A Possibilidade de Reconhecimento de Paternidade ou Maternidade Biológico ou Socioafetivo Diretamente Perante o Rcpn e a Resolução 571/CNJ: Crítica

*Letícia Franco Maculan Assumpção

**Luciana Trindade dos Reis Bottrel Mansur

 

O reconhecimento da filiação, seja ela biológica ou socioafetiva, é uma questão de extrema relevância no âmbito do Direito de Família e das Sucessões e está alicerçado em princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal), da igualdade entre os filhos (art. 227, § 6º, da Constituição) e do melhor interesse da criança e do adolescente. A legislação infraconstitucional, como o Código Civil, reforça essa visão, especialmente em seus artigos 1.593 (que reconhece as várias formas de parentesco) e 1.607 (que regula o reconhecimento de filhos).

A Resolução nº 571, de 27 de agosto de 2024, deu nova redação à Resolução nº 35/CNJ, introduzindo diversas alterações significativas no intuito de promover a desjudicialização e garantir maior celeridade em assuntos relacionados a inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual de união estável. Foi, assim, autorizada a extrajudicialização do inventário, mesmo quando as partes sejam pessoas menores ou incapazes, desde que observados os requisitos previstos nos incisos do art. 12-A.

Os requisitos a serem observados são os seguintes: pagamento do quinhão hereditário do menor ou da meação do incapaz em parte ideal em cada um dos bens inventariados e manifestação favorável do Ministério Público, sendo expressamente vedada a prática de atos de disposição relativos aos bens ou direitos do interessado menor ou incapaz, conforme § 1º do mesmo artigo.

O § 2º do art. 12-A da Resolução nº 35/CNJ, incluído pela resolução 571/CNJ, estabelece que, havendo nascituro do autor da herança, para a lavratura do inventário, deverá ser aguardado o registro de seu nascimento com a indicação da parentalidade, ou a comprovação de não ter nascido com vida. A disposição do § 2º é compreensível, pois a partilha muda a depender de ocorrer ou não o nascimento com vida desse herdeiro. Assim, a Resolução 571 bem regulamentou essa questão do nascituro. Por outro lado, não se pode compreender o disposto no art. 12-B, § 1º, da Resolução aqui comentada, que traz a vedação do inventário extrajudicial se na certidão do testamento for constatada a existência de disposição reconhecendo filho.

Ora, sabe-se que o reconhecimento de filho no testamento é disposição irrevogável, conforme estabelece a Lei 8.560/92, em seu art. 1º, III, e o Código Civil Brasileiro, em seu art. 1.609, inciso III. Assim, se constar do testamento válido esse reconhecimento, muito dificilmente deixará de ser considerada essa declaração, pois a anulação do reconhecimento somente será admitida nos casos de existência de vício de consentimento no ato jurídico realizado, o que deverá ser feito judicialmente, na via adequada a este procedimento.

Cabe enfatizar que ambas as modalidades de filiação, biológica e socioafetiva, podem ser objeto de testamento. Havendo no testamento o reconhecimento de filiação, e sendo o testamento válido, o meeiro(a) e sucessores devem aceitar tal fato e proceder à inclusão de mais um herdeiro no inventário. Se todas as partes aceitarem o novo herdeiro, não há razão para ser obrigatória a via judicial. Havendo consenso entre as partes, não se pode conceber da proibição da opção pela via extrajudicial. Seria perfeito que o CNJ tivesse determinado que, antes de prosseguir no inventário, fosse averbado no registro civil o nome do pai ou da mãe, de modo que o reconhecimento do filho esteja refletido no seu registro civil, na mesma lógica estabelecida para o caso do nascituro.

A melhor hipótese ventilada para justificar a redação da norma que veda o inventário quando há reconhecimento de filho no testamento é a de que a Resolução 571 desconsiderou o fato de que o reconhecimento de paternidade pode ser feito diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, por isso é importante reforçar que não é necessário mover a máquina judiciária para a averbação da paternidade ou maternidade no registro do filho. No caso de o pai biológico ter falecido, vale o testamento como manifestação de vontade dele, como autorizam a Lei 8.560/92 e o Código Civil vigente. Já para o reconhecimento socioafetivo, há previsão expressa da aceitação do testamento como manifestação da vontade do pai ou da mãe no Provimento 149/CNJ, em seu art. 507, § 8º.

Assim, necessário se faz a revisão do disposto na Resolução 35/CNJ, quanto ao afastamento da via extrajudicial quando houver filho reconhecido no testamento. Enquanto não houver tal revisão, sugere-se que, quando for apresentado ao Juiz o testamento para fins de seu registro, abertura e cumprimento[1], seja informado ao Juiz que a averbação da paternidade ou maternidade já foi realizada e seja solicitada a autorização para a lavratura extrajudicial do inventário.

A Resolução nº 35/CNJ, a nova Resolução nº 571/CNJ, bem como outras normas que ampliam as possibilidades de atuação extrajudicial consolidam a tendência à desjudicialização. Contudo, necessário se faz que sejam eliminadas barreiras desnecessárias, haja vista serem os atos notariais e registrais consagrados como instrumentos plenos e legítimos de resolução de questões familiares e patrimoniais.

 

 

*Letícia Franco Maculan Assumpção – Graduada em Direito pela UFMG, pós-graduada e mestre em Direito. Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. Diretora do Instituto Nacional de Direito e Cultura – INDIC. Professora de Pós-Graduação em Direito Notarial e Registral. Presidente do Colégio Registral de Minas Gerais e Diretora do RECIVIL. Autora dos livros Notas e Registros, Casamento e Divórcio em Cartórios Extrajudiciais do Brasil e Usucapião Extrajudicial, além de diversos artigos na área do direito notarial e registral.

** Luciana Trindade dos Reis Bottrel Mansur – Mestre em Direito. Negociadora com formação pela CMI em Harvard Faculty Club. Pós-graduada em Direito Processual Civil. Pós-graduada em Neuroeducação e Gestão do Conhecimento. Pós-graduada em Famílias e Sucessões. Mediadora judicial formada pelo TJMG. Presidente da Comissão de Advocacia extrajudicial, notarial e registral do IBDFAM/MG. Professora. Advogada sênior no escritório de advocacia Trindade Mansur e Associados. Palestrante.

 

 

[1] A autorização judicial é obrigatória em qualquer hipótese de existência de testamento, nos termos dos incisos do art. 12B, da Resolução nº 35/CNJ, na nova redação dada pela Resolução 571/CNJ.