Responsabilidade civil extracontratual dos notários e registradores

“Os atos lesivos praticados no serviço delegado, sob o ponto de vista Estatal, são atos omissivos, pois praticados com independência e autonomia pelos notários e registradores. Portanto, o Estado, nesses casos, responde apenas subjetiva e subsidiariamente.”


Essa foi uma das conclusões do desembargador Venicio Antonio de Paula Salles em aula ministrada na segunda fase do 1º Curso de Iniciação na Atividade Registral e Notarial do Estado de São Paulo, na Escola Paulista da Magistratura (EPM) no último dia 9 de novembro.


Oferecido aos aprovados no 5º Concurso Público de Provas e Títulos para Outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de São Paulo – Delegações de Registro de Imóveis, o curso foi realizado por videoconferência e promovido pela parceria entre EPM, Universidade Corporativa do Registro (UniRegistral) e programa Educação Continuada de Cartórios (EduCartório).


Participaram do evento o desembargador Antonio Rulli Junior, diretor da EPM; a juíza Tânia Mara Ahualli, coordenadora de registros públicos da EPM; os registradores Sérgio Jacomino, diretor da UniRegistral, e Flauzilino Araújo dos Santos, presidente da ARISP; e os palestrantes: desembargadores Ricardo Dip (Princípios de Direito Registral) e Venicio Antonio de Paula Salles (Responsabilidade extracontratual dos registradores e notários) e o registrador Luciano Lopes Passarelli (Prática – Cartório virtual).


Responsabilidade civil extracontratual dos notários e registradores


Para o desembargador do TJSP Venicio Antonio de Paula Salles a responsabilidade civil “constitui fundamental instrumental jurídico, de sentido estrutural e necessário para que qualquer organização social aceite, ao menos parcialmente, o exercício do direito de propriedade.”


“A responsabilidade civil representa ideal de justiça social, exigindo o mais correto e ajustado equilíbrio coletivo, na medida em que instiga o respeito patrimonial em geral, atrelando o seu descumprimento à imposição de pena ao infrator, sob a forma de sanção jurídica, consistente na obrigação da reparar, cabal e integralmente, os danos impingidos, tornando indene a vítima da lesão”.


Quanto à formação do mecanismo de responsabilidade civil, segundo o palestrante ele atende a uma dupla perspectiva, podendo ser estruturado sob a perspectiva de quem sofre ou experimenta o dano ou de quem o determina, por sua ação ou omissão, o que projeta resultados diversos, de acordo com o tipo de prova necessária e seu ônus. Portanto, a fixação da perspectiva produz efeitos jurídicos processuais próprios traduzidos em encargos à vitima ou reparação aos danos causados. 


“Pensada como sanção ou pena, a responsabilidade objetiva projetou sua configuração, observando, diretamente, os interesses do agente causador do dano, pois para puni-lo, necessária a prova da culpa”, observou o desembargador.


Ele explicou que a ideia de punição ou sanção prestigiou a ótica do agente causador do dano, uma vez que depende de prova da culpa ou dolo. “A reparação civil, destarte, partiu de seu modelo subjetivo, que vinculou a reparação não apenas ao dano provocado, mas à prova do desvio voluntário ou culpabilidade.”


“Assim, a responsabilidade subjetiva mesmo inspirada no ideal de justiça social e reparadora, inadmitiu a condenação sem culpa, e assim fazendo, onerou duplamente a vítima, com necessidade de comprovação da ilicitude e com o ônus dessa prova.”


“Alguns tratadistas sempre se rebelaram contra essa formulação, exigindo mais dinamismo e mais facilidade na busca da reparação civil. Entre outros, encontramos no prof. Caio Mario da Silva Pereira, uma das mais fortes vozes, exigindo a evolução do instituto.”


“O Código Civil superado contemplava a responsabilidade civil subjetiva, prevendo apenas hipóteses de responsabilidade indireta, sem conceber situações de dispensa completa da culpa. O mesmo modelo veio consagrado pelo atual Código, que, no entanto avançou, concebendo, em situações especiais previstas em lei ou em atividades que envolvam risco, a possibilidade de responsabilidade sem culpa.”


Os tribunais criaram presunções de culpa, referendadas por legislações específicas, com o objetivo de aperfeiçoar o instrumental jurídico da responsabilidade civil visando ao atendimento do ideal de justiça social e desoneração da vítima.


“Obviamente que as relações formadas entre o administrado e Administração Pública, relativas a danos provocados na prestação de serviços públicos, expunha o imenso desnível de forças envolvidas entre o usuário e o Poder Público, dado o gigantismo estatal e a normal dificuldade na produção de provas em face deste ou de seus agentes. Afinal, litigar contra o Estado ou em face de quem lhe faça as vezes, representa encargo árduo demais para o cidadão comum”, observou Venicio Salles.


Ao adotar a teoria do risco administrativo na Constituição de 1946, cuja redação consta também da Carta de 1988, o direito brasileiro “apresentou inegáveis avanços, e mesmo assim não logrou afastar todas as dificuldades práticas.”


“No estudo da responsabilidade civil dos notários e registradores, muitas teorias e formulações foram apresentadas e publicadas, aceitando aplicação da regra constitucional geral ou, em sentido contrário, entendendo aplicável apenas as disposições específicas do serviço extrajudicial. A discussão, primeiro versou sobre a responsabilidade do Estado, e o modelo da responsabilidade dos delegados extrajudiciais, se subjetiva ou objetiva. Debateu-se sobre a validade do art. 28 da LRP, e a real dicção do art. 22 da Lei 8.935/94.”


Depois de examinar o pensamento de “três ilustres estudiosos do Direito Registral” – os desembargadores Décio Erpen, Rui Stocco e José Renato Nalini -, que no seu entender abarcam as principais tendências interpretativas ligadas à responsabilidade civil dos notários e registradores, o palestrante apresenta suas considerações sobre o tema.


O Estado será chamado apenas na ausência do delegado ou se seu patrimônio for insuficiente


“A relevância no enquadramento de um determinado fato a uma dada ‘natureza jurídica’ reside na possibilidade de apropriação e utilização do respectivo ‘sistema jurídico’, tomando-o de emprestado por suas regras e princípios.”


“O ‘serviço’ desenvolvido pelos notários e registradores não reclama, para os propósitos da responsabilidade civil, de um enquadramento perfeito e integral. Mesmo como agentes públicos na forma reconhecida por nossos Tribunais, o enquadramento nada resolve, pois ‘agentes’ não são servidores públicos e não se submetem ao mesmo regime jurídico destes.” 


“Os delegados extrajudiciais são concursados, mas não compõem a estrutura hierarquizada do Estado, conquanto apenas sejam fiscalizados pelo Poder Judiciário, que nesse mister cumpre uma função muito próxima das ‘agências reguladoras’, exigindo serviço adequado aos usuários, pugnando pelo cumprimento dos princípios do art. 37, caput da Constituição Federal, além de desenvolver a normatização das relações entre usuários e delegados. Há, portanto, uma distância muito significativa entre a vinculação funcional hierarquizada dos servidores públicos e a vinculação ou relação entre o delegado e o Poder Judiciário.” 


“Ademais os notários e registradores não percebem vencimentos, como os servidores públicos, mas arrecadam emolumentos, que possuem o sentido jurídico de ‘taxa’, na forma reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. Portanto, são ‘agentes’ sui generis, marcados por peculiaridades próprias que os colocam em categoria jurídica singular.”


“Mas o parcial insucesso do exato enquadramento do delegado extrajudicial não prejudica o presente estudo, posto que a maior relevância é revelada pela identificação da natureza jurídica das atribuições desenvolvidas pelas serventias.”


“Os notários e registradores indiscutivelmente realizam ‘serviço público’, pois receberam a delegação do poder público, conquistando, por assim dizer, parte do poder Estatal.”


“O Estado se despoja de uma atribuição e a transmite a um particular habilitado por concurso, observando regras e formalidades próprias.”


“Relevante é destacar que o serviço notarial e registral, de outro lado, inadmite enquadramento como ‘atividade econômica’, investigação que ganha importância em face da dicção dos artigos 173 e 175 da Constituição, que estabelecem que todas as atividades desenvolvidas pelo Estado somente podem tipificar ‘serviço público’ ou excepcionalmente, ‘atividade econômica’. Neste último caso, por se tratar de uma atuação excepcional, é exigida a expressa autorização legal, montada a partir do atendimento a interesses ligados à segurança nacional ou que revelem relevante interesse coletivo.  Apenas nesses casos o Estado é autorizado legalmente a promover a exploração de ‘atividade econômica’ em concorrência com a iniciativa privada, submetido ao mesmo feixe de normas, sem ostentar qualquer privilégio, para não vulnerar as leis de mercado.”


“Portanto, o Estado respeita essa dicotomia constitucional, entre ‘serviço público’ e ‘atividade econômica’, de sorte que, por exclusão, será serviço público tudo o que não for identificável como atividade econômica e esteja no campo de competência estatal.”


“Destarte, a delegação do serviço extrajudicial por não representar atividade econômica, na medida em que não se insere em mercado de livre concorrência, voltado à conquista de lucro, imperativo o seu enquadramento como SERVIÇO PÚBLICO, e como tal, envolve a responsabilidade civil geral ou própria, prevista no § 6º, do art. 37, da Constituição Federal.”


“Aceito esse enquadramento do serviço extrajudicial como serviço público, é de se investigar se o Estado pode ser chamado a responder por qualquer dano decorrente do exercício da atividade notarial e registral.”


“Observe-se, as serventias de notas e de registro não possuem personalidade jurídica ou personalidade judiciária, de forma que não são ‘pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público’ na forma do § 6º, do art. 37, CF, como ocorre, por exemplo, com as concessionárias que exploram serviços públicos ou realizam obras públicas, pois quando há o envolvimento de tais empresas PRIVADAS, o Estado deixa de responder direta e solidariamente, transferindo o encargo à concessionária, e passa a responder indireta e supletivamente. Apenas em caso de frustração da cobrança frente à concessionária é que o Estado deve responder.”


“O ‘delegado’ pode ser enquadrado como ‘agente público’, mas não responde como ‘servidor público’, por inexistir o vínculo de hierarquia próprio da situação funcional (lógica similar àquela que obriga o empregador por fato do empregado).”


“O delegado que não cumpre vínculo hierarquizado, não atendendo a comandos subjetivos, mas tão só ao sentido legal ou normativo, não pode frequentar a mesma categoria dos ‘servidores públicos’ ou a eles se equiparar por (indevida) simetria.”


“O delegado é agente público, mas não aquele a que alude o § 6º, posto que essa genérica expressão veio utilizada para abarcar os servidores e os empregados das empresas privadas prestadoras de serviço público.”


“O Estado ao conceder a delegação, confere autonomia ao notário e registrador, que, com independência, cumpre seu desiderato, em atenção à lei ou ao seu entendimento ao comando legal. O ato notarial ou de registro compõe natureza de ‘ato administrativo vinculado’, que não inibe opções interpretativas discricionárias.”


“Concluído o concurso de ingresso para o serviço notarial e registral, o Estado deixa impor sua ‘vontade’ aos delegados, que passam a cumprir seus misteres, submetidos apenas à fiscalização. Destarte, o Estado somente poderá ser responsabilizado, em função de falha ou falta do serviço, sob a forma de OMISSÃO, o que faz toda a diferença na questão da responsabilidade civil.”


“Quem chama a atenção para este ponto é o prof. Celso Antonio Bandeira de Mello, que afirma que a hipótese apenas deflagra a responsabilidade subjetiva do Estado.


‘Quanto o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E, se não foi autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo’. (.) ‘Logo, a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre responsabilidade por comportamento ilícito’. (Celso Antonio Bandeira de Mello – Curso de Direito Administrativo – 23ª ed., fls. 981).”


“A construção doutrinaria do ilustre professor da PUC de São Paulo, busca a coerência do dispositivo constitucional, para resgatar seu substrato de “justiça social”, reconhecendo as diferenças, de forma a não permitir que situações distantes sejam carreadas para uma solução única e uniforme, apenas em razão de uma semelhança terminológica. Ademais, mesmo em atenção à literalidade, imperioso é se observar que o § 6º afirma que o Estado responderá pelos danos que causar, o que torna claro que a responsabilidade objetiva somente pode ser deflagrada nos atos comissivos ou mesmo frente a atos omissivos, desde que o Estado tenha o dever que realizá-los ou determiná-los.”


“Os atos lesivos praticados no serviço delegado, sob o ponto de vista Estatal, são atos omissivos, pois praticados com independência e autonomia pelos notários e registradores. Portanto, o Estado, nesses casos, responde apenas subjetiva e subsidiariamente.”


“De outro lado, o delegado notarial e registral realiza serviço público típico, mas não responde como as pessoas jurídicas de direito privado que realizam serviço público, na forma do § 6º, do art. 37, posto que a serventia extrajudicial não carrega a condição de ‘pessoa jurídica’.”


“Assim o delegado não se submete aos termos da cláusula constitucional geral, o que justifica ainda mais a previsão do § 1º, do art. 236, para patentear a plena aplicação da regra prevista no art. 22 da Lei 8.935/94.”


“A primeira conclusão que se pode afirmar, é que o art. 28 da Lei de Registros Públicos foi integralmente revogado pelo art. 22, na medida em que regulou integralmente a matéria.


A segunda conclusão necessária em face da redação do art. 22, é que o delegado responde ‘diretamente’ pelos danos provocados pelo serviço e poderá utilizar da via regressiva para responsabilizar o preposto que, por culpa ou dolo, tenha provocado a lesão.”


“Sua responsabilidade poderá ser direta e objetiva, bastando a comprovação do desfalque patrimonial ou moral e a comprovação de seu nexo com a atividade registral. O Estado somente deverá ser chamado na ausência do delegado ou quando seu patrimônio se mostrar insuficiente para atender às pretensões do autor da demanda.”


“A responsabilidade objetiva, no presente caso, tem um sentido ligado ao próprio ato da delegação, de forma que o notário e registrador respondem apenas em face da falha, insuficiência ou falta do serviço. Não poderão responder pela dita ‘falha do sistema’.”


“Em primeiro lugar, porque a falha do sistema, em regra, não é passível de indenização, compondo o que foi designado de risco social, que penaliza o particular na ausência de antijudicidade. Ademais o registrador responde no limite de sua delegação, e não além desse limite. Assim, se recebe a incumbência de realizar serviço público, responde apenas pela falha do serviço e não por vícios ou desvios estruturais do sistema.”


“Relembre-se que a responsabilidade civil como destacado tem amparo no ideal de justiça social, e a responsabilidade objetiva teve como propósito desonerar a vítima do dano do serviço, facilitando o aforamento e o processamento das ações. Esse propósito exige que todos os envolvidos – Estado, delegado e preposto – respondam diretamente pelos danos, pouco importando se a responsabilidade tenha sentido de solidariedade ou subsidiariamente. A prova deverá ser compatível com a modalidade de responsabilidade do envolvido, pois o Estado responde objetiva e integralmente pelo dano, ao passo que o delegado apenas pela falha do serviço e o preposto na modalidade de culpa ou dolo.”


“Observe-se, finalmente, que o notário e registrador respondem OBJETIVAMENTE, mas exclusivamente, pelas ‘falhas do serviço’. Os ‘atos’ que realizam possuem natureza de ‘atos administrativos’, que podem ser considerados atos em formação e atos concluídos, pois no ambiente do direito administrativo os atos definitivos, que não comportem ordinária revisão, conquistam a condição de ‘atos imutáveis administrativamente’ ou ‘coisa julgada administrativa’.”


“Essa noção se revela importante para a melhor determinação do foco da responsabilidade, pois um ‘ato’ notarial pode apoiar outro ato notarial e um subsequente registro. O vício do primeiro ‘ato’ contamina a validade dos demais, mas a responsabilidade afeta apenas o agente do ato viciado.”


“Por exemplo, procuração falsa ou viciada lavrada em uma serventia é levada para outra, para efeitos da confecção da escritura que é registrada no serviço imobiliário. O vício jurídico pode macular a validade das três operações gerando danos a diversas pessoas, no entanto a responsabilidade civil amarra apenas o agente que falhou no serviço.”


“A questão da prova também parece ser relevante, pois se esta se apoiar nos documentos e informações constantes da própria serventia, por óbvio que o ônus da confecção dessa prova será do notário ou registrador. Trata-se de um imperativo prático, que respeita o ideal de justiça social.”


 


Fonte: IRegistradores