COMARCA DE PORTO ALEGRE
2ª VARA DAS FAMÍLIAS E SUCESSÕES
AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL
JUIZ DE DIREITO: ROBERTO ARRIADA LOREA
Vistos etc.
A parte autora, ambos já identificados, ajuizou ação de dissolução de união estável, alegando, em suma, que mantiveram durante cinco anos uma convivência com força de união estável. Informaram os requerentes que este relacionamento homoafetivo se viu objeto de escritura pública. Buscam, por mútuo consentimento, desobrigarem-se do pacto firmado.
O representante do Ministério Público apresentou parecer alegando, preliminarmente, a impossibilidade jurídica do pedido e opinando pela extinção do feito sem apreciação do mérito da causa. No mérito, sustentou não existirem nos autos provas suficientes para demonstrar a existência do relacionamento havido entre as partes, manifestando-se pelo indeferimento da pretensão (fls. 10/14).
Em audiência, os autores ratificaram as alegações apresentadas na peça inicial e postularam a juntada de declarações de testemunhas no sentido de confirmar os termos da peça vestibular (fls. 16 e 17/18).
É, sucintamente, o relatório.
Passo a decidir.
Em relação à impossibilidade jurídica do pedido, ponderou o representante do Parquet, em suas manifestações, que o artigo 226, parágrafo terceiro da CF, vedaria a possibilidade de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo. Salientou, também, a falta de embasamento legal para fundamentar entendimento diverso, explicitando em seu parecer a necessidade de cautela por parte do julgador, porquanto o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo poderia se traduzir no reconhecimento do direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que implicaria em reflexos “preocupantes” no mundo dos fatos.
Cabe referir, quanto a essa preocupação manifestada pelo Ministério Público, a necessidade de que fossem explicitadas as preocupações mencionadas, para o fim de que pudessem ser adequadamente enfrentadas todas as questões afetas ao pedido posto em lide.
Nesse sentido, buscando contemplar ditas preocupações, trago à colação a importante manifestação da Associação Americana de Antropologia(1), objetivando esclarecer uma série de equívocos consagrados pelo senso comum acerca dos reflexos sociais decorrentes do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Declaração sobre o Casamento e a Família feita pela Associação Americana de Antropologia (AAA)
Arlington, Virginia; o Comitê Executivo da Associação Americana de Antropologia, a maior organização do mundo de antropólogos, que são as pessoas que estudam a cultura, vem a público fazer a seguinte declaração em resposta à chamada feita pelo Presidente Bush para uma emenda constitucional proibindo o casamento gay por entender que este seja uma ameaça à civilização.
“Os resultados de mais de um século de pesquisas antropológicas sobre unidades domésticas, relações de parentesco e famílias, em diferentes culturas e ao longo do tempo, não fornecem qualquer tipo de evidência científica que possa embasar a idéia de que a civilização ou qualquer ordem social viável dependa do casamento ser uma instituição exclusivamente heterossexual. Ao contrário, as pesquisas antropológicas fundamentam a conclusão de que um imenso leque de tipos de famílias, incluindo famílias baseadas em parcerias entre pessoas do mesmo sexo, podem contribuir na promoção de sociedades estáveis e humanitárias.”
De resto, para além dessa contundente nota, é importante salientar que a demanda deverá ser enfrentada à luz do ordenamento jurídico pátrio, postas de lado convicções pessoais, moral religiosa, ou qualquer outra instância argumentativa que se afaste do direito vigente entre nós, sem que com isso se despreze uma interpretação criativa do arsenal jurídico posto à disposição da sociedade brasileira, sem perder de vista que ao direito convém agregar outros saberes, como já ensinava Caio Mário(2):
“A todos vós posso afirmar com irrefutável segurança que o Direito deve buscar, também em outras ciências, sobretudo sociais e humanas, apoio e parceria para afirmar seus princípios, reorganizando, metodologicamente, estudos e pesquisas. (…) Outras ciências indicam novos rumos ao Direito”.
De fato, outras fontes de saber oportunizam que se reflita sobre a resistência dos operadores jurídicos em garantir o direito constitucionalmente assegurado àquelas pessoas cuja orientação sexual se dirige a indivíduos do mesmo sexo.
Dados esses pressupostos, adentro à análise da preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, a qual, em consonância com os ensinamentos de Nelson Nery Junior(3), apenas poderia ocorrer nos casos em que o nosso ordenamento jurídico proíbe, expressamente, o objeto da pretensão.
Da leitura do artigo 226, parágrafo terceiro da CF, não decorre a conclusão “somente entre homens e mulheres” adotada no parecer do fiscal da lei (fl. 11). Ao contrário, conclui-se que este dispositivo não veda a possibilidade da proteção jurídica das relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo.
Vislumbra-se neste dispositivo uma lacuna, eis que não há norma expressa sobre este ponto específico, não existindo, portanto, a impossibilidade de ocorrência das referidas uniões estáveis entre homossexuais. Nos casos de vazio normativo deve o juiz decidir de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito (artigo 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil).
Assim, consoante o artigo 3º, inciso IV, da Carta Magna, que preconiza o princípio da igualdade, não há óbice para que esta regra constitucional, hierarquicamente superior, possa suprir a lacuna acima referida.
O princípio da igualdade, estampado no artigo supramencionado, possibilita que o pedido formulado pelo autor seja analisado, não podendo este ser fulminado pela preliminar levantada à luz do artigo 267 do CPC.
Cumpre ressalvar que este princípio não possui um rol taxativo de casos para sua ocorrência. O mesmo se perfectibiliza não pelo questionamento sobre se os direitos são válidos apenas para uns ou para outros, mas pela simples aplicação ampla destes a todos, ou seja, a obtenção da igualdade material.
O desrespeito a este princípio constitucional fundamental também foi ressaltado no artigo “Direitos fundamentais, homossexualidade e uniões homoafetivas” do doutrinador Romualdo Flávio Dropa(4) que afirmou:
“A questão envolvendo os direitos relativos às uniões homossexuais pertence, realmente, à esfera moral. Mas não à falsa moral de alguns conservadores e retrógrados que insistem em negar a proteção e salvaguarda da justiça à seres humanos que escolheram conviver embasados em sentimentos de amor e afeto fora dos “padrões” socialmente convencionados, numa tentativa frustrante de tentar demonstrar que a sociedade e seus valores são estáticos no tempo e no espaço. Ao falar em moral, deve-se ter em mente que esta deve, sobretudo, enfatizar a guarda e respeito da justiça de maneira igual para todos. Quem quer que seja privado daquilo que lhe é devido estará sofrendo a agressão de um ato imoral. E os parceiros homossexuais, ao não terem seus direitos respeitados e salvaguardados, estão sendo vítimas de uma imoralidade que, no mínimo, deve ser reformulada ou revista, sob pena do Judiciário brasileiro atravessar décadas enaltecendo a injustiça para alguns em prol da falsa moral de outros”.
Portanto, o reconhecimento da impossibilidade jurídica do pedido, pela falta de expressa disposição legal, configuraria uma resistência imotivada para a efetiva análise do tema. Ademais, como referido acima, existem normas que possibilitam a admissão deste questionamento.
O Direito não é uma ciência exata, possibilitando que as regras existentes em nosso ordenamento sejam interpretadas e complementadas, objetivando amparar todos os casos concretos em consonância com as constantes modificações sociais.
Neste sentido, o Des. José Carlos Teixeira Giorgis(5), no artigo “A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica” referiu:
“As uniões homoafetivas são uma realidade que se impõe e não podem ser negadas, estando a reclamar tutela jurídica, cabendo ao Judiciário solver os conflitos trazidos. É incabível que as convicções subjetivas impeçam seu enfrentamento e vedem a atribuição de seus efeitos, relegando à margem determinadas relações sociais, pois a mais cruel conseqüência do agir omissivo é a perpetração de grandes injustiças.”
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem firmado posicionamento no sentido de entender possível o pedido de reconhecimento de uniões entre pessoas do mesmo sexo, senão vejamos:
“HOMOSSEXUAIS. UNIÃO ESTÁVEL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. É POSSÍVEL O PROCESSAMENTO E O RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL ENTRE HOMOSSEXUAIS, ANTE PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS INSCULPIDOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL QUE VEDAM QUALQUER DISCRIMINAÇÃO, INCLUSIVE QUANTO AO MESMO SEXO, SENDO DESCABIDA DISCRIMINAÇÃO QUANTO À UNIÃO HOMOSSEXUAL. E É JUSTAMENTE AGORA, QUANDO UMA ONDA RENOVADORA SE ESTENDE PELO MUNDO, COM REFLEXOS ACENTUADOS EM NOSSO PAIS, DESTRUINDO PRECEITOS ARCAICOS, MODIFICANDO CONCEITOS E IMPONDO A SERENIDADE CIENTÍFICA DA MODERNIDADE NO TRATO DAS RELAÇÕES HUMANAS, QUE AS POSIÇÕES DEVEM SER MARCADAS E AMADURECIDAS, PARA QUE OS AVANÇOS NÃO SOFRAM RETROCESSO E PARA QUE AS INDIVIDUALIDADES E COLETIVIDADES, POSSAM ANDAR SEGURAS NA TÃO ALMEJADA BUSCA DA FELICIDADE, DIREITO FUNDAMENTAL DE TODOS. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA PARA QUE SEJA INSTRUÍDO O FEITO. APELAÇÃO PROVIDA. (APELAÇÃO Nº 598362655, OITAVA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, REL. DES. JOSÉ TRINDADE, DATA DO JULGAMENTO 01/03/2000)
Não se desconhece que neste mesmo Tribunal (Apelação nº 599348562), já houve pedido de reconhecimento de união entre pessoas de mesmo sexo que foi julgado extinto, sob o argumento de ausência de regulamentação sobre a matéria. Entretanto, não parece ser esta a interpretação jurídica mais acertada, conforme, aliás, destacado na fundamentação do voto vencido naquela oportunidade, da lavra do Des. José Trindade, que sustentava:
“Sobre odiosa discriminação e preconceitos que possam ser lançados sobre qualquer pessoa em relação a sua orientação sexual serve como paradigma a passagem do voto proferido quando do julgamento da Apelação Cível nº tal, na terceira Câmara Cível deste Tribunal, sendo o relator o Desembargador Luiz Gonzaga Pilla Hofmeister, que transcrevo: “É preciso, inicialmente, dizer que o homem e a mulher pertencem à raça humana. Ninguém é superior. Sexo é contingência. Discriminar um homem é tão abominável como odiar um negro, um judeu, um palestino, um alemão ou um homossexual. As opções de cada pessoa, principalmente no campo sexual, hão de ser respeitadas, desde que não façam mal a terceiros. O direito à identidade pessoal é um dos direitos fundamentais da pessoa humana. A identidade pessoal é a maneira de ser, como uma pessoa se realiza em sociedade, com seus atributos e defeitos, com suas características e aspirações, com sua bagagem cultural e ideológica. É o direito que tem todo o sujeito de ser ele mesmo. A identidade sexual, considerada como um dos aspectos mais importantes e complexos compreendidos dentro da identidade pessoal, forma-se em estrita conexão com a pluralidade de direitos, como são aqueles atinentes ao livre desenvolvimento da personalidade, etc. para dizer assim ao final: se bem que não é ampla, nem rica a doutrina jurídica sobre o particular, é possível comprovar que a temática não tem sido alienada para o Direito vivo, quer dizer, para a jurisprudência comparada. Com efeito, em Direito vivo, tem sido buscado, correspondido e atendido pelos juízes na falta de exposições legais expressas. No Brasil ai está o artigo 4 da Lei de Introdução ao Código Civil a permitir a equidade e a busca da justiça”.
Ainda acerca da falta de regulamentação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, oportuno referir que o Ministério Público Federal, através de seu procurador em Guaratinguetá, SP, vem de ajuizar ação civil pública contra os entes federados, no sentido de assegurar em todo o país, a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, justamente sob o argumento de que não é possível interpretar restritivamente os dispositivos que regulam o casamento entre pessoas de sexos diferentes.
Nem poderia ser de outro modo, na medida em que a jurisprudência vem consagrando a possibilidade de que se vejam reconhecidas as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, sem embargo de que o artigo 1.723, do Novo Código Civil ainda refira ser reconhecida como entidade familiar a união estável “entre o homem e a mulher” (…).
Ora, deixando de referir aqui dezenas de outras decisões de Tribunais Regionais e Estaduais, até mesmo o Tribunal Superior Eleitoral já se manifestou sobre esse tema, reconhecendo a possibilidade de união estável entre duas pessoas do mesmo sexo, quando determinou a inelegibilidade de candidata nas recentes eleições municipais de 2004 ao equiparar a união estável heterossexual à homossexual:
“Ementa REGISTRO DE CANDIDATO. CANDIDATA AO CARGO DE PREFEITO. RELAÇÃO ESTÁVEL HOMOSSEXUAL COM A PREFEITA REELEITA DO MUNICÍPIO. INELEGIBILIDADE. Artigo 14, parágrafo sétimo, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Os sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no artigo 14, parágrafo sétimo, da Constituição Federal.Recurso a que se dá provimento. Decisão O Tribunal, por unanimidade, conheceu do recurso e lhe deu provimento, nos termos do voto do relator. (ACÓRDÃO 24564 VISEU – PA 01/10/2004 Relator(a) GILMAR FERREIRA MENDES Relator(a) designado(a) Publicação PSESS – Publicado em Sessão, Data 01/10/2004”.
Assim, à luz do artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal, conforme fundamentação supra, tenho que [não apenas a união estável, mas também] o casamento, nos moldes como atualmente regulado pelo legislador, é um instituto passível de ser acessado por todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual, razão pela qual rejeito a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido.
No mérito, não deve prosperar a manifestação do Ministério Público, no sentido de não existirem nos autos provas suficientes para configurar a existência da união estável objeto da pretensão inicial.
Primeiramente, verifica-se que todos os requisitos básicos para configuração da união estável, quais sejam: publicidade, continuidade, perenidade e o objetivo de constituir família são facilmente identificáveis no caso em exame.
A globalidade da prova produzida: a escritura pública firmada pelas partes (fl. 06), o posterior contrato particular de dissolução de união estável (fls. 07/08), a ratificação feita pelos autores, tanto em audiência quanto por declarações escritas, das afirmações feitas na peça inicial (fl. 16) e as demais provas acostadas (fls. 24/29), demonstram que as partes mantiveram a união estável alegada.
Paralelamente a este fato, o procedimento adotado no presente feito nada difere de quando o objeto da lide é uma união estável heterossexual. Nestas, tem-se como base, para a homologação pretendida, as afirmações feitas na peça inicial e a posterior confirmação destas em audiência, adotando-se como praxe, a juntada de declarações em substituição aos testemunhos prestados em audiência.
Tais declarações, no caso dos autos, estão acostadas a fl. 17 e 18, ambas com firma reconhecida. Portanto, atribuir-se tratamento diferenciado aos jurisdicionados homossexuais seria um desrespeito ao analisado princípio da igualdade. Nesse sentido, seria um absurdo aceitar que o Poder Judiciário fechasse seus olhos não só para as modificações de nossa sociedade, como para a Constituição Federal que rege nossa nação. Buscando na “falta de legislação expressa” razão suficiente para julgar injustamente fatos que ocorrem entre “minorias sociais” que já são constantemente discriminadas.
Isto posto, afastada a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, julgo procedente o pedido inicial e decreto a dissolução de união estável, nos moldes em que pretendida.
Com o trânsito em julgado, arquive-se.
Custas pelas partes. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 14 de fevereiro de 2005. Roberto Arriada Lorea. Juiz de Direito
(Fonte: Site do TJRS, sentença publicada no dia 15/02/2005)
Notas:
1 – Texto livremente traduzido do inglês, cujo original se encontra no site da entidade: http://www.aaanet.org [Voltar]
2 – Citado por Mauro Nicolau Júnior in Revista Brasileira de Direito de Família nº 21, pág. 124. Síntese, Porto Alegre, dez/jan 2004. [Voltar]
3 – Nery Junior, Nélson. Código de Processo Civil Comentado: e legislação extravagante. Atualizado até 7 de julho de 2003. 7. ed. ver. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. [Voltar]
4 – Dropa, Romualdo Flávio , “Direitos fundamentais, homossexualidade e uniões homoafetivas”, texto publicado no site http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5229, 09/02/2005, 18h. [Voltar]
5 – Giorgis, José Carlos Teixeira, “A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica”, texto publicado no site http://www.revistapersona.com.ar/8Giorgis.htm, 09/02/2005, 19h.
Fonte: Arpen – SP