Após quase três anos de espera, incluindo o período de um processo judicial, a jornalista e fotógrafa Céu Ramos Albuquerque conseguiu o direito de retificar o nome e o sexo na certidão de nascimento. Ela é a primeira pessoa intersexo de que se tem notícia em todo o Brasil a fazer a alteração com esse termo no registro civil, segundo a Associação Brasileira Intersexo (Abrai).
O g1 acompanhou o momento em que a recifense de 32 anos — que já fez oito cirurgias para corrigir uma mutilação sofrida na infância (saiba mais abaixo) — foi buscar o documento, na quinta-feira (7), no Cartório de Registro Civil de Olinda, onde mora hoje e foi registrada quando nasceu.
A decisão que autorizou a mudança foi publicada pela 2ª Vara de Família e Registro Civil da Comarca da cidade no dia 8 de fevereiro, quase três anos depois que ela entrou na Justiça.
Para a ativista, que divulga avanços da causa em seu Instagram, a próxima conquista da comunidade é garantir que os bebês nascidos com genitálias que não se encaixam nas definições típicas de masculino e feminino sejam registrados como intersexos. Atualmente, esses recém-nascidos são classificados como se tivessem o sexo “ignorado”.
“Quando nasci, passei seis meses sem registro, simplesmente porque os médicos estavam esperando sair um exame cariótipo (teste que identifica os cromossomos de uma pessoa) para saber em qual gênero iriam me encaixar. Isso foi muito violento porque passei seis meses sem assistência médica, passei por diversas coisas porque, para o governo brasileiro, era uma pessoa inexistente”, contou Céu.
Segundo ela, embora a criação do campo “ignorado” tenha contribuído para evitar esse problema, ele não representa as pessoas intersexos nem combate outras práticas de violência.
“Por isso que, a partir de agora, vamos tentar mudar essa categoria de ‘ignorado’ para ‘intersexo’ e dar dignidade e reconhecimento para essas crianças e adultos, resguardando esses corpos de serem mutilados e hormonizados de forma estética”, afirmou a fotógrafa.
Oito cirurgias para corrigir mutilação
Nascida no Recife, Céu descobriu que é intersexo há quatro anos. Logo nos primeiros anos de vida, ela foi submetida a uma cirurgia de “adequação” do seu sexo biológico, como se o fato de ter um órgão genital com características ambíguas fosse uma anomalia ou doença.
Para reparar os transtornos provocados pela mutilação, a fotógrafa fez oito procedimentos desde os 15 anos. O último deles foi realizado no ano passado, em São Paulo.
É daí que vem, na visão dela, a importância de diferenciar os conceitos de gênero e sexo.
“Fiz essa mudança para o ativismo e para as políticas públicas. Isso não interfere diretamente na minha expressão de gênero ou no meu próprio gênero feminino. Até porque é só uma certidão de nascimento, mas é algo que vai trazer um empoderamento e muita força para a própria pauta”, afirmou Céu.
Sexo e gênero como construções sociais
Para Leandro Cunha, professor de direito especialista em direitos LGBTQIA+ da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a repercussão da vitória jurídica de Céu e a discussão sobre as pessoas intersexos devem contribuir para evitar que mais crianças passem por cirurgias que buscam “adequar” o sexo biológico para os parâmetros construídos socialmente.
Ainda de acordo com o pesquisador, a categorização do sexo no registro civil traz sérias implicações, em especial no campo da saúde, visto que alguns serviços são restritos a determinados grupos com base no gênero e nas características físicas dos pacientes.
“Uma pessoa que tinha nos seus documentos a indicação do sexo como masculino, por exemplo, não conseguiria marcar um exame com um ginecologista. Só que uma pessoa intersexo eventualmente pode apresentar essa necessidade. Então, são para nós pequenas coisas, mas, para quem vivencia essa realidade, são alterações extremamente importantes”, falou o professor Leandro Cunha.
Intersexos no mundo
A fala é de Walter Mastelaro, advogado e um dos fundadores da Associação Brasileira Intersexo, membro da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional São Paulo (OAB-SP).
Ele explica que a conquista judicial de Céu é o primeiro caso de que a Abrai tem conhecimento do uso do termo “intersexo” num documento no Brasil. No entanto, casos de retificação correm em segredo de justiça no Brasil, por isso é possível haver outros casos que nunca vieram a público.
Leandro Cunha, que acompanha casos como o de Céu há cerca de uma década, acredita no ineditismo por ser uma pauta que até pouco tempo atrás não era discutida. Ele usa uma boa comparação para ilustrar a importância da visibilidade intersexo em suas aulas na UFBA:
Leandro também explica que pouquíssimos países têm legislação que abarca o termo “intersexo”, o que dá ainda mais dimensão ao marco conseguido por Céu.
“Se a gente conseguir fazer com que essa informação chegue ao público em geral, já é um ótimo começo. Eu acho que uma boa parte da pauta das discussões LGBT como um todo hoje no Brasil passa muito pela incompreensão do que a gente está discutindo. Há o desconhecimento das pessoas. A ignorância das pessoas com relação a esses temas acaba gerando uma série de reflexos extremamente delicados”, afirmou o especialista.
Há anos, a Abrai luta pela viabilização de um Projeto de Lei que garanta a todas as pessoas intersexo o direito de adotar o termo em seus registros, desde o nascimento, sem que seja necessário entrar na justiça com o pedido.
Fonte: G1