Artigo – Um novo regime de bens e a cidadania registral

O que sucede quando temos a criação jurisprudencial de um novo regime patrimonial de bens, destinado aos casados na faixa etária dos 70 anos, diverso ao já existente, sem uma previsão legislativa no rol dos regimes de bens conferidos no Código Civil?

E quando essa criação pretoriana decorre, agora, de uma moderna interpretação dada à Súmula 377 do STF, por decisão judicial do Superior Tribunal de Justiça, afastando a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento, salvo prova de esforço comum; o anterior regime sumular de bens dos casais que contraíram núpcias, ao tempo do seu pleno e pacífico entendimento, continua hígido e eficaz?

Haverá ou não um direito adquirido à jurisprudência quando o princípio da confiança nos precedentes deve (ou deveria) ser aplicado em garantia absoluta dos jurisdicionados sexagenários da época?

Será também possível, noutro giro, diante da recente posição do STJ, os novos casais da faixa pactuarem livremente. em ordem de tornar suscetível um tratamento diferenciado ao julgado? Ou seja, poderão eles atribuir no regime de separação legal receberem, no curso da união, bens de patrimônio comum, por uma previsão convencional da presunção do esforço, ditando essa convenção por respeito mútuo?

E, lado outro, quando a Lei nº 12.344, de 09/12/2010, está a completar exatamente dez anos de sua edição, com a mudança do inciso II do artigo 1.641 do Código Civil, aumentando para 70 anos a idade a partir da qual se torna obrigatório o regime da separação de bens no casamento, como tratá-la, diante do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003, artigo 4º) segundo o qual “nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de discriminação”?

Reconhecida a prevalência da lei especial sobre a norma geral, pelo princípio da especialidade, e que o Estatuto do Idoso, como lei especial [1] predomina em relação ao Código Civil, de abrangência geral, a resposta a esse aparente conflito normativo está pronta, de há muito, e precisa logo ser prestada.

Essas questões ganham maior e urgente relevo jurídico diante da cidadania registral quando aponta-se que os Ofícios do Registro Civil são, em toda a sua efetividade de serviços, considerados Ofícios de Cidadania (Lei nº 13.484, de 26/9/2017), indicando-se a redação do parágrafo 3º, 1ª parte, do artigo trazido à Lei nº 6.015/73

De efeito, avoca-se, urgente, a necessidade, como solução de lege ferenda, de uma nova redação ao artigo 1.528 do Código Civil, para os fins de desburocratizar o pacto antenupcial e, mais ainda de desjudicializar a alteração consensual dos regimes de bens, em ordem de apresentar as devidas respostas a esses questionamentos.

A análise que aqui se pretende exposta envolve questões macro de cidadania registral civil, sob a égide de um exercício desburocratizante à efetividade da dignidade da pessoa, em todas as suas realidades existenciais, onde o registro civil de pessoas naturais é o locus decisivo, o lugar mais especifico (e natural). Vejamos:

1) A escolha do regime de bens
Comecemos pelo tema de abertura, a partir da vida do casal que, no pórtico de sua conjugalidade ou de sua convivencialidade, deve definir, conscientemente, o regime patrimonial dos seus bens ou que mais adiante, adquire e exercita a percepção da melhor conveniência de sua alteração. Essa atualmente apenas prevista por via judicial, nos termos do artigo artigo 1.639 do Código Civil, com o manejo da ação prevista no artigo 734 do Novo Código de Processo Civil

Pois bem. Impende uma primeira reflexão sobre a atual Súmula 377 do STF e revisitada, substancialmente, pelo Superior Tribunal de Justiça.

Doutrina e jurisprudência sempre caminharam no sentido de reconhecer que para efeito de aplicação da Sumula 377 do STF não se exige prova do esforço comum. Mais precisamente, expressa a Súmula:

“No regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.

Essa mitigação dos efeitos da separação legal de bens, quando reconheceu o STF que se comunicam os bens adquiridos na constância do casamento das pessoas que se casem quando ultrapassada a faixa etária, à época, dos 70 anos, se acha consolidada desde 3/4/1962. É a data da edição do referido verbete sumular nº 377-STF.

Desde então, assim vinha sendo:

1) O regime é o de separação legal de bens, mas o esforço comum do casal (agora septuagenário) recolhe os bens advindos durante o casamento para efeito de representar situação equipotente ao do regime de comunhão parcial de bens; dominante, sem quaisquer ressalvas, seja no casamento ou na união estável;

2) O regime parcial é aquele básico, em que o esforço comum na obtenção dos bens se torna presumido, pela convivência do casal na formação de um novo patrimônio adquirido no curso da união;

3) “A cautela imposta (separação obrigatória de bens) tem por objetivo proteger o patrimônio anterior, não abrangendo, portanto, aquele obtido a partir da união” (REsp. 736.627).

Diante disso, observa-se que os casais septuagenários, à falta de devida informação dos efeitos da Súmula 377 do STF, se supunham casados sob o regime de uma absoluta separação obrigatória dos seus bens, bens existentes antes e os existentes ao depois; não se comunicando, portanto, os seus respectivos patrimônios.

Entretanto, a leitura da antiga súmula, diante do artigo 259 do Código Civil/1916 quando competia à Suprema Corte interpretá-lo, era exatamente o contrário do que imaginava o livre pensar daqueles casais.

De tal modo que somente uma vez devidamente ciente do vínculo sumular que lhe afeta poderia optar o casal pela incomunicabilidade plena dos seus bens ou, consensualmente, pactuar pela não incidência da Súmula 377, tudo à hipótese de sua planejada e desejada união para um regime patrimonial diferenciado.

Eis que seguiu-se de nossa iniciativa, quando em exercício na Corregedoria-Geral de Justiça de Pernambuco, a edição do Provimento nº 08/2006, de 30 de maio de 2006, segundo o qual os nubentes atingidos pelo artigo 1.641, II, CC, poderiam afastar por escritura pública a incidência da súmula, “estipulando nesse ponto e na forma do que dispõe o artigo 1.639 do Código Civil, quanto aos seus bens futuros, o que melhor lhes aprouver”.

Ocorre, porém, que tudo agora muda com a decisão paradigma do Superior Tribunal de Justiça por sua 2ª Seção, em julgamento de embargos de divergência no Recurso Especial nº 1.623,858, de 23/5/2018, quando o relator ministro Lázaro Magalhães assim ementou”

“No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para a sua aquisição”.

Até então, entre as turmas do STJ e entre estas e a 2ª Seção, profundas divergências situavam-se, a saber sobre os bens adquiridos onerosamente durante a união sexagenária, no tocante à essa referida cláusula do fato- esforço. Mais ainda, sobre a caducidade da súmula, editada quando a Suprema Corte decidia em última instância acerca da interpretação de lei federal.

Em outras palavras, não cabendo, por óbvio, ser exigível uma prova exclusiva de contribuição material à formação do patrimônio, porquanto se apresenta crível que o esforço comum dar-se-á por formas imateriais ou não econômicas, ter-se-á, doravante, duas naturezas de um esforço concorrente como elemento de composição ao patrimônio:

1) O esforço presumido, na linha dos regimes básicos do casamento (artigo 1.658, CC) e da união estável (artigo 1.725, CC)

2) O esforço provado, para os casamentos de separação legal obrigatória de bens, na nova linha interpretativa do STJ que se convencionou denominar de “modernização da Súmula 377”

Para essa última, a cláusula geral de “comunhão plena de vida”, como norma-princípio que remete as relações familiares a seus valores éticos e afetivos [2], existente entre os cônjuges (artigo 1.511 do Código Civil) não terá, assim, qualquer ou nenhuma influência a provar que houve, na formação do patrimônio, o esforço existencial do outro. Mitiga-se o princípio da intimidade espiritual do casal por razões estritamente econômicas, afastando-se o esforço comum presumido de um dos parceiros.

Posta essa primeira questão, diante das possíveis projeções dessa jurisprudência criando outro regime diferenciado de bens e que, apesar disso, poucos tem conhecimento, designadamente os próprios nubentes; revela-se, agora, de extrema necessidade uma nova redação ao artigo 1.528 do Código Civil.

O dispositivo determina, em sua segunda parte:

“1.528. É dever do oficial do registro esclarecer os nubentes a respeito dos fatos que podem ocasionar a invalidade do casamento, bem como sobre os diversos regimes de bens”.

Consabido que a escolha do regime de bens no casamento trata-se de um direito patrimonial, essencialmente disponível, vale referir indevida uma interferência estatal para regular essa relação privada, incidindo uma inconstitucionalidade manifesta.

De efeito, conferindo a lei o poder-dever de o oficial de registro contribuir para a livre opção dos nubentes sobre o sistema patrimonial de bens [3], nada justifica a mera limitação ao simples dever de esclarecimento, por ato do processo de habilitação ao casamento.

Essa consagração de dever ao oficial deve ser consolidada, em bom rigor, por mudança de lei, com nova redação ao artigo 1.528, CC; podendo ele recolher a manifestação de escolha de ambos os nubentes sobre o regime de bens por eles preferido, sem maiores formalidades, com a dispensa de prévia escritura pública prevista pelo atual artigo 1.653 do Código Civil.

Tal relevante atribuição tem consonância com a mais forte tendência atual de desburocratização instituidora de uma nova cidadania registral, a tanto que o PL nº 9.499/2018 simplifica o processo de habilitação ao casamento, alterando o artigo 1.526 do Código Civil e o artigo 67 da Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), e o PL nº 9.497/2018 altera o artigo 50 da lei registral no fim de remessa de dados ao cartório da residência dos genitores nos nascimentos registrados via unidades interligadas de registro civil.

2) A alteração do regime de bens
Com a mesma identidade de razões, impõe-se, igualmente, a desburocratização da alteração do regime patrimonial de bens, no curso do casamento, a depender, ainda, de judicialização do pedido e da autorização judicial (artigo 1.639, §2º, CC), quando é desmedida a imposição legal de pedido motivado e de procedência das razões invocadas.

Dispensadas tais exigências excessivas, previstas no estatuto civil, tudo orienta como regra de experiência desburocratizante, que a referida alteração registral do regime de bens se proceda perante o oficial de registro civil, em que habilitado o casamento, operando-se por simples requerimento de manifestação da autonomia de vontade do casal.

Nada justifica que a pretendida alteração do regime de bens, ao tempo de sua desjudicialização, como pretende o PL nº 4849/2018, seja por escritura pública, com o emprego dado para nova redação ao parágrafo 2º do artigo 1.639 do Código Civil. A mesma mens legislatoris que autoriza a desjudicialização, dispensando provocação jurisdicional, mais legitima a desejada desburocratização destinando a providência ao oficial do registro civil onde, com trânsito muito mais rápido, poder-se-á proceder a alteração registral. A dispensa de uma prévia escritura pública a anteceder a averbação em registro civil afigura-se, assim, no mesmo patamar da cidadania registral almejada, desburocratizando o procedimento.

3) A desburocratização do pacto nupcial
Verificado que por nova redação de lege ferenda atribuída ao artigo 1.528 do Código Civil, tenha-se a definição de regime de bens de ser feita perante o registro civil, por opção informada e esclarecida à escolha de determinado regime, a escritura pública do pacto antenupcial apenas terá sentido objetivo para os fins de averbação em registro imobiliário, quando coubesse, enquanto suficiente um novo contrato escrito, nos fins de alterar o regime de bens na união estável (artigo 1.725).

Demais disso, não custa lembrar que o pacto nupcial como negócio jurídico de direito familista, com seu caráter volitivo inerente, não se destina exclusivo à definição do regime de bens, como leciona Fabiana Domingues Cardoso [4]. Cuide-se que a convenção deve servir como instrumento de prevenção de conflitos e por essa otimização deve ser prestigiado o pacto; devendo reger somente as relações extrapatrimoniais. As patrimoniais, no tocante ao regime de bens, reserve-se ao ofício de registro civil, lavrando-se maior eficiência nesse ponto, com menor onerosidade e tempo.

4) A cidadania registral em muitas vertentes

Inegável reconhecer que a cidadania registral na esfera do RGPN ganha, atualmente, maior densidade nas metas da desburocratização. Cumpre exemplificar, quanto bastante:

1) O divórcio unilateral, cujo direito potestativo da parte não admite dissenso (salvo por discurso de ódio), estabelecedor da prevalência da autonomia da vontade da pessoa, objeto do PLS nº 3.457/2019, de autoria do senador Rodrigo Pacheco, e que serve à cidadania diretamente perante o registro civil e por cuja aprovação toda a sociedade anseia.

2) Uma nova dinâmica das alterações do nome, diante do pleno abandono de sua imutabilidade, tendo como instrumento mais recente o Provimento nº 82/CNJ, de 3/7/2019. Sugere-se novas medidas administrativas nessa diretriz. Designadamente a permitir a retomada do nome de solteiro por divorciados que não fizeram a opção de retorno à ocasião do divórcio (questão silenciada no provimento, que apenas autorizou a pessoa viúva, por ocasião do óbito — artigo 1º, §3º).

3) Uma tomada de decisão apoiada, a ser exercida perante o registro civil, como instituto de proteção à pessoa com deficiência (Lei nº 13.146/2015), dando, nesse passo, maior efetividade ao EPD.

A cidadania registral pede urgência. Quando o Direito, apropriando-se da vida melhor se realiza como um sentimento palpitante de realidade, e a pessoa situa-se, precisamente, em seu núcleo fundante, tudo combina em exatidão com essa cidadania registral, diretamente nos ofícios do registro civil.

 

[1] Exemplo: REsp. nº 775565/SP.

[2] ALVES, Jones Figueirêdo. Comunhão de vida. Web: http://www.impresso.diariodepernambuco.com.br/noticia/cadernos/mundo/2014/11/comunhao-de-vida.html.

[3] Bem ver que os aquestos se comunicam não importando que hajam sido ou não adquiridos com esforço comum. “Não se exige a prova do esforço comum para partilhar o patrimônio adquirido na constância da união”. (STJ – 3a Turma – Resp. 736.627 – Min. Carlos Alberto Menezes Direito).

[4] CARDOSO, Fabiana Domingues. Regime de Bens e Pacto Antenupcial. Prefácio Francisco José Cahali. São Paulo: GEN/Editora Método,2010, 294 p.

 

Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

 

Fonte: Conjur

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