Casamento. Alteração de regime de casamento. Casamento celebrado sob Código Civil de 1916

Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP.

VOTO Nº: 8920

APELAÇÃO Nº: 390.357-4/4-00
COMARCA: BIRIGUI – 4V
APELANTE: O.B E OUTRO
APELADO: A.V

Casamento – Alteração de regime de casamento – Casamento celebrado ao império do Código Civil de 1916 – Possibilidade de alteração de regime – Pedido juridicamente impossível – Indeferimento da inicial afastado – Recurso provido.

Trata-se de ação de modificação de regime de casamento, cuja inicial foi indeferida e a ação julgada extinta pela r. sentença de folhas, de relatório adotado.

Apelam os autores alegando, em resumo, que é possível o pedido de alteração de regime de casamento mesmo que este tenha sido celebrado ao império do Código Civil de 1916. Pedem a reforma da decisão.

Recurso com decisão de manutenção.

Preparo anotado.

É o relatório.

Os apelantes ajuizaram ação para modificação do regime de casamento celebrado ao império do Código Civil de 1916.

A r. sentença entendeu tratar-se de pedido juridicamente impossível e, por isso, indeferiu a inicial e julgou extinta ação sem apreciação do mérito.

O artigo 230 do CC/16 determinava a irrevogabilidade ou inalterabilidade do regime de bens do casamento. Já o artigo 1639, parágrafo segundo do CC/02 permite a alteração, dependente à satisfação de algumas condições, bem como a necessidade de autorização judicial.

Conquanto se possa argumentar que o Código Civil de 2002 somente se aplica para os casamentos que forem celebrados já sob sua vigência, impossibilitando assim que os casamentos celebrados na vigência do CC/1916 possam ter seu regime alterado, a melhor posição é, com a devida vênia, no sentido de que também estes casamentos se submetem, quanto a alteração do regime, às disposições do novo Código Civil.

Rolf Maleno em Direito de Família e o novo Código Civil, 3ª ed., 2003, ensina que:

“(…) o artigo 2.039 do Código Civil não autoriza deduzir que o artigo 230 do Código Civil de 1916 siga regulando os matrimônios celebrados ao seu tempo, como se meramente derrogado para os novos casamentos contraídos sob a égide do novo Código Civil. Nem há que ser falado em direito adquirido, dado que um novo sistema substituiu o anterior; há uma nova disciplina no campo da mutabilidade do regime de bens, em que o parágrafo segundo do artigo 1.639 do Código Civil de 2002 revogou o artigo 230 do Código de 1916.

(…) não podendo ser esquecido que inexiste direito adquirido num casamento com o regime de bens ainda em vigor, estando o acervo conjugal em estado de indivisão, ou incomunicável, tendo sido eleita a separação total de bens.

É que no casamento os bens só se comunicam e abandonam o seu estado latente de indivisão quando desfeitas as núpcias, aí sim incide o regime da comunicação ou da incomunicabilidade e indivisão. No entanto, os bens, quando partilháveis, só serão divididos depois de desfeito o matrimônio, pelo juiz, com a anulação, separação ou divórcio, ou pela natureza, pelo decesso do cônjuge, mas, até lá, paira apenas uma expectativa de direito, como se fosse um pré-acordo que deita sob um regime previamente escolhido, mas que a nova lei permite modificar enquanto não desfeitas as núpcias”.

Isso decorre de uma leitura mais atenta do mencionado dispositivo legal, eis que não veda a mutabilidade do regime, apenas dispõe que nos casamentos realizados na vigência do Código Civil anterior, o regime de bens é o por ele estabelecido.

Se houvesse real intenção do legislador em vedar a alteração do regime de bens nos casamentos realizados na vigência da lei anterior certamente teria utilizado uma redação mais precisa na elaboração da norma do artigo 2.039 do Código Civil, restringindo expressamente a aplicação do artigo 1.639, parágrafo segundo, do mesmo diploma legal, porém, isso não ocorreu, exigindo-se, para a alteração do regime de bens mediante autorização judicial, apenas o pedido motivado de ambos os cônjuges, desde que ressalvados os direitos de terceiros.

Nem se argumente que a aplicação da lei nova implicaria em violação ao artigo 6º da LICC, pois que há de se distinguir o casamento do regime de bens. O casamento realizado, não se discute, é um ato jurídico perfeito e acabado, no entanto, o regime de bens é um de seus efeitos, tanto que somente começa a vigorar depois da data do matrimônio. Assim, deve se subordinar à nova lei que autoriza sua alteração.

Há precedente desta Corte: Apelação Cível nº 320.566-4/0-00, rel. Des. Márcio Marcondes Machado, j. 8 de junho de 2004.

Traga-se a lição de Wilson de Souza Campos Batalha (“Direito intertemporal”. Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 261-262) onde ele concorda com Paul Roubier no respeitante a que o regime matrimonial subordina-se à legislação vigente à época do matrimônio, no que apresente de meramente contratual. Porém, diverge do emérito jurista francês no pertinente à mutabilidade do regime. Vale transcrever a lição:

“Entendemos, ao contrário, que têm efeito imediato as leis que estabelecem a mutabilidade ou a imutabilidade das convenções matrimoniais. Nenhuma razão sólida existe para diverso entendimento. Na hipótese de a lei nova estabelecer a mutabilidade do regime, não há motivo algum para inaplicar-se aos regimes em curso: se aos interessados era facultada inicialmente a eleição do regime aplicável, não se vê por que se lhes iria tolher a faculdade, que a lei nova, por hipótese, consagra, de, voluntariamente, alterarem o pacto inicial. Se ao contrário, a lei nova estabelece a imutabilidade do regime, não mais poderão ser modificados os regimes estabelecidos na vigência de lei que o permitia, por se deverem generalizar as razões que levaram o legislador a estabelecer a imutabilidade da convenção matrimonial; seria absurdo falar-se em direito adquirido à modificabilidade da convenção matrimonial. Cf. Faggella, op. cit., p. 347; Serpa Lopes, op. cit., vol. I, p. 344”.

Ora, se ao tempo do casamento era facultado aos nubentes escolher à vontade o regime de bens, ou seja, não era de interesse ou ordem pública que assim não fosse, não haveria nenhum motivo razoável para proibir alteração posterior, se a lei deixa de considerar como de interesse ou ordem pública a imutabilidade.

Maria Helena Diniz (“Comentários ao Código Civil. Coordenado por Antônio Junqueira de Azevedo”. São Paulo: Saraiva, 2003. vol. 22, p. 318-319.) vê, em princípio, o antes citado artigo 2.039 como obstáculo à mudança de regime. No entanto, conclui: “(…) nada obsta a que se aplique o artigo 1.639, parágrafo 2.º, do novo Código, excepcionalmente se o magistrado assim o entender, aplicando o artigo 5.º da LICC, para sanar lacuna axiológica que, provavelmente, se instauraria por gerar uma situação em que se teria a não correspondência da norma do Código Civil de 1916 com os valores vigentes na sociedade, acarretando injustiça”.

Importante destacar o trabalho de Sérgio Gischkow Pereira, in “O Direito de Família e o Novo Código Civil: Alguns Aspectos Polêmicos ou Inovadores” (RT 823/90).

Quanto à rigidez da imutabilidade do regime de bens, a jurisprudência pátria já a havia abrandado. A Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, é um exemplo, pois transforma o regime legal ou obrigatório da separação em regime de comunhão de bens adquiridos na constância do casamento: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.

Leciona Débora Gozzo que o princípio da imutabilidade do regime de bens também foi atenuado, em sua aparente rigidez, pelo artigo 45 da Lei 6.515/77, enquanto Zeno Veloso recorda algumas decisões do STF permitindo contratar no pacto antenupcial a mudança de regime de bens, adotada inicialmente para a comunhão universal no caso de nascer filho dos cônjuges (MADALENO, Rolf. Direito de família e o novo Código Civil. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 163).

No direito estrangeiro, inúmeras legislações admitem a modificação do regime de bens, por acordo de vontade das partes (Alemanha, Suíça) ou em virtude de sentença judicial, quando a má administração dos negócios pelo marido ameaça constituir perigo para o patrimônio conjugal (França).

De certa forma a revogação do princípio da imutabilidade do regime de bens é conseqüência direta da evolução dos tempos. Com a igualdade dos cônjuges e sem discriminação de sexo, o efeito é inevitável. Deixou de existir a fragilidade, ingenuidade e imaturidade entre os cônjuges. Ambos gozam de livre autonomia de vontade para decidirem o que é certo ou errado; se devem ou não pleitear a alteração do regime patrimonial de bens (Denise Willhelm Gonçalves, RT 819/11).

Por tais razões, é que se tem como juridicamente possível o pedido inicial devendo a ação ter seu curso normal.

Ante o exposto, dá-se provimento ao recurso para cassar a r. sentença de indeferimento da inicial, prosseguindo-se como de direito, recomendando-se a oitiva do casal em primeiro grau.

BERETTA DA SILVEIRA
Relator

Fonte: TJ-SP