RIO-“Lara” é o que mais se lê em um aconchegante quarto de bebê de uma casa em Mesquita, na Baixada Fluminense. Na almofada do berço, nas lembrancinhas dentro do armário, na placa destinada a enfeitar a porta do quarto na maternidade no último 14 de maio. O nome, escolhido por Luciana Krull e José Luiz Fonseca antes mesmo do casamento, ganhou vida com a gestação da primeira filha e, nove meses depois de sua concepção, se tornou uma das principais lembranças da pequena, que faleceu no útero materno durante o trabalho de parto. As quatro letras cuidadosamente bordadas no enxoval não foram incluídas na certidão de natimorto de Lara por conta de uma lacuna na Lei de Registros Públicos, que não especifica se a denominação pode constar no documento.
O desejo de diversas famílias de verem o nome dos filhos natimortos na certidão fez com que o casal criasse uma petição on-line que já conseguiu apoio de cerca de 75 mil pessoas e da Defensoria Pública do estado, que solicitou ao Tribunal de Justiça do Rio a formulação de uma norma que oriente os cartórios a deixar a cargo dos pais a decisão de incluir ou não o nome da criança no registro.
— Perdemos nossa filha em maio, eu estava com 39 semanas de gestação. E foi uma dor absurda. Já na maternidade eu me deparei com uma notificação do hospital onde estava escrito natimorta de Luciana Santos Krull. Aquilo me chocou. É como se aquela criança nunca tivesse existido para a sociedade — afirma Luciana, mãe de Lara.
A Lei federal 6.015 de 1973, que aborda a questão, estabelece que, no caso de criança nascida morta ou falecida durante o parto, o registro poderá ser feito com “os elementos que couberem”, sem especificar quais seriam eles. A brecha na lei faz com que os cartórios do país tenham distintas interpretações e, na maioria das vezes, não permitam o registro do nome da criança. Assim, a certidão traz apenas termos como “natimorto” e “óbito fetal”. Em alguns estados, como São Paulo, Sergipe, Pernambuco, Mato Grosso do Sul e Rondônia já há resoluções das corregedorias de Justiça, que deixam facultativo aos pais o registro do nome no documento.
Em junho de 2015, o Senado Federal aprovou um Projeto de Lei que permitia a inclusão do nome do filho no registro. No entanto, no mês seguinte, Michel Temer, que na época estava como presidente em exercício, vetou integralmente o PL, alegando ausência de interesse público na proposta e justificando que “a alteração poderia levar a interpretações que contrariariam a sistemática vigente no Código Civil, inclusive com eventuais efeitos não previstos para o direito sucessório”.
— A gente se depara com a situação dessas mães que depois de perder seus filhos recebem um papel dizendo “um natimorto do sexo masculino ou feminino”, com essa falta de identidade. Percebemos que isso seria uma segunda violência, uma violência institucional — critica a defensora pública Arlanza Rebello, coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem/RJ), esclarecendo que a sugestão não indica a criação de direitos para o natimorto:
— A proposta é que se tenha uma interpretação da lei que possa acolher o desejo dos pais de colocar o nome no documento. Não estamos falando em criar direitos novos, discutir natureza jurídica do natimorto. Só vai ter significado na vida afetiva dessas pessoas. A família não vai conseguir afastar nunca a perda, mas pode ter uma certidão que diga: olha, a Lara está aqui.
Em termos práticos, a ausência do nome do filho na certidão faz com que os pais não possam, por exemplo, fazer uma lápide dedicada à criança.
— Na hora que cheguei no cartório e peguei o registro, mesmo sendo advogado fiquei chocado. Você pega a certidão de natimorto e o nome da sua filha que existiu não está ali. Levei a certidão no cemitério e quis fazer uma lápide, mas não pude colocar o nome dela, teria que colocar natimorto de José Luiz e Luciana. Então decidimos deixar sem — conta José Luiz Fonseca, pai de Lara.
No abaixo assinado iniciado pelo casal, Luciana pede que a Justiça carioca permita que os pais de natimortos registrem o nome de seus filhos. Para somar forças na empreitada, além da Defensoria do estado, o casal procurou auxílio do grupo Do Luto à Luta, criado por mães que também perderam seus filhos.
— Recebemos inúmeros relatos de famílias que não conseguiram colocar o nome do filho na certidão e vimos que esse é mais um dano adicional, que deveria ser evitado. Tomamos a iniciativa de fazer uma réplica de certidão on-line, que chamamos de certidão de amor eterno, para atender essas famílias que não têm seu filho reconhecido pelo estado. Nela escrevemos “declaro que fulano (nome da criança) viverá para sempre em seus corações e memória” — relata Larissa Lupi, uma das fundadoras do grupo que lança o livro “Histórias de amor na perda gestacional e neonatal” hoje, no Museu da República, a partir das 13h.
PRESENTE EM DOBRO
Cinco meses após a partida da filha— que “se foi como um passarinho”— os pais de Lara reviram suas roupinhas ao abrir ontem, pela primeira vez, a mala que levaram para a maternidade. Em meio a vestidos floridos e sapatos repletos de laços, eles tentavam identificar peças neutras e imaginar como o espaço que antes abrigaria um, poderá a partir de março receber dois bebês.
— Estou grávida de gêmeos univitelinos. Lucas, que já era um nome partilhado com a Lara na primeira gravidez caso fosse menino. E Gabriel, porque é o mensageiro das boas novas, e ele realmente veio trazendo uma mensagem de esperança — conta Luciana, finalmente sorrindo.
Fonte: Jornal O Globo