida não oferecem muitos serviços, mas a Justiça está estudando delegar-lhes alguma jurisdição voluntária, um procedimento em que o cidadão possa ir no Civil Notary ao invés de ir ao Tribunal, porém, por enquanto, é só um projeto que tem que passar pelos tramites políticos e legislativos até que possa se tornar uma lei. É necessário que haja uma maior divulgação da profissão e uma legislação mais específica para que o Civil Notary tenha mais incumbências.
 

CNB-CF – A UINL tem planos de abrir um escritório em Washington.  O que pensa desta iniciativa?
 

Dennis Martínez: Eu a acho muito interessante. É um projeto muito difícil, mas muitas coisas que ocorrem no notariado e na economia mundial têm origem em Washington. A ideia é ter um elo em Washington para sabermos o que está acontecendo, além de ter um escritório completo para trabalhar. Queremos fazer alianças e começar a participar mais ativamente de outras atividades de Washington. No próximo mês de março participaremos de uma atividade chamada Law and Justice, realizada pelo Banco Mundial, e acreditamos que podemos colaborar com outras atividades e eventos de organizações que tem sede em Washington. A União quer um escritório neste lugar para que tenhamos oportunidades de inteirar-nos e termos uma atuação significativa em benefício da UINL.
 

CNB-CF – Em sua opinião quais são os notariados com os melhores sistemas do tipo latino no continente americano?
 

Dennis Martínez: Segundo o que pude constatar, o notariado argentino é muito estruturado, tem um bom sistema, um grande controle sobre os atos praticados, além de ser muito capacitado e ter um vasto acervo acadêmico. O México tem um grupo muito fechado de notários e suas associações têm muita força. Não conheço muito bem o notariado brasileiro, mas sei que existem muitos notários no País, além de ter uma boa organização e uma atuante representação internacional. Cito também o notariado de Quebec, que é como uma nação separada do Canadá. Eles têm uma organização muito boa, além de muito controle e muita competência nos diversos serviços prestados ao cidadão. Em minha opinião, os melhores notariados da América são os da Argentina, Brasil, México e Quebec.
 

CNB-CF: Quais são os notariados que passam por maiores dificuldades no continente americano?


Dennis Martínez: Hoje em dia vemos claramente que Venezuela, Nicarágua e El Salvador passam por grandes dificuldades, seguidos pelo Chile, país no qual agora a função do notário se mistura com a do registrador, além de não existir uma associação representativa para a classe e nem um representante internacional dos notários chilenos. Porém, de todos, acredito que os que enfrentam mais problemas são Nicarágua e Venezuela, pois eles têm a visão socialista de que fortalecer uma organização de classe vai contra o plano geral do governo. Não existe em nenhum dos dois países uma associação representativa ou de controle notarial. Os demais países têm os seus problemas, porém estão evoluindo.
 

CNB-CF – Como avalia o atual estágio do notariado brasileiro?
 

Dennis Martínez: Acho o notariado brasileiro muito interessante. Ouvi nos últimos eventos internacionais relatos de muitos avanços tecnológicos no Brasil, que são bastante atrativos e que podem inspirar grandes evoluções nos notariados das Américas. Usar a tecnologia como ferramenta a serviço do notariado é muito importante para mim. Eu acredito que o Brasil deva se integrar ainda a UINL, demonstrando estes e outros avanços que podemos acompanhar nas comunicações que agora nos chegam com grande frequência por parte do notariado do Brasil. Gostaria muito de ver uma participação ainda maior do País. Sei que há uma dificuldade com o idioma, pois na maior parte da América fala-se o espanhol, mas trabalharemos isso para assegurar que os benefícios conquistados pelo notariado do Brasil sejam compartilhados com o resto do continente. O continente americano espera por isso.


CNB-CF: Quais são os principais projetos da UINL para a atual gestão?
 

Dennis Martínez: O presidente Daniel Senghor esteve presente, recentemente, na 3ª Conferência de Regularização Fundiária, que em francês é chamada de tremént, palavra criada pelos notários para falar sobre a importância de uma escritura, de um papel que prove o direito que um cidadão tem sobre uma terra para o desenvolvimento mundial. Honestamente, no início eu não entendia isso, mas agora vejo que se eu não posso provar meu direito é como se eu não o tivesse. O gatekeeper, a pessoa que tem o controle desses documentos, é o notário. A primeira foi em Uagadugú, Burkina Fasso, e os países africanos reconheceram a importância da escritura e a função do notário no desenvolvimento da África. A segunda conferência foi no continente americano, no México, onde realizamos um evento multidisciplinar, falando sobre a forma de promover o desenvolvimento com o intuito de regulamentar, validar e legalizar a posse da terra. A regularização é o que nós fazemos de melhor e a importância do notário nesse processo para servir e promover o desenvolvimento é reconhecida mundialmente. Estamos falando também da circulação do ato notarial, quando um instrumento feito no Brasil pode ser reconhecido e validado na Argentina, na França, na Itália, porque cumpre o princípio mínimo do notariado latino que todos conhecemos. A comissão Centro-Americana está trabalhando em um projeto no Haiti, ajudando o notariado haitiano na reconstrução de seu País. Haverá também um encontro das Américas em Miami, que tem o intuito de apresentar as referências mundiais do Civil Notary – o notário do tipo latino – para os notários e advogados de Miami, para motivá-los a conhecer esse sistema. Esses projetos resumem meu trabalho nos próximos três anos.
 

CNB-CF – No mês de setembro haverá no Brasil a 2ª Conferência Afroamericana, uma ideia do presidente Daniel Senghor. O que acha dessa iniciativa?


Dennis Martínez: A África é um continente que está em crescimento, que tem muitas semelhanças e possibilidades de união com a América, e o objetivo dessa conferência é dar uma oportunidade para que os dois continentes troquem seus projetos e suas ambições e, principalmente, seus problemas notariais. A África tem cerca de 20 países com o notariado tipo latino, assim como o nosso continente e talvez por razões culturais e pela distância não nos conhecemos, mas é um continente muito ativo no notariado tipo latino. Nossa ideia principal é permitir a união entre esses dois continentes.

 

 

Fonte: Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal