Em decisão inédita no Rio Grande do Sul, mulher trans obtém direito de constar como mãe biológica

Quem vê Ágata Mostardeiro brincando com o filho Bento não consegue imaginar o quão difícil foi chegar a este estado de “vida normal”. A história da assessora comunitária certamente renderia um livro e, por isso, o DC compartilha agora alguns capítulos da jornada da primeira mulher trans do Estado a obter na Justiça o direito de constar como mãe, ao lado da ex-companheira, na certidão do filho.

Hoje com 2 anos e 8 meses, Bento nasceu no Hospital Universitário (HU) no dia 3 de agosto de 2018. “Planejamos a gestação, eu e minha companheira, e eu já tinha retificado meus documentos. Entrei no cartório para fazer o registro e me falaram que não teria como, que a criança teria que ter um pai”, recorda. Mas o pior ainda estava por vir. “Uma juíza fez a seguinte solicitação: eu precisaria ter um lado médico comprovando a minha genitália e que a minha ex-companheira fizesse um testemunho de vínculo biológico com a criança”, conta.

O então casal se negou a tal medida e, por isso, Ágata precisou temporariamente adotar o filho, constando como mãe socioafetiva. Mas isso fez até com que ela não conseguisse, em um primeiro momento, incluir Bento em seu plano de saúde. “Era um momento inacreditável. Tive bastante problema com a questão de achar que a minha existência estava prejudicando o Bento e acabei até me culpabilizando muitas vezes, mas hoje vejo que é um problema do não preparo da sociedade.”

As sucessivas ofensas vivenciadas por Ágata só tiveram fim no ano passado, quando Bento já tinha 2 aninhos: foi o primeiro registro no Rio Grande do Sul de mulher trans a ter o direito reconhecido de constar como mãe biológica. “O processo passava de uma vara para outra e parece que ninguém queria assumir a bronca, e foi se resolver somente dois anos e 15 dias depois do nascimento.”

Hoje, Ágata está em outro relacionamento – namora há seis meses Anderson Sodré, mas mantém uma boa relação com a ex-companheira, com quem divide a guarda e tudo que diz respeito ao pequeno. Apesar de todo mundo sentir os efeitos da pandemia, Ágata desfruta de uma vida tranquila em família, mas as marcas do tempo de batalha judicial ainda permanecem.

“É como se fosse um episódio que terminou e que terminou bem, mas são violências que não era pra gente ter passado. Eu achei que teria alguma dificuldade, mas não tanta. A resposta da juíza foi o que mais me surpreendeu. Foi uma violência”, comenta.

Quando se separou, ela ficava somente nos finais de semana com a criança. Depois, perceberam que o melhor para ele é passar uma semana com cada mãe, decidido em dezembro e que está dando certo, garante Ágata. “A gente conversa muito sobre a rotina dele e a gente chegou nesse acordo até por ver que para o Bento ficava muito tranquilo assim”, explica.

A transição de gênero

Ágata compartilhou com a reportagem que conheceu a ex-companheira antes de dar início à transição de gênero e que o casal já havia planejado ter um filho.

“Depois de conversar com ela sobre a minha vontade da transição e dos nossos sonhos, demorei para fazer a harmonização. Foi tudo passo a passo, planejado.” A coragem veio através da arte: “A palhaça foi um processo muito importante. Leva um tempo até a gente conseguir ter coragem de se colocar no mundo”.

Referência para outras famílias

Por protagonizar o pioneirismo de conquistar na Justiça um benefício que lhe cabe por direito, Ágata passou a ser referência para outras famílias.

“Casais me procuram quando estão planejando ter um filho, para saber se está mais fácil. Eu falo que vai ter que se armar, que vai ser um processo complicado. São nessas batalhas que a gente vai garantir direitos.”

Vida na pandemia e ação contra o Estado

Na vida com o filho, o que passou a ser diferente foi o fato de Bento estar afastado da creche devido à pandemia. Como o menininho fica uma semana com cada mãe, Ágata tem buscado trabalhar o máximo possível em casa. Ela também conta com Anderson nessa parte e comenta que o namorado e o filho se dão muito bem.

Questionada sobre o pequeno voltar às aulas quando for permitido, ela enfatiza que não acha seguro neste momento e que ninguém da família foi infectado. Por falar em creche, Ágata cita que tem tido experiências muito boas com relação à escolinha do filho: “Sempre fazem homenagem para nós duas no Dia das Mães e Dia dos Pais”.

A luta para ser mãe na certidão fez Ágata entrar com processo contra o Estado por danos morais. Ela aguarda a decisão.

Fonte: Jornal NH