A aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados na prática nos cartórios: o que muda na prática para tabeliães e usuários
Dados e mais dados. O mundo tem sido movido a dados. O que pouco se sabe e está no holofote neste momento é como se dará o tratamento de dados pessoais no ambiente digital. O objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade, e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural também chegou à esfera extrajudicial impactando o cotidiano das serventias de Notas e de Registro Civil.
Como se dará esse processo? Com segurança jurídica e com padronização de normas e práticas. Em vigor desde agosto de 2020, dois anos após sua promulgação, a Lei Geral da Proteção de Dados – Lei 13.709/2018, altera os artigos 7º e 16º do Marco Civil da Internet, estabelecendo que, no que tange o processamento de conteúdo de pessoas, sejam brasileiras ou não, que estão no território nacional, a LGPD deve ser cumprida. É permitido compartilhar dados com órgãos internacionais e com outros países, mas isso deve ocorrer seguindo o cumprimento de protocolos seguros e/ou para seguir exigências legais.
O presidente da Associação Nacional de Profissionais de Privacidade de Dados, a ANPPD, João Rodrigo Stinghen, conversou com o Colégio Notarial do Brasil – Seção Rio de Janeiro sobre as consequências da aplicação da Lei Geral da proteção de dados no cotidiano dos principais atores envolvidos: tabeliães e usuários.
João possui extensa experiência na área do direito digital, notarial e registral, além de autor de diversos artigos científicos nas áreas. Atua como consultor jurídico em privacidade e proteção de dados, certificado pela EXIN (PDPF), possui especialização em direito digital e proteção de dados pela EBRADI (em andamento), é membro e coordenador do comitê de conteúdo da Associação Nacional de Profissionais de Privacidade de Dados Pessoais (ANPPD). Ele também é fundador do Instituto de Compliance Notarial e Registral (ICNR), onde desenvolve eventos, treinamentos e programas de compliance para cartórios.
CNB/RJ – Na sua visão, o que representa a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados para os usuário dos cartórios?
João Rodrigo Stinghen – Com o passar dos anos, a importância da privacidade cresceu exponencialmente, sobretudo depois que a humanidade percebeu o que pode acontecer com o uso abusivo de dados. Da privacidade, evoluímos para a proteção de dados pessoais: não se trata apenas de limitar acesso aos dados, mas ter controle sobre eles.
Na sociedade da informação em que vivemos, esse direito se tornou imprescindível. No Brasil, o ordenamento jurídico tem cada vez mais reconhecido essa realidade, inclusive prevendo, agora, a proteção de dados como direito fundamental.
E isso, somado ao trabalho de divulgação feito pela imprensa, faz com que as pessoas deem cada vez mais importância aos seus direitos como titulares de dados. Elas esperam hoje em dia que sua personalidade, expressa por meio de seus dados, seja preservada por todos os agentes de tratamento, dentre os quais se incluem os cartórios.
Há ainda um reforço dessa expectativa no caso dos cartórios, pois eles são reconhecidos pela confiabilidade das informações. A expressão “culpa no cartório” significa uma culpa demonstrada e inegável, simbolizando o papel de registradores e tabeliães como guardiães das informações relevantes socialmente. Ora, se já é esperado um grau maior de preservação de dados nos cartórios, com a LGPD essa expectativa fica aumentada.
Mas isso não deve preocupar a quem tem disposição para se adequar, sendo inclusive um incentivo, pois essa conformidade eleva a credibilidade social da categoria. Se os cartórios fossem empresas, poderiam até fazer um slogan: “o que já era bom, ficou ainda melhor”.
CNB/RJ – Quais são os benefícios e as implicações que poderia destacar, levando em consideração as mudanças que a lei traz para o cotidiano de ambos, usuário e tabeliães?
João Rodrigo Stinghen – Para os usuários dos serviços, a adequação da LGPD significa que ele pode encontrar no cartório: informações acessíveis, através de políticas de privacidade claras e transparentes; um canal de atendimento para fazer suas solicitações, que devem ser solucionadas com brevidade e assertividade; a segurança de que seus dados estão protegidos por medidas técnicas e organizacionais; a confiança de que não serão utilizadas para finalidades distintas das informadas, muito menos por empresas de telemarketing que incomodam demais.
Para tabeliães (e demais delegatários) pode haver mudanças maiores ou menores, conforme o nível de aderência atual da serventia às normas de proteção de dados. Isso pode soar estranho para alguns, mas acreditem: há cartórios que estão com muita coisa adiantada, desde muito antes da LGPD, e outros que precisam iniciar a adequação do zero.
Ao implementar a LGPD, assim como qualquer programa de compliance, a ideia não é alterar de maneira profunda o cotidiano das pessoas, mas apenas alguns detalhes. Só que a soma de muitos detalhes cria uma modificação profunda.
Vamos dar alguns exemplos. Se tenho como costume fazer anotações à mão, vou guardar essas anotações com dados pessoais num lugar seguro (ex: gaveta com chave), vou descartá-las de maneira correta (picotando) e não usarei documentos contendo dados pessoais como papel de rascunho; se eu compartilhava minha senha do sistema com meu colega, não farei mais isso; se eu passava um monte de informações por telefone, agora passarei a solicitar confirmação de identidade de quem está falando, passando menos dados. E assim por diante.
Para o tabelião (ou qualquer delegatário), ter a LGPD implementada é dormir em paz, sabendo que a legalidade está sendo cumprida, que os direitos dos usuários e colaboradores estão sendo respeitados, que não há risco de sanções/indenizações; e que os corregedores estão contentes com você.
CNB/RJ – Se tratando de tratamento de dados dentro do ambiente cartorário, como acredita que ele deverá feito na prática? Quais adequações serão necessárias para o pleno funcionamento das serventias cumprindo os direcionamentos da lei?
João Rodrigo Stinghen – Na prática, ter um cartório adequado significa, dentre outras medidas: ter processos definidos e documentados para coletar os dados, em políticas e procedimentos; ter atualizado contratos para exigir conformidade da equipe e de fornecedores; ter um inventário de dados descrevendo todos os dados tratados, sua finalidade, a base legal aplicável e seu ciclo de vida; ter um encarregado nomeado que tenha consciência de sua função e possa orientar a equipe de maneira constante; ter uma infraestrutura robusta de segurança da informação.
E, principalmente, significa ter uma equipe muito treinada e conscientizada para conseguir “tirar do papel” a proteção de dados, inserindo-a no seu cotidiano, interpretando os fatos do dia a dia segundo as normas, para saber o que fazer em cada situação e detectar o que pode ser aprimorado. Percebemos em nossas implementações que esse engajamento da equipe faz TOTAL diferença para o nível de proteção de dados!
Uma equipe engajada e bem treinada é mais relevante para a adequação que qualquer tecnologia ou procedimento (e o contrário também é verdadeiro).
CNB/RJ – Os serviços on-line estão cada vez mais presentes na vida dos cidadãos e sendo aplicados também no meio extrajudicial. Como avalia esse cenário mediante a obrigatoriedade da aplicação da proteção de dados?
João Rodrigo Stinghen – O “pulo do gato” é entender que, hoje, estamos inseridos cada vez mais no mundo digital e que esse processo é irreversível. Mas que isso é bom, não ruim, pois insere os cartórios como fornecedores de serviços atuais, relevantes e úteis, reforçando ainda mais o erro dos que dizem que cartórios são ultrapassados e desnecessários.
Quanto à proteção de dados, a LGPD não a distingue para meios físicos e digitais. Mas é evidente que as medidas práticas de adequação se alteram. Se tenho documentos impressos, eu guardo num armário com chave, numa sala restrita, com dispositivo anti-incêndio; se tenho arquivos digitais, armazeno-os em pastas com acesso restrito, com backup, numa máquina com antivírus, numa rede com firewall.
CNB/RJ – Como avalia os serviços extrajudiciais no Brasil e as possibilidades do e-Notariado, que possibilitam a realização de atos imprescindíveis da vida civil, disponível digitalmente, às mãos do cidadão?
João Rodrigo Stinghen – A transformação digital é algo que já vinha se acentuando nos últimos anos, mas teve um incentivo muito maior ainda com a pandemia de Covid. Todo um novo setor da economia se aqueceu, que são das startups “natodigitais”. E o setor público não tem ficado para trás, pois a Estratégia de Governo Digital 2020-2022 tem sido bastante profícua.
Neste contexto, o Provimento nº 100 do CNJ e o e-Notariado criaram uma oportunidade ímpar de os tabelionatos ingressarem no mundo digital. Minha recomendação, como consultor (e amigo) dos cartórios é uma só: atualizem-se ao máximo, ofereçam todos os serviços por meio digital, treinem bem a equipe.
Isso aumentará seu lucro – principalmente considerando a concorrência peculiar aos notários – e contribuirá para a credibilidade social de todos os cartórios, possibilitando mais concursos públicos e esvaziando o discurso de detratores invejosos.
Quanto a nós, advogados, não tem o que reclamar! É uma alegria enorme fazer atos digitais e os clientes ficam deslumbrados, assim como todos os demais cidadãos.
Fonte: Assessoria de Comunicação – CNB/RJ