A extrajudicialização e seus novos desafios

O Centro de Estudos Judiciários, vinculado ao Conselho da Justiça Federal, no desenvolvimento de sua função de gerir e disseminar o conhecimento científico, realizou, entre os dias 26 e 27 de agosto deste ano, a II Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios. Esse evento representou um marco, um passo além, com vistas a ampliar a utilização das soluções extrajudiciais como ferramenta útil à resolução de litígios. A implementação de mecanismos extrajudiciais de pacificação eficientes e que não desvirtuem os ideais de justiça permite a desobstrução do Poder Judiciário, mantendo-se as garantias sociais e os direitos fundamentais.

Sete anos após a realização da primeira edição, participaram da II Jornada ministros, desembargadores, juízes, membros do Ministério Público, profissionais da advocacia pública e privada, professores, mediadores, árbitros e outros profissionais que se dedicam aos temas ali tratados, travando, ao longo de meses, um diálogo profundo, necessário e de qualidade sobre as formas adequadas de solução de conflitos, a ressignificação do papel do Poder Judiciário na sociedade contemporânea e a priorização do protagonismo da atuação estatal para determinadas espécies de litígios.

É bem de ver que, no segundo pós-guerra, surgiram inúmeros debates sobre as formas de democratização de acesso à Justiça em todo o mundo. É imprescindível, porém, que analisemos os métodos mais adequados para fazer com que o litígio não só ingresse no sistema de Justiça, mas efetivamente possa também sair dele, porque não adianta abrirmos portas e mais portas se não conseguimos fechá-las. Essa foi, decisivamente, a contribuição dada pelo evento: refletir junto com juízes, professores, advogados, mediadores, árbitros, Ministério Público, defensores públicos, enfim, com todos aqueles que têm a incumbência de pensar sobre o sistema de Justiça e de fazer com que ele funcione satisfatoriamente. Foi essa a ideia que motivou o Conselho da Justiça Federal a reunir essa plêiade de juristas, uma vez que precisamos buscar saídas eficientes para as dificuldades que enfrentamos no manejo da grande quantidade de demandas que temos hoje e que teremos pela frente.

A coordenação científica da II Jornada — que teve como membro o primeiro autor deste artigo, ao lado do ministro Paulo de Tarso Sanseverino — estabeleceu quatro comissões, nomeadas conforme seus respectivos temas de trabalho: arbitragem; mediação; desjudicialização; novas formas de solução de conflitos e novas tecnologias. O enfoque primordial dessa edição foi o estudo e a sistematização de práticas com instrumentos que possam prevenir os conflitos de interesses, os quais, caso persistam, sejam tratados extrajudicialmente. Após profícuas discussões, percebe-se que facilitar a comunicação entre os litigantes e garantir mais liberdade no trato de suas desavenças contribuem para a construção de uma solução consensual, com a vantagem de tornar as partes mais propensas a cumprir voluntariamente o acordado, além do almejado efeito de prevenir novos desentendimentos.

Assim, a II Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, realizada inteiramente de maneira remota, alcançou números superlativos, com o inédito encaminhamento de 689 proposições e mais de 250 especialistas inscritos. Foram 129 proposições recebidas pela comissão de arbitragem; 210 enviadas à comissão de mediação; 158, à comissão de desjudicialização; e 192, à comissão de novas formas de solução de conflitos e novas tecnologias. No desfecho, 143 enunciados foram aprovados por quórum qualificado e de forma democrática na plenária final, conferindo-se legitimidade às conclusões alcançadas. Esses enunciados são fórmulas que sintetizam e apresentam à comunidade jurídica o entendimento de determinada fonte: um tribunal, um fórum de discussão, uma classe de operadores do Direito. No caso das jornadas, desde as primeiras Jornadas de Direito Civil, seus enunciados têm natureza doutrinária, servem de orientação para advogados e juízes sobre temas controvertidos, sendo fruto dos intensos debates realizados ao longo de meses nas reuniões prévias e na plenária, com ampla participação inclusive dos ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Marco Buzzi e Ricardo Villas Bôas Cueva, além de doutrinadores de renome nacional e internacional. Veremos, neste texto, algumas propostas de cada comissão que merecem ser destacadas, sobretudo as que motivaram intensas e profundas discussões não só nas respectivas comissões de trabalho, como também na plenária final.

Iniciando pela comissão de arbitragem, superando o debate que foi inaugurado na I Jornada, aprovou-se o Enunciado nº 96, o qual prevê ser “válida a inserção da cláusula compromissória em pacto antenupcial e em contrato de união estável”. Apesar da controvérsia que gera — pelo fato de ser difícil a separação de interesses puramente patrimoniais nas disputas de família —, a ementa doutrinária dá um passo adiante na concreção prática da arbitragem. Tem-se o mesmo entendimento quanto ao Enunciado nº 103, segundo o qual “é admissível a implementação da arbitragem online na resolução dos conflitos de consumo, respeitada a vontade do consumidor e observada sua vulnerabilidade e compreensão dos termos do procedimento, como forma de promoção de acesso à Justiça”. Essa última tese também foi amplamente debatida na I Jornada, sem a aprovação de nenhuma proposta, vencida a posição contrária às arbitragens de consumo no evento atual. Finalmente, confirmando a posição da corte superior, no Conflito de Competência nº 111.203/DF, surgiu o Enunciado nº 100, o qual estabelece que “o Superior Tribunal de Justiça é o órgão jurisdicional competente para julgar o conflito de competência existente entre árbitro e juiz estatal”.

A comissão de desjudicialização também aprovou propostas de grande relevo prático, notadamente para a atuação dos cartórios em todo o país. A primeira delas, o Enunciado nº 117 prevê que, “em caso de desistência ou suspensão do processo judicial de usucapião para utilização da via extrajudicial, poderão ser aproveitados os atos processuais já praticados na via judicial”. De acordo com o Enunciado nº 120, “são admissíveis a retomada do nome de solteiro e a inclusão do sobrenome do cônjuge de quem não o fez quando casou, a qualquer tempo, na constância da sociedade conjugal, por requerimento ao Registro Civil das Pessoas Naturais, independentemente de autorização judicial”. Trata-se de mais uma proposta que segue a reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça conforme a qual o nome é um direito da personalidade do cônjuge que o incorporou (por todos, veja-se o REsp nº 1.648.858/SP). Por último, igualmente com impacto direto no Direito de Família, preceitua o Enunciado nº 128 que “é admissível a formalização de união estável por meio do registro, no livro E do Registro Civil de Pessoas Naturais, de instrumento particular que preencha os requisitos do art. 1.723 do CC/2002”.

Da comissão de novas formas de solução de conflitos e novas tecnologias merecem relevo os enunciados a respeito do uso de plataformas digitais, o que foi incrementado nos últimos tempos, sobretudo diante da pandemia da Covid-19. Como primeira ementa de importância, o Enunciado nº 140 estatui, de forma precisa, que “os princípios da confidencialidade e da boa-fé devem ser observados na mediação online. Além disso, “os setores público e privado devem combater todas as formas de discriminação, opressão ou exclusão digital decorrentes da incorporação de novas tecnologias para o efetivo acesso à Justiça” (Enunciado nº 146). Tendo em vista a ampla proteção constante da LGPD (Lei nº 13.709/2018), também se aprovou ementa segundo a qual “a resolução consensual de controvérsias decorrentes da proteção de dados pessoais deve ser incentivada pelo Estado e pode ocorrer por meio de plataformas de solução de conflitos” (Enunciado nº 148).

Por fim, a comissão de mediação analisou questões interdisciplinares a respeito da sua efetiva e correta aplicação. Nessa linha, o Enunciado nº 166 prevê ser a mediação “meio eficiente e prioritário para resolver os conflitos de vizinhança, devendo sempre garantir a intimidade e a inviolabilidade da vida privada dos vizinhos, consoante estabelece o Enunciado nº 319 da IV Jornada de Direito Civil”. Assim, trouxe importante diálogo com enunciado aprovado em outro evento do próprio Conselho da Justiça Federal. Ademais, “a mediação deve ser implementada no âmbito escolar público e privado como fomento à cultura do diálogo, devendo ser realizada por mediadores devidamente capacitados” (Enunciado nº 172). Como última proposta a ser destacada, mais uma vez diante da preocupação com a eficiência das plataformas digitais, o Enunciado nº 179 prescreve que, para que seja considerado “mediação ou conciliação, o procedimento deve atender aos requisitos legais destinados a tais formas de resolução de conflitos”.

Muitos outros enunciados, pela sua grande relevância teórica e prática, poderiam ser destacados neste breve artigo, especialmente alguns que tratam do incremento de políticas públicas para a utilização das ferramentas de extrajudicialização. Contudo, ficamos apenas com esses, que demonstram a importância da II Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios para o diálogo e o debate necessários a respeito de novas formas de acesso à justiça. Não restam dúvidas, portanto, de que o Conselho da Justiça Federal, por intermédio do Centro de Estudos Judiciários, novamente cumpriu com o seu importante papel de aperfeiçoamento do nosso sistema de Justiça.

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* Luis Felipe Salomão foi coordenador-geral da II Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios.
Flávio Tartuce foi membro da comissão científica da II Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios.

** Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFam).

 

Fonte: Revista Consultor Jurídico