O art. 236 da Constituição Federal dispõe que: “Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”.
Os registradores e notários são considerados particulares em colaboração com o Estado, pessoas físicas sem vinculação com a estrutura do funcionalismo público que exercem atividade notarial ou registral por delegação do Poder Público. (…) profissionais dotados de fé pública, não remunerados pelos cofres públicos, mas por emolumentos recebidos dos usuários do serviço extrajudicial e atuam nos mais diversos Distritos, Municípios e Comarcas dos estados brasileiros, desempenhando o papel de orientação jurídica, conferência e validação de atos negociais, propiciando transparência, segurança e publicidade aos mais diversos fenômenos de criação, modificação e extinção da vida civil e empresarial. (Pedroso, Alberto Gentil de Almeida. Registros Públicos, Ed. Método, pág. 2, 2020)
Em decisão emblemática o Supremo Tribunal Federal delineou os principais traços dos serviços notariais e de registro, conforme voto do Ministro Carlos Ayres Britto na ADI 2.602:
I – serviços notariais e de registro são atividades próprias do Poder Público, pela clara razão de que, se não o fossem, nenhum sentido haveria para a remissão que a Lei Maior expressamente faz ao instituto da delegação a pessoas privadas. É dizer: atividades de senhorio público, por certo, porém obrigatoriamente exercidas em caráter privado (CF, art. 236, caput). Não facultativamente, como se dá, agora sim, com a prestação dos serviços públicos, desde que a opção pela via privada (que é uma via indireta) se dê por força de lei de cada pessoa federada que titularize tais serviços; II – cuida-se de atividades jurídicas do Estado, e não de atividades simplesmente materiais, cuja prestação é traspassada para os particulares mediante delegação (já foi assinalado). Não por conduto dos mecanismos da concessão ou da permissão, normados pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dessa atividade material (não propriamente jurídica) em que se constituem os serviços públicos; III – a delegação que lhes timbra a funcionalidade não se traduz, por nenhuma forma, em cláusulas contratuais. Ao revés, exprime-se em estatuições unilateralmente ditadas pelo Estado, valendo-se este de comandos veiculados por leis e respectivos atos regulamentares. Mais ainda, trata-se de delegação que somente pode recair sobre pessoa natural, e não sobre uma “empresa” ou pessoa mercantil, visto que de empresa ou pessoa mercantil é que versa a Magna Carta Federal em tema de concessão ou permissão de serviço público; IV – para se tornar delegatária do Poder Público, tal pessoa natural há de ganhar habilitação em concurso público de provas e títulos. Não por adjudicação em processo licitatório, regrado pela Constituição como antecedente necessário do contrato de concessão ou de permissão para o desempenho de serviço público; V – está-se a lidar com atividades estatais cujo exercício privado jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, e não sob órgão ou entidade do Poder Executivo, sabido que por órgão ou entidade do Poder Executivo é que se dá a imediata fiscalização das empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. Reversamente, por órgãos do Poder Judiciário é que se marca a presença do Estado para conferir certeza e liquidez jurídica às relações inter partes, com esta conhecida diferença: o modo usual de atuação do Poder Judiciário se dá sob o signo da contenciosidade, enquanto o invariável modo de atuação das serventias extraforenses não adentra essa delicada esfera da litigiosidade entre sujeitos de direito; VI – enfim, as atividades notariais e de registro não se inscrevem no âmbito das remuneráveis por “tarifa” ou “preço público”, mas no círculo das que se pautam por uma tabela de emolumentos, jungidos estes a normas gerais que se editam por lei necessariamente federal. Características de todo destoantes, repise-se, daquelas que são inerentes ao regime dos serviços públicos.
O momento da atividade extrajudicial não poderia ser mais auspicioso – afinal, foram inúmeros os incrementos promovidos pelo Legislador brasileiro às atividades dos notários e registradores nos últimos anos:
I. Lei 11.441/2007 – divórcio e inventário extrajudicial;
II. usucapião extrajudicial nos Registros de Imóveis – art. 216-A da Lei de Registros Públicos;
III. emissão de documentos públicos pelo Registro Civil das Pessoas Naturais, Ofícios da Cidadania – Lei 13.484/2017 (declarada constitucional – ADI 5.855, relator Min. Alexandre de Morais, data do julgamento 10.4.2019);
IV. homologação de penhor legal pela via extrajudicial – art. 703, § 1º, do Código de Processo Civil.
Administrativamente, igualmente, os acréscimos na atividade extrajudicial (rotinas/atos) não foram poucos – como por exemplo:
I. Prov. 63/2017 do CNJ – trata do reconhecimento voluntário e averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro “A” e do registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida;
II. Prov. 67/2018 do CNJ – regulamenta a conciliação e mediação extrajudicial;
III. Prov. 72/2018 – dispõe sobre medidas de incentivo à quitação ou à renegociação de dívidas protestadas nos tabelionatos de protesto;
IV. Prov. 82/2019 – dispõe sobre o procedimento de averbação, no registro de nascimento e no de casamento dos filhos, da alteração do nome do genitor e outras providências;
V. Normas de Serviço da CGJSP, Tomo II, Cap. XIV, itens 213 a 218 – trata da carta de sentença notarial.
O Legislador e o Conselho Nacional de Justiça (além das Corregedorias Gerais da Justiça dos Estados) ao promoverem tamanha ampliação de serviços e atribuições do extrajudicial, salvo melhor juízo, partem de duas premissas valiosas:
I. evidente confiança jurídica e administrativa nos notários e registradores de todo país;
II. O alcance efetivamente nacional dos Cartórios, pois presentes de maneira contundente na quase totalidade das Comarcas, Municípios, Distritos e vilarejos.
A notória ampliação dos serviços para o extrajudicial não veio sozinha, pois muito se exigiu das serventias no tocante a informatização, digitalização de documentos, protocolos de segurança eletrônicos, desenvolvimento e manutenção de sistemas de interligação de dados por centrais eletrônicas e etc (vide o Provimento n. 74/2018).
O mundo mudou muito e de maneira extremamente rápida quanto às suas necessidades e o tempo para concretização de seus desejos – aumentar os serviços prestados pelos Cartórios para atendimento dos usuários é indispensável e franqueá-los eletronicamente mostra-se essencial, mas não se pode perder de vista que alguém sempre pagará a conta, o custo existe e deve ser previsto com responsabilidade.
Todo este processo (mais serviço e tecnologia em tudo) exige investimento além de suor e comprometimento profissional.
Salvo reservas econômicas anteriores de cada notário e registrador é exatamente com os valores percebidos à título de emolumentos que os investimentos são feitos.
O tema emolumentos por si só, no Brasil, já mereceria um texto próprio, ante a sua enorme complexidade jurídica (inclusive quanto ao multifracionamento do valor total entre vários beneficiados – o que reduz sensivelmente o valor devido ao delegatário do serviço que não recebendo a integralidade do montante desembolsado pelo usuário, acaba por custear integralmente os incrementos da atividade).
No Brasil, vive-se um sistema de profunda perplexidade constitucional quanto ao tema referido – em que a Constituição Federal, em seu art. 151, inciso III, veda a União instituir isenções de tributos de competência dos Estados, Distrito Federal ou dos Municípios; e o E. Supremo Tribunal Federal já afirmou categoricamente que os emolumentos do extrajudicial, instituídos pelos Estados da Federação, possuem natureza jurídica de tributo estadual (ADI 1.378/ES, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 13.10.2010, DJ 09.02.2011). Assim, reconhecida a natureza jurídica de tributo para os emolumentos extrajudiciais instituídos pelos Estados – conforme posição pacifica do E. STF – mostra-se inconstitucional a concessão de gratuidade prevista no art. 98, inciso IX, do Código de Processo Civil, as isenções previstas no art. 13, § 1º, da Lei 13.465/2017 (criada pela União para Regularização Fundiária) bem como todos os atos administrativos estaduais ou federais de concessão de gratuidades e isenções de emolumentos.
De todo modo, independentemente de qualquer reflexão mais aprofundada sobre a justiça do multifracionamento dos emolumentos em cada estado ou mesmo da natureza jurídica dos emolumentos, é fato que a cada nova mitigação ou isenção do montante recebido pelos delegatários do serviço extrajudicial – por lei de qualquer ordem ou ato administrativo – corre-se o risco de se promover injusto desequilíbrio econômico entre serviço x custo da operação, o que pode gerar o colapso da atividade extrajudicial.
Vale mencionar que com toda certeza quando previsto em lei estadual os percentuais do multifracionamento dos emolumentos do extrajudicial não se ponderou os incrementos tecnológicos hoje exigidos por Lei e Provimentos administrativos. Ou seja, sem qualquer isenção de emolumentos (medida que deveria decorrer de Lei) a cada nova exigência de incremento da atividade na oferta dos serviços notariais e de registro seria exatamente a parcela correspondente ao delegatário que iria suportar o investimento. Quando são criadas novas hipóteses de isenção e mitigação dos emolumentos para prestação de serviço, sem contrapartida algum, acaba-se por avançar na parcela de emolumentos devidos aos titulares pela prática de outros atos, alheios, inclusive, ao próprio serviço gentilmente ofertado sem custo.
A situação atual é estranha. De um lado o Estado e o Poder Judiciário (administrativamente) acenam de maneira promissora para um futuro próspero de serviços para o extrajudicial, mas de outro impõe restrições de receitas e incrementos custosos.
Oxalá, possa ser ajustado o descompasso entre o incremento do custo do serviço e a contrapartida econômica, pois do contrário, muito provavelmente, o serviço extrajudicial enfrentará um estado de colapso econômico.
*Alberto Gentil de Almeida Pedroso é Juiz de Direito, professor de Registros Públicos e autor de diversas obras jurídicas especializadas em extrajudicial. IG: @registrandocomgentil.
Fonte: Arpen-SP