STJ admite possibilidade de adoção póstuma

Se comprovado o propósito de adotar e a preexistência de laço de afeto entre a adotada e o adotante, não há impedimento para que o procedimento seja concluído mesmo que o interessado na adoção já tenha morrido. Com este entendimento a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça permitiu que fosse concluído o processo de adoção de uma criança de sete anos por um senhor de 71 anos, que morreu antes do procedimento chegar ao fim.

 

Os ministros julgavam recurso proposto pelos irmãos do adotante contra decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que concedia a adoção mesmo depois da morte do interessado. A votação foi unânime pela manutenção da adoção.

 

Os familiares alegavam que o adotante não era pessoa indicada para adotar uma criança de sete anos. Argumentavam que o único benefício a ser alcançado pela menor é o financeiro, porque ela seria a única herdeira do falecido.

 

De acordo com a ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso especial, se encontra presente no caso a necessária manifestação inequívoca do propósito de adotar. A ministra também observou a existência de relação de afetividade entre a criança e o adotante.

 

“A adoção póstuma pode ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, venha a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença”, anotou a ministra em seu voto.

 

Segundo o processo, o adotante declarou a criança como sua beneficiária de pensão militar em documento registrado três anos antes de sua morte. Também ficou demonstrado que a criança já vivia com o adotante há mais de cinco anos. Ele custeava a escola da menina, bem como plano de saúde em nome da menor.

 

Não é a primeira vez que o Tribunal reconhece a legitimidade de uma adoção nestas circunstâncias. Há precedentes como do ministro aposentado Ruy Rosado em caso similar. “O reconhecimento da filiação na certidão de batismo, a que se conjugam outros elementos de prova, demonstra a inequívoca intenção de adotar, o que pode ser declarado ainda que ao tempo da morte não tenha tido início o procedimento para a formalização da adoção”, anota o precedente.

 

a o voto da ministra Nancy Andrighi

 

URSO ESPECIAL Nº 823.384 – RJ (2006/0038152-8)

 

RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

 

RECORRENTE: C F DE C E OUTRO

 

ADVOGADO: MARCO AURÉLIO PACHA E OUTROS

 

REPR.POR: A F DE C – INVENTARIANTE

 

ADVOGADO: ELAINE LOPES CABRAL VIANA

 

RECORRIDO: R D DA C

 

REPR.POR: T DAS G D

 

ADVOGADO : ANTÔNIO CARLOS R SERRA DE CASTRO E OUTROS

 

INTERES.: D F DE C – ESPÓLIO

 

EMENTA

 

Direito civil e processual civil. Adoção póstuma. Manifestação inequívoca da vontade do adotante. Laço de afetividade. Demonstração. Vedado revolvimento de fatos e provas. Embargos de declaração. Ausência de omissão, contradição ou obscuridade. Decisão fundamentada. Prequestionamento. Ausência.

 

– Não padece o acórdão recorrido de omissão, contradição ou obscuridade, quando o Tribunal de origem pronuncia-se fundamentadamente quanto às questões relevantes ao deslinde da controvérsia.

 

– Não se conhece do recurso especial se a matéria jurídica versada nos dispositivos tidos como violados não foi debatida pelo Tribunal no acórdão recorrido.

 

– O julgador não está adstrito às teses jurídicas manifestadas pelas partes, bastando-lhe analisar fundamentadamente as questões necessárias à resolução do embate jurídico.

 

– Impõe-se especial atenção à condição peculiar da criança como pessoa em desenvolvimento, devendo o julgador nortear-se pela prevalência dos interesses do menor sobre qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado.

 

– A adoção póstuma pode ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, venha a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença (art. 42, § 5º, do ECA).

 

– Na apreciação do pedido de adoção levar-se-á em consideração a relação de afetividade entre o adotante e o adotado (art. 28, § 2º, do ECA).

 

– Se o Tribunal de origem, ao analisar o acervo de fatos e provas existente no processo, concluiu pela inequívoca ocorrência da manifestação de propósito de adotar, bem como pela preexistência de laço de afeto a envolver a adotada e o adotante, repousa sobre a questão o óbice do vedado revolvimento fático e probatório do processo em sede de recurso especial.

 

Recurso especial não conhecido.

 

ACÓRDÃO

 

Brasília (DF), 22 de março de 2007(Data do Julgamento).

 

MINISTRO CASTRO FILHO

 

Presidente

 

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

 

Relatora

 

RELATÓRIO

 

Recurso especial interposto por C. F. de C. e outro, com fundamento na alínea “a” do permissivo constitucional.

 

Procedimento: pedido de adoção, formulado em 7/3/2002, por D. F. de C., em relação à menor R. D. da C., ao argumento de que convivia com a menina, sua afilhada, desde o nascimento desta, ocorrido em 7/7/1994, havendo entre ambos relação semelhante à de pai e filha.

 

Por meio de documentos, demonstrou que os pais biológicos concordam com a adoção, e que possui condições físicas, materiais, psicológicas e morais para adotar.

 

Petição (fls. 34/35): noticiado por seu irmão o óbito do adotante, ocorrido no dia 5/4/2002.

 

Petição (fls. 39/42): formulada pela adotanda, representada por sua genitora, pleiteando fosse deferida sua adoção póstuma.

 

Petição (fls. 47/50): formulada pela adotanda, em que informa ter o falecido declarado a menor como sua beneficiária para fins de habilitação à pensão militar, em documento datado de 9/3/1999, no qual consta que a menina vivia às suas expensas, residindo sob o mesmo teto há mais de cinco anos. Informa ainda ter o adotante celebrado contrato de prestação de serviços educacionais com o Colégio Sagrado Coração de Maria, mantendo, assim, os estudos da adotanda em escola particular e tradicional do Rio de Janeiro, bem assim, plano de saúde em nome da menor, com a Amil Assistência Médica Internacional Ltda.

 

Diversas petições foram lançadas aos autos, por meio das quais contendem os irmãos do falecido e a mãe da adotanda, aqueles procurando demonstrar a incapacidade física, emocional, psíquica e moral do falecido para adotar, enquanto esta pugna pelo acolhimento do pedido de adoção.

 

Sentença: julgou improcedente o pedido.

 

Houve interposição de apelações pela adotanda e pelo Espólio do adotante, com as respectivas contra-razões, sendo ofertadas ainda contra-razões pelas irmãs do falecido, ora recorrentes.

 

Decisão: não recebeu o recurso de apelação interposto pelo Espólio.

 

Acórdão: conferiu provimento ao recurso de apelação interposto pela adotanda recorrida, com a seguinte ementa:

 

(fl. 299) – “ADOÇÃO PÓSTUMA. VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. INEQUÍVOCA VONTADE DO ADOTANTE. PROCEDIMENTO EM CURSO. APLICAÇÃO DO ART. 42, § 5º DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL DO ADOTANTE PELO ESPÓLIO. IMPOSSIBILIDADE. DIREITO DE SUJEIÇÃO PERSONALÍSSIMO, INSUSCETÍVEL DE TRANSFERÊNCIA. PROVIMENTO DA APELAÇÃO DA ADOTADA.”

 

Embargos de declaração: interpostos pelas recorrentes, foram rejeitados em decisão unipessoal do Relator (fl. 324).

 

Acórdão: negou provimento ao recurso de agravo interposto pelas recorrentes (fl. 334).

 

Recurso especial: interposto sob alegação de ofensa aos arts. 165, 458, inc. II, 535, inc. II, do CPC; 6º, 19, 23, 28, §§ 1º e 2º, 29, 42, § 5º, 43, 165, do ECA, aos seguintes argumentos:

 

i) houve negativa de prestação jurisdicional;

 

ii) “a melhor condição sócio-econômica de D., comparativamente com os pais da menor R., e o fato de provê-la materialmente, custeando mensalidades escolares e de plano de saúde, não autorizariam, por si só, a adoção da mesma, porquanto a regra é a criança ser criada e educada no seio da família biológica, só podendo se dar a sua colocação em família substituta em caráter excepcional, isto é, quando os pais forem moralmente inidôneos ou incapazes de criá-la, porque levam vida desregrada ou enveredam pelo caminho da criminalidade, ou, ainda, são omissos e irresponsáveis, no que não se enquadram os pais dela” (fl. 362);

 

iii) o falecido não era pessoa indicada para adotar uma criança de sete anos, pois não poderia oferecer ambiente familiar adequado à menor, porquanto se tratava, nas palavras das recorrentes, irmãos do adotante, de “homem solteiro, sistemático e agressivo, que contava com 71 (setenta e um) anos de idade e residia sozinho, apresentava dificuldade para deambular e estava seriamente doente” (fl. 362);

 

iv) o único benefício auferido pela menor com a adoção é o financeiro, porque tornada a única herdeira do falecido.

 

Aduzem ainda, as recorrentes, que o acórdão impugnado “postergou princípios básicos e da maior relevância como o da prevalência do interesse do menor e o da prioridade da família natural, que assegura o direito de a criança ou adolescente ser criado e educado no seio da mesma” (fl. 366).

 

Sustentam, por fim, que não houve manifestação inequívoca pelo falecido da vontade de adotar, sugerindo que o adotante agia por “influência de terceiros” (fl. 367), com claro intuito de “punir, de alguma forma, os irmãos, talvez devido a algum ressentimento, não se podendo, destarte, falar em motivo legítimo, se, na verdade, a adoção seria o instrumento de que o adotante estaria a se valer para se vingar deles” (fls. 363/364).

 

Contra-razões: às fls. 378/383.

 

Por meio de provimento a agravo de instrumento subiram os autos do recurso especial (fl. 405).

 

Parecer do MPF: o i. Subprocurador-Geral de República, Henrique Fagundes, opinou pelo não conhecimento do recurso especial.

 

É o relatório.

 

VOTO

 

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

 

Cinge-se a controvérsia a saber da possibilidade de adoção póstuma, na hipótese em que o adotante falecido externou de forma inequívoca sua intenção de adotar, além de ter sido demonstrado o laço de afetividade existente entre ele e a adotada.

 

– Da violação aos arts. 165, 458, inc. II, 535, inc. II, do CPC

 

Aduzem as recorrentes que o acórdão impugnado foi omisso, ao deixar de analisar teses jurídicas, tais como as referentes à prevalência maior do interesse da criança e a da prioridade da família natural, por elas manifestadas em sede de contra-razões à apelação e repetidas em embargos de declaração.

 

O Tribunal de origem, porém, concluiu, com base nas provas e fatos apresentados no processo, que presente o requisito para a adoção póstuma, qual seja, a manifestação inequívoca do propósito do adotante de adotar, nos termos seguintes:

 

(fls. 301/302) – “A sentença apelada deve ser reformada, porque em desacordo com as alegações e provas dos autos. Conforme se depreende da leitura do art. 42, § 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente, ‘a adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença’. É o caso dos autos.

 

Da mesma forma, como se depreende das provas dos autos, no curso do procedimento quando o adotante D. F. de C. já externara inequívoca vontade de adotar a menor R. D. da C. como sua filha, o mesmo veio a falecer, quando, então, pretenderam os herdeiros a substituição processual pelo Espólio.

 

A circunstância descrita na lei já referida, está demonstrada na petição inicial firmada pelo procurador, na assinatura do adotante com firma reconhecida, com poderes especiais para representá-lo no presente procedimento de adoção, nos documentos de fls. 98/100 (laudo firmado pelo psicólogo Pedro Sérgio de Carvalho Silva), constando, entre outros detalhes, a vontade inequívoca do autor de adotar a menor referida.

 

A sentença apelada desconsiderou as circunstâncias acima, opondo, ainda, o argumento da ausência de sentimento filial entre o adotante e a adotada, sentimento expressamente admitido pelo laudo de fls. 98/100.

 

O laudo referido, nas considerações finais, expressamente admite que a menor R. D. da C. demonstrou laço afetivo com o adotante, sendo irrelevante que a menor não reconheça o adotante como figura paterna, como se pai não fosse padrinho.”

 

Não padece, portanto, o acórdão recorrido de omissão, contradição ou obscuridade, tendo o Tribunal de origem se pronunciado fundamentadamente quanto às questões relevantes ao deslinde da controvérsia. Não há pois, a alegada violação aos arts. 165, 458, inc. II, 535, inc. II, do CPC.

 

– Da violação aos arts. 6º, 19, 23, 28, § 1º, 29, 43, 165, do ECA.

 

As matérias jurídicas versadas nos arts. 6º, 19, 23, 28, § 1º, 29, 43, 165, do ECA, não foram apreciadas pelo Tribunal de origem, no acórdão impugnado, o que impede a abertura do debate no particular, ante o óbice da Súmula 211/STJ.

 

Ressalte-se que o julgador não está adstrito às teses jurídicas manifestadas pelas partes. Basta-lhe analisar fundamentadamente as questões necessárias à resolução do embate jurídico.

 

– Da violação aos arts. 28, § 2º, 42, § 5º, do ECA

 

A matéria tratada neste processo envolve interesse de menor, o que impõem especial atenção à condição peculiar da criança como pessoa em desenvolvimento, norteando-se o julgamento na prevalência dos interesses da menina, sobre qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado.

 

Alegam as recorrentes, irmãs do falecido, que a decisão recorrida não sopesou de forma correta a existência de inequívoca manifestação de vontade do adotante, bem como não restou demonstrada a relação de afinidade ou de afetividade entre a menor e o adotante.

 

Ambas as questões acima declinadas, contudo, foram devidamente analisadas pelo Tribunal de origem, conforme trecho do acórdão recorrido copiado no tópico anterior deste voto. E para concluir pela inequívoca ocorrência de manifestação de vontade do adotante (art. 42, § 5º, do ECA) além da existência de relação de afetividade entre ele e a menor (art. 28, § 2º, do ECA), o acórdão impugnado valeu-se do acervo de fatos e provas existentes no processo.

 

A modificação do julgado, nos termos em que pretendida pelas recorrentes, por certo, esbarraria no revolvimento do substrato fático e probatório do processo, expediente vedado em sede de recurso especial pelo óbice da Súmula 7/STJ, porquanto este Tribunal toma em consideração aos fatos assim como descritos no acórdão impugnado.

 

Ademais, em hipótese semelhante a do processo em julgamento, porém consideravelmente mais tênue em termos probatórios, este Tribunal já decidiu que “o reconhecimento da filiação na certidão de batismo, a que se conjugam outros elementos de prova, demonstra a inequívoca intenção de adotar, o que pode ser declarado ainda que ao tempo da morte não tenha tido início o procedimento para a formalização da adoção” (REsp 457.635/PB, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 17/3/2003).

 

A necessária manifestação inequívoca do propósito de adotar, encontra-se demonstrada de forma robusta neste processo, conforme posto no acórdão impugnado, notadamente pela documentação acostada aos autos, bem como pela petição inicial firmada pelo advogado e pela respectiva assinatura do adotante aposta na procuração, conferindo poderes especiais para ser representado no procedimento de adoção.

 

No que comporta à existência de relação de afetividade entre a adotada e o adotante, houve expressa menção no acórdão no sentido de que ficou demonstrado o laço afetivo entre ambos, com base igualmente na prova apresentada nos autos.

 

Não vigora, pois, a violação deduzida aos arts. 28, § 2º, 42, § 5º, do ECA, reconhecendo-se, por fim, que o Tribunal de origem operou seguramente nos termos da primazia dos interesses da criança, ao salvaguardar sobretudo os direitos de pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, bem como ao fazer valer a vontade inequivocamente manifestada pelo adotante no sentido de consolidar laço afetivo preexistente.

 

Forte em tais razões, NÃO CONHEÇO do recurso especial.

 

 

Fonte: Conjur