PGR opina ser possível o reconhecimento jurídico da existência de mais de um vínculo parental

A Procuradoria-Geral da República manifestou-se pela inexistência de qualquer óbice legal ao reconhecimento simultâneo de paternidades oriundas de vínculos diversos no Recurso Extraordinário (RE) 898060, com repercussão geral reconhecida, no qual se discute prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica. De acordo com o parecer do procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, a já assinalada mudança de paradigma no Direito de Família – da defesa de um modelo de família à defesa das múltiplas formas de ser família – impõe que o intérprete se afaste das preconcepções acerca de modelos sociais para entender, sempre em concreto, como os arranjos familiares se compuseram e como devem ser preservados. “Trata-se, aqui, do ingresso definitivo do princípio da realidade no Direito de Família, isto é: não é o Direito que diz o que é uma família – são as famílias, em suas múltiplas configurações, que definem os diferentes modelos – tradicional ou não – ambos de intervenção jurídica em nome de sua proteção”.

No parecer, Janot argumenta que a partir do momento em que o vínculo biológico deixa de ser a única forma de reconhecimento de parentesco, pode ser que, em situações concretas, mais de um vínculo esteja presente e ativo, tendo significância identitária para os dois polos envolvidos na relação. Assim é que, por exemplo, em um formato de família mosaico, composta da recomposição de núcleos familiares pretéritos que por novas uniões se encontram, dois indivíduos podem assumir e compartilhar voluntariamente tarefas de paternidade, assumindo publicamente o papel de pais. “Aí consta o limite para controle de abusos: não é qualquer situação que acarretará paternidade socioafetiva, mas apenas aquelas em que houve a assunção voluntária e inconteste em algum momento da relação dos papéis de pai e filho, calcada na solidariedade mútua”.

Ainda de acordo com o parecer, a afirmação da possibilidade jurídica da multiparentalidade apenas vem a admitir que a realidade dos arranjos familiares pode ser muito mais complexa do que o modelo binário tradicional vinha admitindo. “Eventuais abusos podem e devem ser controlados no caso concreto. Porém, esperar que a realidade familiar se amolde aos desejos de um ideário familiar não é só ingênuo, é inconstitucional”. A Procuradoria-Geral da República propõe que se assente que é possível o reconhecimento jurídico da existência de mais de um vínculo parental em relação a um mesmo sujeito, pois não admite a Constituição restrições injustificadas à proteção dos diversos modelos familiares, cabendo à análise em cada caso concreto se presentes os requisitos para a coexistência dos vínculos ou para a prevalência de um deles.

Como é de repercussão geral, a Procuradoria-Geral da República propõe a fixação das seguintes teses: Não é possível fixar em abstrato a prevalência entre a paternidade biológica e a socioafetiva, pois os princípios do melhor interesse da criança e da autodeterminação do sujeito reclamam a referência a dados concretos acerca de qual vínculo deve prevalecer; é possível ao filho obter, a qualquer tempo, o reconhecimento da paternidade biológica, com todos os consectários legais, sendo inoponível pelos parentes biológicos, cabendo-lhe exclusivamente tal decisão, pois desdobramento da autodeterminação identitária do sujeito, de proteção constitucional, infensa ao escrutínio dos demais membros da sociedade; é possível o reconhecimento jurídico da existência de mais de um vínculo parental em relação a um mesmo sujeito, pois não admite a Constituição restrições injustificadas à proteção dos diversos modelos familiares, cabendo à análise em cada caso concreto se presentes elementos para a coexistência dos vínculos ou para a prevalência de um deles.

Sobre a ação – Na origem do processo, uma mulher requereu a anulação de seu registro de nascimento feito pelos avós paternos como se estes fossem os pais, e o reconhecimento da paternidade biológica. A intenção dela é ser reconhecida como herdeira também do pai biológico, que veio a falecer. Em primeira instância, a ação foi julgada procedente e este entendimento foi mantido pela segunda instância e pelo Superior Tribunal de Justiça. No recurso interposto ao Supremo, os demais herdeiros do pai biológico alegam que a decisão do STJ, ao preferir a realidade biológica em detrimento da realidade socioafetiva, sem priorizar as relações de família que têm por base o afeto, afronta o artigo 226, caput, da Constituição Federal, segundo o qual “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.

“Verifico que o presente tema – a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica – é relevante sob os pontos de vista econômico, jurídico e social”, afirmou o ministro Luiz Fux ao proferir seu voto pela existência da repercussão geral no RE.

O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) atua como Amicus Curiae (amigos da corte) no processo e entende que devem ser reconhecidas como jurídicas ambas as paternidades, socioafetiva e biológica, em condições de igualdade material, sem hierarquia, a priori, nos casos em que ambas apresentem vínculos socioafetivos relevantes; e que se proclame o reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva. De acordo com o requerimento encaminhado ao STF, “o sentido contemporâneo de família abarca tanto relacionamentos parentais lastreados em vínculos afetivos quanto em vínculos biológicos”. O IBDFAM diz, ainda, que a família não é apenas um dado natural, genético ou biológico, mas também social e cultural e, por essa razão, é possível a possibilidade jurídica do reconhecimento da existência de dois direitos distintos: de um lado, o direito ao reconhecimento da ascendência genética, e de outro, a efetiva relação de parentesco.

Em recente entrevista sobre o tema ao Boletim IBDF@M, o advogado Ricardo Calderón, diretor nacional do Instituto, explicou que na atual complexidade das relações familiares é necessário buscar a coexistência desses modelos, com a eventual declaração da prevalência de uma ou de outra, apenas de acordo com um dado caso concreto e específico. “No conflito em trâmite junto ao Supremo Tribunal Federal a orientação que parece mais adequada é a de reconhecimento da realidade socioafetiva e registral como densificadora dos respectivos vínculos parentais, conclusão essa que estaria adequada ao nosso atual Direito de Família”, afirma.

Segundo ele, a manifestação do STF nesse caso é importante para que se reconheça a “fundamental” distinção entre o direito ao reconhecimento da ascendência genética que é um dos direitos da personalidade e o direito à filiação, que pode ser biológica ou socioafetiva, conforme já foi edificado no Direito brasileiro. “Para deliberar sobre tal litígio, é mister distinguir o direito ao reconhecimento da ascendência genética (da personalidade, portanto) do direito à filiação (do âmbito do Direito de Família). Essa mediação é central na temática em apreço, visto que o mero reconhecimento da ascendência genética não gera, por si, vínculos parentais em todos os casos concretos. Espera-se que o Supremo Tribunal Federal enfrente tais questões ao julgar o caso que está sob seus cuidados, o que, certamente, auxiliará em muito no encontro da melhor solução para a demanda”, reflete.

“No momento há muita confusão quanto a isso”, diz. “As relações familiares não podem estar subordinadas a interesses meramente patrimoniais. Há de se ter cautela com esses casos. Principalmente os casos de filhos adultos, que muitas vezes já possuem outro pai e que buscam uma declaração de uma paternidade com quem nunca vivenciaram uma situação de filiação apenas pelo interesse patrimonial. A análise deve ser de cada caso concreto”.

“Mesmo se for esclarecida a distinção entre esses dois institutos, ainda podem persistir disputas acerca da preponderância entre a paternidade/maternidade biológica e a socioafetiva. A fim de evitar danos na esfera parental dos seres humanos envolvidos nesta ‘aparente dicotomia’, deve-se afastar uma lógica binária, apriorística e desconectada do caso concreto de cada uma das situações colocadas ao Poder Judiciário”, afirma o IBDFAM.

 

Fonte: Ibdfam