A adoção por famílias homossexuais
Maura Angélica de Oliveira Ferreira, juíza de Direito da 1ª Vara Regional do Barreiro, especialista em Direito Público, doutoranda em Ciências Sociais e Jurídicas, professora no curso de Direito da Faculdade Metropolitana
Hoje, a adoção é totalmente regulada pelo Código Civil (CC) e podemos chamá-la de irrestrita, pois é irrevogável e estabelece vínculos absolutos de filiação entre o adotando e o adotante. Fora do CC ficaram só os casos de adoção por estrangeiros, ainda regidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Desprezaram todos os laços de consangüinidade, desvinculando-se, definitivamente, o adotado de sua família biológica, tornando-o, de forma absoluta, filho da nova família. Nada mais fez o legislador que cumprir as disposições do artigo 227 da Constituição da República de 1988.
Qualquer pessoa pode adotar isoladamente outra, bastando apenas ser maior de 18 anos e que entre ele e o adotando haja uma diferença de idade de 16 anos. A adoção só se processa por meio do Judiciário e, depois da sentença, ela se torna irrevogável, transformando o adotando em membro da família, como se biologicamente assim já o fosse. Em conseqüência, ele se torna parente não só dos adotantes, mas de todos os seus ascendentes, descendentes e colaterais, inclusive para efeitos sucessórios.
Com a existência de um Estado Democrático de Direito, a instituição “família” assumiu novos contornos: deixou de lado os valores que a constituíam e passou a se fundamentar nas relações de afeto, no interesse de vida comum, independendo até da existência de vida sexual, vez que já se admite reprodução da espécie sem sexo e sexo sem matrimônio, assim como existem pessoas ligadas pelo casamento e que optam por não ter prole, e filhos sem um dos pais.
Constatamos que o conceito de família modificou-se substancialmente. A regra não é mais a família formada por homem e mulher ligados pelo casamento e com filhos. Até mesmo a Constituição Federal cedeu a essa nova concepção de família quando criou a figura da “união estável” e concedeu o poder familiar àquele que estivesse no comando, e não ao pai de família tradicionalizado na figura do homem. Com a igualdade entre as pessoas e a proteção dos filhos até mesmo fora do casamento, este deixou de ser o pilar da família, que hoje é constituída pela união de pessoas ligadas pelo afeto, pela comunhão de vida e parceria.
Pautando-nos nessa orientação constitucional que igualou as pessoas, no princípio da dignidade da pessoa humana e daquele que proíbe qualquer discriminação, não podemos deixar de admitir que hoje existam famílias formadas por homossexuais. Porém, apesar desta evidência fática e social, as uniões entre pessoas do mesmo sexo ainda encontram resistência jurídica, que a mim se apresenta como um retrocesso sociocultural, um apego ao revogado CC, resquício de um patriarcado que não tem mais sentido.
Sendo a família constitucionalmente admitida como aquela formada pelo afeto, todas as uniões que visem à constituição de uma relação sólida, contínua e duradoura, permitindo aos seus componentes alcançar a realização pessoal, o crescimento individual, o desenvolvimento socioafetivo que os torne cidadãos melhores têm que ser admitidas como unidades familiares merecedoras da proteção estatal. Em face disso, filio-me à corrente daqueles que entendem já ser constitucionalmente protegida a união familiar entre pessoas do mesmo sexo, porque família é instrumento, e devemos proteger todas as formas de vínculos afetivos, mesmo aqueles não previstos expressamente em lei, mas que se identifiquem com o sistema constitucional.
Definido que a união entre pessoas do mesmo sexo, se presentes os requisitos da notoriedade, publicidade, coabitação e fidelidade, constitui-se em uma unidade familiar que merece receber a proteção do Estado, devemos indagar agora sobre a possibilidade de essa família homossexual adotar filhos. Quando falamos inicialmente sobre a adoção, enfatizamos o fato de que qualquer “pessoa” pode adotar. Demos ênfase à palavra pessoa porque, ilogicamente e de forma hipócrita, com preconceito, admite-se que um homossexual, isoladamente, adote um filho, mas não se permite que esse mesmo filho seja adotado também pelo parceiro sexual daquela mesma unidade familiar.
Puro preconceito, mascarado sob o manto de alguns segmentos sociais, que alertam para provável perigo de identificação entre o filho adotivo e o modelo do adotante, que por lealdade afetiva também se tornaria homossexual. Nada mais retrógrado e preconceituoso. Por menos conhecimento que tenhamos no ramo das ciências, sabemos que a criança se identifica com a função exercida pelos seus genitores, independentemente do sexo, ou seja, ela se identifica de forma masculina com aquele que exerce a função paterna e de forma feminina com quem exerça a função materna, não importando se quem as exerça seja do sexo masculino ou feminino.
A orientação sexual dos pais não é causa determinante no desenvolvimento da personalidade da criança. Será que todas as crianças educadas por famílias heterossexuais se tornam heterossexuais? Se assim fosse, de onde teriam surgido aquelas que posteriormente se decidiram pela homossexualidade? Há uma série de argumentos, sem fundamentos, a querer enfatizar a proibição da adoção por homossexuais, seja ela concomitante ou não. Chega-se até à ridícula argumentação de que não haveria como colocar no registro civil o nome de um homem como mãe ou de uma mulher como pai em caso de adoção concomitante. Nada mais fácil de resolver: bastava consignar no registro: “nome dos pais” ou “nome das mães”.
Muito mais séria do que tais discussões fúteis e discriminatórias é a situação de milhares de menores que moram nas ruas, abandonados em orfanatos ou qualquer outra instituição ou abrigo. Nenhuma instituição dessas, por mais estruturada que seja, pode oferecer aquilo que de fato necessita uma criança: amor e afeto, carinho e aconchego de família. Admitir-se a adoção por famílias homossexuais, com certeza ajudaria em muito a minimizar a questão do menor abandonado, que, com certeza passaria a ser educado com assistência material e intelectual, recebendo carga de amor, afetividade e carinho necessários e suficientes para se tornar um adulto saudável e produtivo como convém à sociedade e ao Estado.
Fonte: Jornal Estado de Minas – Caderno Direito e Justiça