União estável simultânea ao casamento é reconhecida após morte e tem efeitos jurídicos assegurados

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC reconheceu a união estável com pedido de pensionamento feito pela companheira, que afirma ter vivido com um homem, hoje morto, por 40 anos. No mesmo período, teve curso um casamento civil e a esposa tinha ciência do outro relacionamento do marido. A decisão, que confirmou o julgamento em primeiro grau, preservou o interesse e a proteção de ambas as células familiares, destacando que um formalismo legal não deve prevalecer sobre a situação fática.

A mulher ingressou com a ação após a morte do companheiro, alegando ter vivido com ele como se casada fosse por mais de 40 anos. Com estabilidade e coabitação, a relação familiar que se tornou pública ao longo do tempo. Morto em 2012, o homem deixou cinco filhos, sendo que uma é fruto do relacionamento com a autora da ação.

Em contrapartida, os filhos do homem alegaram que jamais houve união estável entre a autora da ação e o falecido. Este, segundo os descendentes, viveu maritalmente por quase 50 anos, em momento algum houve separação de fato ou de direito e o casal nunca deixou de coabitar.

Artigo do Código Civil veda união estável concomitante ao casamento

Após decisão favorável à mulher em primeira instância, os apelantes defenderam o impedimento ao reconhecimento da união estável ante a impossibilidade de coexistência desse instituto concomitantemente ao casamento, dada a vedação existente no artigo 1.723, § 1º, do Código Civil – CC. O de cujus, afinal, não se encontrava separado de fato da esposa e o fim do casamento civil, como comprovado, só ocorreu com a morte do homem, ao contrário do que alegado pela autora da ação.

Contudo, na análise do caso, observou-se que ele efetivamente manteve as duas famílias simultaneamente e de forma pública, contínua e duradoura. A circunstância foi comprovada por fotografias com os dois núcleos familiares, certidão de nascimento da filha e documentos indicando o endereço da companheira como do de cujus.

Em depoimento, a própria viúva informou que o falecido passava dias na casa da outra família, mas sempre voltava para o lar conjugal. Afirmou que, que embora estivesse ciente do outro relacionamento, nunca houve separação entre eles. As testemunhas apresentadas pela parte recorrida corroboram com essa alegação.

O desembargador-relator Álvaro Luiz Pereira de Andrade observou que jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ consolidou entendimento no sentido da possibilidade de reconhecimento da união estável simultânea ao casamento, desde que haja separação de fato ou judicial entre os casados. A controvérsia sobre direitos previdenciários de relações simultâneas de longa data também se encontra afetada ao Tema 526 no Supremo Tribunal Federal – STF, aguardando pronunciamento.

Olhar mais atrelado à afetividade do que ao preconceito

“Parece que é chegado o momento de refletir sobre o concubinato com o olhar mais atrelado à afetividade do que ao preconceito. Se o fundamento contemporâneo da relação familiar é a presença do afeto, o tratamento jurídico do concubinato reclama uma maior atenção e um debate mais cuidadoso. Registre-se, nessa ordem de ideias, que já há uma tendência doutrinária no Brasil para cuidar do concubinato em sede familiarista, inclusive com competência da vara da família”, destacou Andrade.

Para uma visão mais sensível da questão, o relator apresentou trechos de obras de membros do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, como os juristas Maria Berenice Dias, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. “Levando em conta o caráter afetivo das relações familiares, não se pode negar efeitos jurídicos a uma realidade fática afetiva, envolvendo pessoas humanas.”

O desembargador também atentou à necessidade de um olhar mais atualizado para as nuances do Direito de Família e do concubinato. A mera reprodução da lei, segundo Andrade, é inapta a acompanhar a evolução das relações sociais, mormente em Direito de Família – exemplificado pelo recente reconhecimento jurídico dos relacionamentos homoafetivos, do fenômeno da multiparentalidade e até mesmo do poliamor.

“Sob a ótica demonstrada neste feito, também está a se abarcar a proteção jurídica à ‘segunda família’, a qual seria desamparada pela interpretação literal do dispositivo, situação que engendraria flagrante injustiça, na medida em que, embora pela letra fria da lei a apelada vivesse em concubinato, essa relação preencheu por mais de 40 anos os requisitos que modernamente consubstanciam a verdadeira essência do termo família. Destaque para incontroversa ciência e aceitação da situação pela esposa”, destacou.

Situação de fato

Membro da seção Paraná do IBDFAM, o advogado Marcos Alves da Silva é autor do livro Monogamia: sua superação como princípio estruturante do Direito de Família, lançado em 2013. Ele avalia que a decisão proferida em Santa Catarina foi “absolutamente correta”.

“A união estável é uma situação de fato, observadas determinadas características, conformadas pela lei, diferentemente de um casamento, que é um negócio jurídico, que exige certos requisitos para sua validade. Jamais poderemos cogitar a validade da união estável como se fala da validade do casamento. Ou a união estável existe ou não existe”, aponta Marcos.

A transposição dos impedimentos do casamento – fixados no artigo 1.521 – para a união estável é uma das grandes impropriedades do Código Civil, segundo o especialista. “Isso porque não se admitiu que a natureza jurídica da união estável é completamente distinta do casamento. Portanto, não faz sentido transpor para a união estável aqueles impedimentos do casamento como se eles, uma vez verificados, se transformassem em obstáculo à configuração da união estável”, observa Marcos.

Dispositivos discriminatórios no Código Civil

O advogado lembra que a Constituição Federal destina proteção especial do Estado às famílias, independentemente se formadas ou não pela vigência de um casamento. Constituições anteriores traziam essa previsão, superada pela de 1988. Por isso, Marcos Alves entende como discriminatórios certos dispositivos do Código Civil, como o parágrafo 1º do artigo 1.723 e o próprio artigo 1727, previsões que “ressuscitam o concubinato no Brasil”, segundo o especialista.

“Entendo que essas normas ofendem o princípio constitucional da pluralidade das entidades familiares e da plena proteção às famílias. Como bem dito no acórdão, não é o Estado quem vai dizer como as pessoas conformam os seus núcleos familiares. A família é conformada no âmbito do exercício pleno da liberdade”, afirma Marcos.

A família pertence ao campo das situações subjetivas, existenciais e de autodeterminação, como define o advogado. A liberdade vinculada a essas situações também é um princípio constitucional. “O ordenamento jurídico brasileiro recepciona as uniões simultâneas ao casamento como prioriza a proteção de toda e qualquer forma de ser família”, afirma.

“Devem prevalecer os princípios constitucionais que garantem a pluralidade das entidades familiares, não aquela velha e recalcada compreensão do Direito de Família fundado exclusivamente no matrimônio, como se outras famílias fossem de segunda categoria, sem o mesmo o prestígio”, defende Marcos.

Categorização como “amante” ou “concubina” discrimina mulheres

A desqualificação das uniões paralelas e a categorização de companheiras como “amantes” ou “concubinas” é um fenômeno que passa por um histórico de discriminação da mulher e dominação masculina, como observa Marcos Alves. “Não se pode aceitar essa desqualificação, até por um princípio constitucional de que um dos objetivos da República é exatamente a superação de todos os tipos de discriminação.”

“A decisão da Justiça de Santa Catarina vem corroborar o melhor entendimento que se pode ter do significado da união estável como uma forma de constituição de conjugalidade. Ainda não percebemos toda a reverberação da Constituição de 1988 no sentido de garantir direito a toda e qualquer família”, afirma Marcos.

Ele lembra que casos de uniões paralelas de longa duração têm chamado atenção inclusive dos tribunais superiores. “Produz-se uma injustiça ainda mais grave quando o Direito faz invisível uma pessoa que teve visibilidade e atuação durante quatro décadas, como é o caso desse processo. Houve uma união estável com prole, constituição de família e mútua dependência.”

Apagar da história de vida dessas pessoas, levá-las para um campo de não alcance da visão jurídica ou da tutela jurisdicional configuraria grande injustiça, nas palavras de Marcos Alves. “Neste caso, temos um exemplo típico de fatos que rebatem a injustiça de uma norma discriminatória”, finaliza o advogado, que celebra a decisão do TJSC em prol da pluralidade das famílias.

 

Fonte: Ibdfam