Artigo – Responsabilidade Civil dos Notários e de Registradores e seus critérios de aferição

A Constituição Federal promulgada em 05 de outubro de 1998 trouxe inúmeras novidades para Tabeliães e Oficiais de Registro. Dentre elas, foi definir explicitamente a atividade como uma delegação pública exercida em caráter privado, disseminando por vez, qualquer possibilidade de enquadrar este profissional do direito como servidor público.

O parágrafo 1o da do art. 236 da Constituição Federal dispõe que “Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.”

Finalmente, em 18 de novembro de 1994, foi sancionada a Lei 8.935 que regulamentou a atividade de notários e registradores, de acordo com o estabelecido no citado parágrafo primeiro do artigo 236 da Constituição Federal, definindo atribuições, competências, formas de extinção da delegação, de provimento das serventias vagas, entre outros temas inerentes a atividade, além de definir a responsabilidade civil e criminal dos delegados extrajudiciais.

O artigo 22 da referida lei determina que “os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos”.

E é este o principal ponto que tem alarmado os notários após o advento da referida Lei 8.935/1994, pois em síntese, alguns doutrinadores e juristas passaram a entender que tabeliães e oficiais de registro respondem direta e objetivamente por qualquer falha em sua serventia que cause dano a terceiros.

Anteriormente ao advento da referida lei, conforme posicionamento predominante dos Tribunais Pátrios, notários e registradores eram considerados funcionários públicos, e na qualidade de servidores, o Estado é quem respondia pelos danos que estes causassem a terceiros independente da comprovação de culpa ou dolo.

A partir da alteração constitucional de 1998 e da promulgação da Lei 8.935/1994, os doutrinadores e juristas passaram a debater com intensidade a questão da responsabilidade civil destes profissionais, sendo certo que existem várias correntes divergentes sobre o tema, que ainda não possuem posição predominante no meio jurídico. E, desta forma, procuraremos demonstrar os pontos convergentes sobre a questão que visam definir que notários e registradores devem responder pelos atos que decorrerem exclusivamente de culpa ou dolo.

E este entendimento ganhou reforço importantíssimo com a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou inconstitucional a aposentadoria compulsória de notários e registradores por implemento de idade, definindo a natureza jurídica da atividade, restando claro que este profissionais não podem ser enquadrados como servidores do poder público.

O Professor De Plácido e Silva, in Vocabulário Jurídico, Vol. I, pág. 589, conceitua culpa como sendo “a falta cometida contra o dever, por ação ou por omissão, procedida de ignorância ou de negligência. A culpa pode ser ou não maliciosa, voluntária, implicando sempre na falta de observância da diligência que é devida na execução do ato, a que se está obrigado”.

A professora civilista DINIZ (2000, p. 200), discorrendo sobre o aludido tema, assim se manifesta:

“Será preciso, ainda, deixar bem claro que o notário público autônomo ante os arts. 159 e 1521, III, do Código de Processo Civil, responderá com seu patrimônio não apenas por ato seu, mas também pelo comportamento irregular, doloso ou culposo, de seus servidores, enquanto em serviço, por culpa in vigilando ou in eligendo. Todavia, será preciso esclarecer que não haverá responsabilidade do tabelião ou escrevente de notas pelo dano se o ato que praticou for ato de vontade das partes e não ato de autoridade. Os atos de vontade das partes são os praticados pelos notários, permitidos por lei, se não ocorresse um fato que os vicia. Além de serem subjetivos, a declaração de sua ilegalidade dependerá de procedimento judicial; assim sendo, enquanto não forem questionados em juízo, produzirão efeitos. (…) É a hipótese também da venda simulada (CC, art. 102) ou fraudatória de direitos (CC, art. 106); da apresentação de procuração falsa; da declaração de preço diverso do ajustado ou de estado civil que não é o real.  O notário não responderá por tais atos por não ter a função de verificar se as declarações das partes são verídicas ou não; deve tão somente observar a regularidade das formas exteriores do ato.”

Sobre o mesmo tema:  RT 103/214.

Portanto, como se esclarece do entendimento da conceituada doutrinadora Maria Helena Diniz, é dever do tabelião/registrador observar a regularidade das formas exteriores do ato, porém, jamais poderá responder pelas declarações de vontade das partes, pois não é seu dever verificar a veracidade destas declarações. Se as partes comparecem ao Serviço Notarial ou de Registro munidas de documentos de identidades falsos, por exemplo, Notário ou Registrador, além de não ter como verificar a autenticidade destes documentos, não tem o dever funcional de verificar se os documentos declarados pelas partes são verdadeiros ou não. Vale ressaltar aqui que o tabelião e/ou registrador não tem atribuição de perito para avaliar se os documentos que lhe são apresentados para lavratura dos atos são verdadeiros ou não.

Colhe-se ainda, a seguinte lição do emérito professor CENEVIVA (1991, p. 56/57) em seus comentários à Lei de Registros Públicos: “Causação pelo titular ou preposto – O delegado responde pela qualidade e pelo defeito do ato praticado no exercício de sua função. Defeito causador de prejuízo gera encargo de o reparar. A responsabilidade se estende a todas as ações danosas desenvolvidas por seus empregados. Dano é o efetivamente sofrido e provado. São elementos de sua aferição:

a)        relação de causa e efeito entre o prejuízo e a ação ou omissão do delegado do Poder Público.

b) Existência de prejuízo material ou moral;

c) Dolo (vontade de praticar ilicitude) ou culpa (violação do dever jurídico e legal de atuar com diligência, prudência e perícia compatível com as qualidades profissionais exigidas) do agente.”

Prossegue o doutrinador: “A jurisprudência brasileira teve, durante muitos anos, variações sensíveis, até ser consolidada na Súmula 341 do STF, que afirmou presumida a culpa do patrão (preponente) pelos atos ilícitos de seu empregado(preposto). Mas aí a doutrina e a jurisprudência são tradicionalistas: se o empregado não agiu com culpa, seu patrão não pode ser inculpado. Para que seja, são exigidos três pressupostos:

a) a culpa do agente;

b)sua relação de dependência com o proponente;

c)provocação do ato danoso no exercício do trabalho;”

Já em sua obra Lei dos Notários e dos Registradores Comentada, CENEVIVA (1996, p. 115), cristalina o tema:

“As teorias sobre a responsabilização dos agentes de ilícitos civis fazem outra distinção entre responsabilidade objetiva (baseada no risco) e a subjetiva (baseada na culpa ou no dolo). A responsabilidade do Estado por atos ou fatos de seus agentes ou servidores é objetiva, isto é, decorre da própria atividade estatal. Caracteriza-se, desde que ocorrido o dano e estabelecida a relação de causa e efeito entre o ato do agente ou servidor público e seu resultado. Na responsabilidade subjetiva, a vítima tem de provar que o prejuízo resultou de culpa ou dolo do agente, ou seja, se este atuou com imperícia, negligência ou imprudência, ou, ainda, se quis o resultado ilícito.”

E, na página 118, ressalta que: “Deve ser estabelecido o nexo de causa e efeito entre atos cometidos por lei ao serviço notarial, ou de registro, e o dano sofrido.”

É neste sentido que o ilustre Professor e Conferencista de Direito Notarial e Registral, ERPEN (1999b), digníssimo ex-desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, publicou parecer sobre o tema, assim discorrendo:

“Não consigo encontrar supedâneo jurídico para responsabilizar o Notário ou o Registrador que agiu rigorosamente dentro do estrito dever legal, em cumprindo a lei ou ato normativo superior, e se seu ato vier a causar prejuízo a outrem. Ele não responde pelas falhas do sistema que ele não erigiu. Quando ele assumiu sua função, prestou juramento de cumprir a lei e as normas emanadas por seus superiores. Pelo seu fiel cumprimento não pode responder por eventual lesão causada a outrem. A prevalecer a tese da responsabilidade objetiva da atividade, chegaríamos a este extremo. Deve-se perquirir, caso a caso, se a falha adveio em razão do mau desempenho ou da falta de cuidados. Isso importa em presumir o dolo ou a culpa (imperícia, imprudência ou negligência). E quando se aplica a responsabilidade objetiva, tal exame inexiste. Como na responsabilidade objetiva não se analisa, para fins de incidência, se houve má programação ou má execução dos serviços, os Notários e Registradores, no caso de ausência do elemento subjetivo na fase de execução, seriam responsabilizados pela má programação dos serviços, e na qual não intervieram. E para qualificar os serviços, o único vetor é a lei ( por extensão os atos normativos que se inspiram nela). Se proclamarmos que inexiste responsabilidade pelas falhas do sistema, mas somente pela má execução da atividade, estaremos afastando a teoria objetiva ( ou do risco)”.

Já o doutrinador VENOSA (2007, p. 259) ensina que:

“Embora o notário exerça serviço de natureza especial e os serviços notariais apontados sejam desempenhados em caráter privado, cuidam-se de serviços públicos delegados, como tanto outros existentes. Os cartorários são detentores de cargos públicos e, portanto, funcionários em sentido amplo. Nesse prisma, o Estado responde objetivamente pelo dano causado por esses serviços como, por exemplo, reconhecimento falso de firma, procuração ou escritura falsa. A responsabilidade emergirá quando o notário causar um dano a seus clientes, quando o fim colimado pelo serviço não for devidamente atingido ou quando houver vício. Leva-se em conta, em princípio, a falha do serviço público. Nesse sentido, é ampla a responsabilidade do notário, cuja repercussão deve ser analisada no caso concreto. Em princípio a ação indenizatória deve ser dirigida contra o Estado, embora entenda parte da doutrina que a ação pode também ser direcionada diretamente contra o notário, hipótese em que o autor deve provar culpa ou dolo, porque a responsabilidade objetiva é somente do Estado nessa hipótese.

Já RIZZARDO (2007, p. 394) enfatiza: “Se o exercício da delegação em caráter privado não descaracteriza os notários e registradores como servidores públicos, ipso facto, o Estado continua solidariamente responsável pelos seus atos, contra os quais caberá ação regressiva nos casos de culpa ou dolo”.

Ainda, o ex-desembargador ERPEN (1999b, p. 3-6) ensina que “o parágrafo 6º do art. 37 da CF não se aplica a notários e registradores porque as atividades por si desempenhadas não constituem serviço público de ordem material da Administração Direta ou Indireta, mas se trata de atividade pública atípica, com regramento próprio, balizado pelo art. 236 do Texto Constitucional, cujo parágrafo 1º remeteu à lei ordinária a regulação da disciplina da responsabilidade civil”.

Já MELO JUNIOR (1998, p. 172-173) destaca seu posicionamento pela responsabilidade subjetiva de notários e de registradores, in verbis:

A responsabilidade objetiva, decorre da Lei, é incompatível com a “personalização” da culpabilidade. Em outras palavras, a responsabilidade notarial só nasce havendo a relação de causalidade entre o dano e a ação ou omissão por ele (ou representante) dado causa. Ora, não pode haver sanção sem ato ou fato normado, nem norma sem fim (finalidade protetiva de determinado bem (valor) jurídico). Se a responsabilidade depende de causa, e a causa depende da prova da ação ou omissão, dolosa ou culposa, do agente, é obvia a conclusão que só há falar em responder quem desencadeou o prejuízo. Em prejuízo que não há autor, como se responsabilizar? Esse raciocínio encaixar-se-ia ao art. 22, da nossa Lei 8.935/1994. Por que o discrimine de o preposto, porventura causador do gravame que enseja a responsabilidade, responder somente em caso de dolo ou culpa, e o notário, ao contrário, responder, sic et simpliciter, objetivamente, pela só condição de deter a titulatura da delegação. Por fim (…) o notário não é Estado, é agente, e como tal, não responde objetivamente por danos.

Mesmo diante dos argumentos supramencionados, encontramos adeptos da corrente objetiva, que defendem a seguinte tese: caso o Estado prestasse diretamente os serviços notariais e de registro, a responsabilidade seria objetiva; logo, a responsabilidade dos agentes delegados dever ser igualmente, objetiva.

Contudo, ouso discordar de tal assertiva. Tratam-se de responsabilidades distintas. Tanto é que, que o Estado, em situações análogas, em que deve certificar, dar publicidade e segurança jurídica a certos atos – como, por exemplo, no caso dos dados contidos em cadastros veiculares nos respectivos Detran’s que integram a Administração Pública – sequer é chamado a responder pelo prejuízo experimentado por cidadãos que se pautam nas informações prestadas pelos Detran’s, demonstrando que é da natureza das atividades notariais e de registro a responsabilidade subjetiva.

O registrador público BENÍCIO (2005, p. 275) ensina que, “nas hipóteses de prejuízos decorrentes de atos notariais e de registro, valerá a regra da responsabilização por atos omissivos na prestação de serviços públicos, em que o método de aferição do dever de ressarcir é, via de regra, o subjetivo. O notário e o registrador só devem ser responsabilizados caso seja provada a culpa ou dolo, na atividade de sua serventia”.

Outro critério que pode ser analisado para apuração da responsabilidade de notários e registradores é o disposto no parágrafo único do artigo 927 da Lei 10.406/2002 (Novo Código Civil), in verbis: ” Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repara-lo. Parágrafo único: Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

Verifica-se que o disposto contido no parágrafo único do mencionado art. 927 abriu a possibilidade de se reconhecer à responsabilidade civil sem a apuração da culpa em duas situações distintas: a) nos casos especificados em lei; b) quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

No caso de notários e registradores, verificamos que as leis que regem a matéria não tratam especificamente da responsabilidade objetiva, tanto é que o artigo 28 e 157 da Lei 6.015/1973 e o artigo 38 da Lei 9.492/1997 referem-se, respectivamente, às responsabilidades de registradores de títulos e documentos e a tabeliães de protesto, ambas fundadas na comprovação de culpa ou dolo do agente causador do prejuízo.

Vale neste caso comentar que o legislador define na Lei 8.935/1994 quem são os delegados de serviços notariais e de registro e suas atribuições.  Portanto indaga-se: Quis o legislador, ao definir que registradores de títulos e documentos e tabeliães de protestos só podem ser responsabilizados se for comprovada a culpa ou dolo do agente causador do prejuízo, diferenciar estes profissionais do registrador civil, imobiliário e do tabelião de notas? Entendo que não, pois todos têm a mesma natureza jurídica, sendo inconstitucional não manter uma isonomia entre os delegatários da atividade notarial e registral.

Resta, então, perquirir se a segunda hipótese de responsabilidade objetiva, fundada no risco e prevista na parte final do parágrafo único do mencionado art. 927, alcança a atividade de notários e registradores.

Contudo, serviços de notas e de registro não constituem atividade perigosa, portanto, não se aplica na espécie, a norma contida no parágrafo único do art. 927 do CC. Ademais, o Código Civil é lei geral que não tem o condão de revogar as normas específicas contidas na Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973, arts. 28 e 157) e na Lei de Protestos de Títulos (Lei 9.492/1997, art. 38), que estabelecem a responsabilidade fundada na culpa latu sensu, ou seja, a necessidade de participação volitiva (por culpa ou dolo) do notário ou registrador no resultado lesivo.

Podemos ainda definir que, caso se impute a notários e registradores responsabilidade objetiva, estar-se-á colocando as atividades desempenhadas por estes profissionais em perigosa faixa de deveres jurídicos e, caso venha a prevalecer este equívoco, poder-se-á inviabilizar a prestação desses relevantes serviços públicos.

Colhe-se, por exemplo, decisão recente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Apelação Cível n. 2007.008413-1, de Balneário Camboriú, sob a relatoria do Desembargador Fernando Carioni, que assim se posicionou neste recurso:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – ATO NOTARIAL – RESPONSABILIDADE OBJETIVA – LAVRATURA DE PROCURAÇÃO FALSA POR TABELIÃO – COMPRA E VENDA DE IMÓVEL – OUTORGANTE E OUTORGADO FALSÁRIOS – DESFAZIMENTO DO NEGÓCIO PELO VERDADEIRO PROPRIETÁRIO – PREJUÍZO DO ADQUIRENTE  DE  BOA-FÉ – DESÍDIA DO NOTÁRIO VERIFICADA – NEGLIGÊNCIA SOBRE A VERACIDADE DOS DOCUMENTOS DE IDENTIFICAÇÃO  – ATO ILÍCITO CARACTERIZADO – DEVER DE INDENIZAR – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO

“A teor do que dispõe o art. 37, § 6º, da CRFB as pessoas jurídicas de direito público e as pessoas jurídica de direito privado que prestam serviços públicos respondem objetivamente pelos danos que seus agentes – entre eles os notários e registradores – causem a terceiros no exercício da função”  (TJSC, Des. Volnei Carlin).

Responde pelos prejuízos causados o notário que não procede a verificação da veracidade dos documentos e das informações que lhe foram prestadas, lavrando, em conseqüência, mandato falso que deu origem a compra e venda de imóvel, já que permitiu que falsário agisse como mandatário do legítimo proprietário.

Do teor do referido acórdão, importante destacar o entendimento do referido magistrado, que assim se posiciona: “(…)De início, cabe consignar que existe uma grande divergência entre a doutrina e a jurisprudência a respeito da responsabilidade objetiva ou subjetiva nos casos de indenização proposta diretamente contra o notário, diversamente quando a ação é ajuizada contra o Estado, a qual prevalece a primeira. Todavia, afigura-se, mesmo nesse caso, a teoria da responsabilização civil objetiva ao notário pelos danos advindos por ato de seus agentes, sem a necessidade de comprovação de culpa ou dolo, uma vez que pela regra do § 6º do art. 37 da Constituição Federal, é equiparada a pessoa de direito privado prestadora de serviço público à pessoa jurídica de direito público”. 

E complementa: (…)No presente caso, independente do laudo pericial de fls. 174 e 175, realizado no inquérito policial, vislumbra-se inequívoco ao juízo a falsidade da assinatura de José Alves dos Santos na procuração de fl. 10 e no compromisso particular de compra e venda de fl. 8, uma vez que, sem necessidade de maiores conhecimentos técnicos, diverge da firma reconhecida no 1º Tabelionato de Balneário Camboriú. Outro ponto a destacar é a própria dissonância verificada  entre as assinaturas de José Alves dos Santos nos instrumentos mencionados, haja vista que, a princípio, firmadas na mesma data (20-4-95), apresentam-se com estilo gráfico-visual diferente, o que evidencia um indício de falsidade que deveria ter sido observado pelo tabelião. Percebe-se, ainda, fato mais gravoso que soma a desídia do notário, o número do documento de identidade que consta na procuração mencionada como de José Alves dos Santos (RG 7.412.986-SP) quando, em verdade, conforme pesquisa da autoridade policial, é do Sr. Isvaldyr de Jesus Teixeira (fl. 33). Ora, o próprio apelante é sabedor consoante as razões do recurso à fl. 222 que lhe cabia conferir a identidade, capacidade e representação das partes, nos termos do art. 378, XIV, do Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de Santa Catarina, hoje com redação no art. 546, XII, o que definitivamente não ocorreu. Assim, verifica-se a concorrência do notário a produção do evento danoso, porquanto descumpriu seu dever de verificar a veracidade dos documentos e das informações que lhe foram apresentadas.

Primeiramente, ao analisar o corpo do acórdão acima transcrito, verificamos que o próprio magistrado reconhece que existe grande divergência jurisprudencial e doutrinária sobre a definição da responsabilidade civil de notários e registradores. Por outro lado, o mesmo enquadra estes profissionais no parágrafo 6o do artigo 37 da Constituição Federal, enquanto o próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu que estes profissionais não exercem atividade pública de cargo efetivo, ou seja, a natureza jurídica da atividade não pode ser equiparada as pessoas jurídicas de direito público e de direito privado que prestam serviços públicos.

Desta forma, em que pese o entendimento do respeitável magistrado, a responsabilidade de notários e registradores em face da análise constitucional do STF é a subjetiva, não podendo ser enquadrada como objetiva.

Além deste fato, demonstra-se preocupante a interpretação do magistrado com relação à análise da conduta do tabelião na verificação dos documentos que lhe foram apresentados, perpetuando a insegurança jurídica a que estão sujeitos os delagatários dos serviços extrajudiciais, pois pela visão do ilustre magistrado, o notário agiu desidiosamente ao não investigar a veracidade dos documentos que lhe foram apresentados, irregularidade esta que somente restou demonstrada nos autos do referido processo após analise pericial, em que ficou comprovado que os números da identidade da parte prejudicada não são os mesmos que constam do ato lavrado pelo tabelião e, portanto, considerou o magistrado que este indício de falsidade não foi observado pelo tabelião.

Diante do exposto, em que pese o posicionamento do magistrado, resta demonstrado a visão anacrônica que alguns membros do judiciário possuem sobre a atividade extrajudicial, pois o tabelião não é perito, não tem função técnica para analisar documentos falsos ou verdadeiros que lhe são apresentados. Na orientação normativa a que estão obrigados a cumprir, está claro que cabe ao titular verificar e conferir a identidade das partes, conforme documentos que lhe são apresentados, mas  este profissional não tem condições e nem obrigação técnica de auferir se o documento de identificação é verdadeiro ou está maculado por ação de um falsário.

Ora, considerar como desidiosa a ação do Tabelião, tendo em vista que o número de identidade que consta na procuração, que lhe foi apresentado pela parte para lavratura da procuração, não confere com o número da identidade do verdadeiro prejudicado (fato este constatado somente nos autos do inquérito policial)  denota claramente a visão absurda do magistrado sobre a referida questão, pois o tabelião não possui condições técnicas, muito menos obrigação normativa, de certificar que o número constante da identidade que lhe é apresentada não é o mesmo da identidade verdadeira (que condições tem o tabelião de verificar este fato?) e, portanto, não pode jamais ser responsabilizado, sendo sua ação considerada desidiosa, não podendo ser configurada sua culpa na presente questão, configurando a injustiça que se pode cometer contra estes profissionais.

Portanto, causa tamanha insegurança a estes profissionais que a responsabilidade sobre seus atos seja analisada sob este prisma, sem conhecimento técnico e prático da atividade. Como pode o tabelião ser responsabilizado objetivamente pela lavratura de um ato cujo documento que lhe foi apresentado pela parte, até segunda ordem, contém todas as características de um documento autentico e verdadeiro? 

Da mesma forma, pode o magistrado ser responsabilizado se uma pessoa lhe apresentada uma identidade falsa, com todas as características de autenticidade e comparece em audiência, firmando acordo e, conseqüentemente causando prejuízos a terceiro?  Entendo que não! Em ambos os casos apresentados, nem tabelião, nem magistrado agem com desídia, mas são sim induzidos a erro pela ação de pessoas de má-fé. Tabelião e Magistrado não são peritos, não tem obrigação e conhecimento técnico e cientifico para auferir se o documento que lhe foi apresentado é verdadeiro ou falso.

Portanto, são questões que devem ser criteriosamente analisadas pelo Judiciário, sob pena de se causar insegurança jurídica na prestação dos serviços extrajudiciais e, conseqüentemente, grandes injustiças aos titulares destes serviços, que podem ser induzidos a erro por falsários, assim como os próprios magistrados ou qualquer cidadão comum.

Por outro lado, o mesmo Tribunal de Justiça Catarinense, ao analisar questão idêntica, na Apelação Cível n. 1998.009447-0, da Capital, sob a relatoria do Desembargador Luiz Cézar Medeiros, assim se posicionou:

CIVIL – COMPRA E VENDA DE IMÓVEL – LAVRATURA DE PROCURAÇÃO FALSA – TABELIÃO – RESPONSABILIDADE SUBJETIVA – INOCORRÊNCIA

    1. A natureza estatal das atividades a cargo dos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais, exercidas em caráter privado, por delegação do Poder Público (CF, art. 236), autoriza a aplicação da responsabilidade objetiva do Estado pelos danos praticados a terceiros por esses servidores no exercício de tais funções, assegurado o direito de regresso contra o notário, nos casos de dolo ou culpa (CF, art. 37, § 6º) (STF, AgReg n. 209.354/PR, Min. Carlos Velloso).

    A aparência irretorquível de idoneidade dos documentos falsos utilizados para a lavratura de procuração, desde que observados todos os requisitos procedimentais previstos em lei para o ato notarial, afasta a responsabilidade do Tabelião e, por conseqüência, a aplicação do disposto no art. 22 da Lei n. 8.935/94.

E do corpo do acórdão, segue a manifestação sobre a atuação do tabelião: (…) b) Falta de cautela do Tabelião. A culpa do cartorário, em casos como este, a princípio, deve acompanhar as hipóteses de que alguma formalidade foi descumprida ou a falsidade da assinatura ou dos documentos era tão evidente que dispensava inclusive a realização de exame pericial. Se uma dessas hipóteses tivesse se configurado, poderia o servidor ser responsabilizado, e este cobrar de seu preposto, v.g. do escrevente, o valor da indenização devida.  A situação fática constante do presente caderno processual pode ser resumida nos seguintes tópicos: 1) o Tabelião lavrou Procuração Pública com base em documentos falsos trazidos pelos estelionatários que se fizeram passar por Marcos Anselmo Bernadelli e Marlene Alves Bernadelli; 2) o Tabelião atestou o conhecimento pessoal e conferiu as assinaturas com base nos dados constantes nas carteiras de identidade falsas.  Para o efeito de aferição da culpa impõe-se seja respondida a seguinte indagação: o Tabelião, ou quem o representou no ato, de alguma forma tinha como duvidar da identidade das pessoas que se apresentaram como proprietários dos imóveis? A prova produzida autoriza o convencimento de que a resposta é negativa. Com efeito, não há nada nos autos que autorize a suposição de que era possível perceber a falsificação dos documentos de identidade apresentados, sem que para isso fosse necessário um exame técnico mais detalhado.  Dos argumentos alinhados se conclui: a aparência irretorquível de idoneidade dos documentos falsos utilizados para a lavratura de procuração e posterior escritura pública de compra e venda, desde que observados todos os requisitos procedimentais previstos em lei para o ato notarial, afasta a responsabilidade do Tabelião e, por conseqüência, a aplicação do disposto no art. 22 da Lei n. 8.935/94. Da mesma forma, saliente-se que se cabia ao Tabelião verificar a identidade das partes presentes para a lavratura da procuração, à compradora incumbia a cautela de verificar a coincidência destas com os nomes constantes na Matrícula do Imóvel a fim de efetivar o negócio com maior segurança. Importante o destaque pois se colhe dos autos que o nome do proprietário constante no Registro de Imóveis é diverso daquele da Procuração Pública, o que torna discutível inclusive a assertiva de que foi a lavratura da falsa procuração que deu causa ao mau negócio, como no caso dos nomes coincidirem. Assim, o fato de os nomes não coincidirem não denota culpa do Tabelião.(…) Isto, pois, aliado ao fato de não terem restados comprovados a culpa ou o dolo do agente cartorário na lavratura da procuração posteriormente anulada, é suficiente para afastar seu dever de indenizar.

Desta decisão colhe-se o entendimento correto da necessidade de se analisar a atuação técnica do tabelião na pratica do ato invalidado. Este não pode ser responsabilizado se não deu causa a ilicitude, como no caso em questão, induzido ao erro por terem lhe apresentado identidades falsas, apesar de ter cumprido as normas que são atinentes ao seu mister. Resta evidenciado que a demonstração de que agiu com culpa ou dolo é fundamental para perquirir a sua responsabilidade.

O doutrinador Rui Stoco, aliás, em brilhante artigo sobre o tema, denominado “Responsabilidade Civil dos Notários e Registradores (Comentários à Lei n. 8.935, de 18.11.94)”, in RT 714/53,  comenta: “a) Os Notários e Registradores, titulares de serventias extrajudiciais, sob a vigência da Lei 8.935/94, devem ser considerados “agentes públicos”, equiparados, pois aos servidores públicos típicos; b) O Pode Público responderá objetivamente pelos danos que os titulares das serventias extrajudiciais, enumerados no art. 5o da Lei n. 8935/94, ou seus prepostos, nessa qualidade causarem a terceiros; c) Nos termos do art. 22 dessa lei e do art. 6o, do art. 37 da CF/88, os Notários e Registradores responderão, por via de regresso, perante o Poder Público, pelos danos que eles e seus prepostos causarem a terceiros, nos casos de dolo ou culpa, assegurando-se-lhes o direito de ação regressiva em face do funcionário causador direto do prejuízo; d) Nada impede, contudo, que o prejudicado ajuíze a ação diretamente contra o titular do cartório, desde que se disponha a provar-lhe a culpa (lato sensu), pos que, contra o Estado, tal seria dispensado, bastando a demonstração do nexo de causalidade e do dano.”

Neste sentido, temos a decisão do próprio Tribunal de Santa Catarina, na Apelação Cível n. 98.007746-0, da Capital, sob a relatoria do desembargador Carlos Prudêncio, que assim decidiu:

INDENIZAÇÃO. REGISTRO. ATO NOTARIAL REALIZADO MEDIANTE DOCUMENTO FALSO. AÇÃO PROPOSTA CONTRA O TABELIÃO. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DA CULPA. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA.

A par do contido no art. 22 da Lei n. 8.935/94 e art. 37, parágrafo 6o da CF, os notários e registradores responderão regressivamente pelos danos causados a terceiros, nos casos de dolo ou culpa, restando objetiva, tão somente, a responsabilidade do Poder Público. Se a parte intenta a demanda ressarcitória unicamente contra o titular do Cartório, resta-lhes o ônus de comprovar a culpa deste.

No mesmo sentido, decisão recente do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação Cível com Revisão n. 454.040-4/3-00, de Guarujá, julgada em 13 de setembro de 2006, sob a relatoria do Desembargador Elcio Trujillo, também corrobora este entendimento:

“ILEGITIMIDADE PASSIVA – Serviço notarial e registral – Delegação pelo Estado – Responsabilidade objetiva do Estado e de natureza subjetiva do Delegado do serviço – Circunstância, todavia, limitada no tempo, isto é, que se dá em relação ao delegado, a contar da nomeação e início de exercício da atividade – Ausência de sucessão – Responsabilidade, portanto, restrita, ao longo do tempo não prescrito, ao Estado e, de mesma forma, em relação ao delegado em exercício na data dos fatos que deram causa ao prejuízo, ainda que cessada a delegação –  Ilegitimidade, portanto, presente em relação ao delegado de exercício em tempo diverso – Sentença mantida – RECURSO NÃO PROVIDO.

Colhe-se do corpo do acórdão referido os seguintes comentários: (…)Na circunstância, sob outro prisma, tem-se, de igual modo que o delegado também reponde pela indenização; entretanto, em situação diversa pois cumpre a demonstração da falta e sua relação nas modalidades já apontadas, isto é, em caráter subjetivo. Portanto, pode a parte vítima optar, segundo reiteradas manifestações junto a jurisprudência, por acionar apenas o delegado do serviço ou, diretamente, o Estado cumprindo, todavia, diante da diversidade da responsabilidade, fazer direta prova da culpa ou dolo ou apenas a existência de nexo. Assim, da análise de todos os fatores a envolver a natureza do serviço e, também, da delegação, tenho que a responsabilidade prevista na Constituição (art. 37, parágrafo 6o), destina-se às pessoas jurídicas de direito público e privado e não às pessoas físicas prestadoras de serviços públicos – caso do serviço delegado ora analisado – sendo que não haverá reconhecimento de responsabilidade objetiva se não existir expressa previsão legal, permitindo a conclusão de que a responsabilidade dos notários e registradores é subjetiva-direta, conforme previsto pelas Leis n. 6.015/73, 8.935/94 e 9.492/97.”

Ademais, reforçando a tese da responsabilidade subjetiva do tabelião, encontramos também junto ao tribunal paulista decisão em Apelação Cível n. 170.183-5-9, de Santos, sob a relatoria do Desembargador  Ricardo Dip, que no transcorrer do acórdão assim se manifestou: (…) Dessa maneira, os prejudicados por danos originários de atos dos notários, registradores ou seus prepostos podem eleger a via da reparação contra o Poder Público ou a trilha da responsabilização subjetiva, provando culpa ou dolo contra o delegado. E ao Poder Público assegura a norma constitucional direito de regresso contra o responsável, por igual com prova de dolo ou culpa. A eleição, pelos legitimados, de um ou outro desses caminhos judiciais e, simultaneamente, electa uma via non datum regressus ad alteram submete-se a freqüente influência da realidade ultratextual: ao passo em que, de um lado, o ônus da prova do dolo ou da culpa empecilha um tanto o direcionamento da ação contra o notário ou o registrador, em contrapartida, de outro lado, a antevisão do precatório amesquinha o recurso à ação contra a Fazenda.

Portanto, o fato de não haver sido reiterada a questão da comprovação da culpa ou dolo na redação na Lei 8.935/94, em absoluto, faz crer que houvesse sido alterado o regime jurídico da responsabilidade. O novo regramento constitucional não veio para agravar a posição dos titulares dos serviços notariais e de registro, nem para o Estado se desonerar dela, transferindo-a para o delegado. Para haver a responsabilidade civil, há que haver o dano, o nexo causal e o ato falho consistente no dolo ou na culpa do Notário ou Registrador.


 

Otávio Guilherme Margarida – Tabelião de Notas e Protesto – Mafra(SC)

 

Fonte: Anoreg BR