Jonas e Caio, irmãos gêmeos de cinco meses, nasceram no ano passado no México após um processo de barriga de aluguel no país. Eles são filhos do analista de sistemas Armênio Lobato, 41, e do bancário Luís Cláudio Oliveira, 41.
Mas não para o consulado brasileiro. A instituição da Cidade do México se recusou a registrá-los como filhos do casal homoafetivo, embora a legislação brasileira assegure esse direito desde março de 2016. Na certidão e no passaporte brasileiro com que voltaram para o Rio, só constava o nome de seu pai biológico.
O Itamaraty argumenta que, segundo seu manual e segundo a Convenção de Viena, na hora de gerar a certidão de nascimento brasileira, o consulado deve seguir a lei local. E a lei no México e em outros países só permite o registro em nome do pai biológico.
Mas no Brasil os cartórios são obrigados a registrarem como filhos de casais homoafetivos os bebês gerados com uso de material genético doado desde março de 2016, quando o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) regulamentou a emissão dessas certidões.
A recusa do Itamaraty em seguir a lei brasileira causou problemas a Armênio e Luís Cláudio, que mantêm união estável desde 2012 e que são casados desde janeiro de 2016.
Registrados como filhos de um só pai, os bebês acabaram sem acesso ao plano de saúde de Armênio no México. Nascidos prematuramente, com 32 semanas, ficaram um mês na UTI –e os gastos, uma cifra de seis dígitos, tiveram que ser pagos pelo casal.
"Voltei para os meus remédios de ansiedade por conta do processo", diz Luís Cláudio. Para Armênio, o "órgão com a melhor estrutura do serviço público brasileiro toma atitudes que não condizem com o mundo de hoje".
Agora, lutam para impedir que a situação aconteça com outros casais. "Outros podem passar pela mesma dificuldade, porque há uma inadequação no manual do Itamaraty. Por que expô-los a essa dificuldade?", questionam as advogadas do casal, Ana Gerbase e Cristina Grillo, que vão entrar com uma representação no Ministério Público Federal contra o manual.
"Se conseguem registrar como filhos dos dois no Brasil, também deveriam conseguir registrar dessa maneira no consulado", diz André de Carvalho Ramos, professor de direito internacional e de direitos humanos da USP.
"É algo que merece uma providência. Se o documento do exterior é mais restritivo do que a legislação brasileira –e com base no Supremo e no CNJ há absoluta igualdade de direitos no Brasil–, deve haver uma alteração de procedimento", afirma ele.
O casal só conseguiu registrar os bebês como filhos de ambos depois de entrar com um processo administrativo junto a um cartório no Rio. A Justiça proferiu decisão favorável em dezembro passado.
Outro casal que não quis ser identificado não teve a mesma sorte. Suas filhas nascidas no México também tiveram na certidão consular o nome de só um pai. Quase um ano depois, os pais ainda não conseguiram constar na certidão.
Um deles diz ter medo de ser parado pela polícia quando estiver com as filhas: "como vou provar que sou seu pai?". O registro em nome dos dois também garante direitos de pensão e de herança.
NEPAL
Armênio e Luís Cláudio são pais de Henrique, de 11 meses, nascido no Nepal também após um processo de barriga de aluguel.
No caso de Henrique, porém, embora na certidão local também só constasse o nome do pai biológico, o consulado incluiu o nome dos dois pais.
O Itamaraty defende a ação do consulado no México e diz que houve erro do consulado no Nepal. Mas admite que a norma precisa ser discutida.
OUTRO LADO
“Não houve equívoco na atuação do consulado do México, embora para nós seja difícil negar a inclusão do nome do outro pai”, diz Luiza Lopes da Silva, diretora do Departamento Consular e de Brasileiros no Exterior do Itamaraty. Mas admite: “Gostaríamos de poder avançar. É um assunto ainda em construção e isso também nos frustra. Há margem para rever o assunto”.
A recusa em registrar os bebês em nome dos dois pais, diz ela, se dá porque o consulado brasileiro no exterior deve espelhar o documento levado como base para o registro consular, ou seja, o documento feito no país onde os bebês foram gerados.
“Se espelhássemos de forma diferente, estaríamos adulterando as informações”, diz. “Como o registro tem uma base e não é feito do zero, é como se fosse uma transcrição.”
O tema, diz ela, “é ainda muito novo” e o Itamaraty ainda não tem uma resposta. Por isso, a instituição pretende levá-lo ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para que uma solução seja discutida.
MANUAL
Além de argumentar que a atuação do Itamaraty no caso viola a legislação brasileira — que tem assegurado no provimento 52, do CNJ, o direito de bebês gerados após reprodução assistida serem registrados como filhos dos dois pais ou das duas mães—, as advogadas de Armênio Lobato e Luís Cláudio Oliveira devem argumentar que o manual do Itamaraty é incoerente.
Isso porque o documento abre uma exceção para o registro de filhos fora do casamento: caso a legislação do país em questão não inclua o nome do pai na certidão, o consulado pode inclui-lo.
“Se a lei do país onde a criança nasceu não permite que se inclua o nome do pai em caso de filhos fora do casamento, o consulado pode incluir o nome do pai, não precisa seguir a lei local —é uma exceção. Por que então filhos havidos dentro de um casamento homoafetivo não têm o mesmo direito?”, questiona a advogada Cristina Grillo.
Segundo Luiza Lopes da Silva, do Itamaraty, a instituição irá publicar um guia sobre direitos LGTB no mundo, com um capítulo específico sobre barrigas de aluguel —cuja publicação poderá ser antecipada após o caso de Armênio e Luís Cláudio vir à tona. (JG)
Fonte: Folha de São Paulo