Ricos já procuram ‘contratos de namoro’. Saiba por quê

O Dia dos Namorados é amanhã, mas nem tudo são flores. Preocupados com a possibilidade de terem de dividir bens, casais estão procurando grandes escritórios de advocacia para firmar “contratos de namoro”.

Parece “Black Mirror”, a série distópica da Netflix sobre o futuro das relações sociais, mas é a vida real em 2019.

Advogados de grandes bancas relatam dezenas de consultas por acordos afins.

Os pombinhos, eles dizem, têm perfil de alta renda – faz sentido, a considerar a natureza patrimonial da preocupação e o custo da consultoria – e um objetivo em comum: formalizar que não há intenção de constituir família e afastar o risco de implicações patrimoniais.

No horizonte deles está uma preocupação com que, uma vez terminados, os relacionamentos sejam enquadrados como uniões estáveis, algo cada vez mais frequente, segundo a advogada Fernanda Haddad, associada de contencioso cível e wealth management do Trench Rossi Watanabe.

“O contrato de namoro serve para preservar as partes de impactos patrimoniais. Morando juntos ou não”, diz a advogada, “se houve uma relação de que familiares e amigos tinham conhecimento, uma das partes poderá alegar que viveu em união estável e, com base nisso, exigir parte dos bens”.
Como o regime-padrão de partilhas na união estável é o da comunhão parcial, e como grande parte das uniões não são assim reconhecidas durante a relação, quando se poderia debater o regime, mas só ao fim dela, cônjuges que adquiram bens durante namoros correm risco de terem de dividi-los.

Alessandro Amadeu da Fonseca, sócio da área de gestão patrimonial, famílias e sucessões do Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados, também relata um aumento.

A demanda por instrumentos afins foi tanta, ele diz, que motivou a criação de um departamento específico com quase 20 advogados para cuidar de pessoas físicas e empresas de controle familiar.

“Cada vez mais as pessoas se organizam para segregar relações familiares, sentimentais, patrimoniais e societárias. E essa demanda faz com que acordos como esse se popularizem”, explica.

Segundo ele, esse tipo de contrato já integra um “kit” para membros de famílias-clientes. “É uma atenção que sempre temos de identificar as relações afetivas e o reflexo delas no patrimônio”, explica.

O advogado cita um “causo” para ilustrar os riscos; “coisa de novela”, ele mesmo antecipa.

“Uma vez, um pai solicitou um contrato de namoro, e, no momento da assinatura, a contraparte desistiu de assinar, pois percebeu que não ia poder exigir nada. Claramente havia um interesse patrimonial, já havíamos até identificado um histórico de iniciar relações para depois pleitear bens.”

Conversa difícil, assinatura simples

Para Fernanda, do Trench Rossi Watanabe, a preocupação ganha corpo graças a uma falta de hábito. “O brasileiro não tem o costume de falar sobre patrimônio nas relações amorosas”, ela reflete.

É verdade. Não é incomum que o debate gere dúvidas sobre o sentimento dos namorados. Como no caso de um médico amigo meu que foi cobrado a assinar um acordo desse tipo durante uma viagem com os pais da namorada, sem muito aviso, na linha “assina ou sai fora” – ele saiu.

A despeito dessa dificuldade – ou justamente por causa dela? –, advogados relatam uma procura cada vez maior por meios de organização patrimonial.

No caso do “contrato de namoro”, a formalização é simples: um instrumento particular com provas de ciência das cláusulas, “como numa prestação de serviço qualquer”, explica a advogada.

O custo se resume aos honorários, que nenhum dos advogados ouvidos pela reportagem quis quantificar.

Mas uma comparação dá ideia do custo: em sua tabela de honorários mínimos para 2019, a OAB-SP estima o preço de um reconhecimento de união estável entre R$ 5.358,83 e R$ 8.335,95, ou entre 6% e 10% do valor da causa, a depender de o acerto ser consensual ou litigioso.

Já o reconhecimento em cartório das firmas dos contratantes e das testemunhas, recomendado, mas não obrigatório, sai entre R$ 3,70 e R$ 16 por assinatura, segundo o Colégio Notarial do Brasil (CNB).

Fonseca, do Mattos Filho, ressalta a necessidade de que as disposições reflitam a realidade: “O papel aceita qualquer coisa, mas não adianta fazer ‘contrato de namoro’ se o que você vive já é união estável”.

E como se identifica uma união estável? A Justiça, diz Fonseca, dá atenção ao conceito de família. Daí que seja muito relevante o reconhecimento público; “o olhar do terceiro sobre um casal, afinal, não distingue o que é união e o que é casamento”, diz o advogado.

Outros elementos, como conta corrente conjunta, presentes de alto valor, pessoas assumindo despesas das outras, residência em comum e filhos, também acabam “puxando” para a união estável.

Os advogados relatam ainda um aumento da procura por testamentos, no que veem fenômenos relacionados: as pessoas estariam preocupadas em botar pingos nos is nas intersecções entre patrimônios e relações afetivas.

Falando em morte, Fonseca salienta que a proteção de um “contrato de namoro” só vale para os casos de separação; ao contrário do regime de partilha de bens, a sucessão “não é disponível”. Ou seja, o reconhecimento de um namoro não implica em deixar bens.

“Metade da herança é disponível, metade é legítima. Nesta, vale a lei: descendentes, ascendentes, cônjuges, colaterais. Naquela, vale a vontade. Para contemplar a namorada, é preciso testamento.”

Menos casamentos

Os contratos de namoro são tendência que cresce ao encontro de outra, já amplamente documentada, que é a diminuição dos casamentos e aumento das uniões estáveis.

Em outras palavras, já faz quase uma década que os casais no Brasil estão preferindo se juntar a se casar.

Segundo levantamento do CNB com base em dados do IBGE, as uniões estáveis saltaram 57% em todo o país entre 2011, quando foram 87.085, e 2015, quando foram 136.941.

Embora ainda sejam majoritários, os casamentos caíram 10% no período, de 1.131.734 para 1.026.736.

Os números são turbinados por reconhecimentos de relações homoafetivas, ao encontro da equiparação à união estável heteroafetiva determinada pelo Supremo Tribunal Federal em 2011.

Para os advogados, a busca por "contratos de namoro" não reflete um excesso, mas “uma evolução das demandas sociais”, como a chama Fernanda, do Trech Rossi Watanabe.

Fonseca concorda: “O direito sempre vai estar atrás dos fatos, daí regular as relações humanas a partir das próprias relações humanas. Costumamos misturar elementos emocionais com patrimoniais; vejo uma preocupação legítima”.

Segundo ele, a verdadeira judicialização seria “a que vem depois, ou seja, o processo pela ausência de um documento prévio dispondo condições”.

 

Fonte: Valor Investe