“Vocês vão acabar com as famílias” era uma das frases que o advogado mineiro Rodrigo da Cunha Pereira ouvia nos corredores do Congresso Nacional, nos idos de 2007. O presidente do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM) circulava por Brasília atrás de parlamentares, lutando para aprovar uma Emenda Constitucional que extinguisse os entraves que existiam na lei do divórcio, de 1977. Se duas pessoas resolvessem se separar, era necessário, naquele tempo, ter dois anos da chamada “separação de fato”. Pelo termo, entenda-se viver em casas distintas e ter testemunhas que provassem isso. Outra via era a “separação judicial” por um ano, um pré-divórcio, “limbo” que impedia os envolvidos de se casarem novamente.
Após muitas idas, vindas e disputas entre progressistas e conservadores, finalmente, a Emenda Constitucional 66 foi aprovada em 2010. No Senado, obteve 49 votos, o mínimo necessário, tendo sido o atual prefeito do Rio, Marcelo Crivella, um dos maiores opositores.“A Emenda 66 foi uma simplificação imensa”, diz Rodrigo. “De 1977 a 2010, aconteceram afrouxamentos, pequenas melhorias, como o divórcio extrajudicial, em cartório, em 2007. Mas, só há uma década, conseguimos descomplicar totalmente. E não tinha nada a ver com acabar com a família, tratava-se de exercer a liberdade. Os laços familiares não terminam, o que termina é o casamento.”
A advogada carioca A.R., de 54 anos, quando passa a limpo todo o penoso processo de divórcio, pensa que poderia ter se beneficiado dos avanços na legislação, caso o relacionamento tivesse durado mais alguns anos. Ela resolveu se separar em 2004 e, como mandava a lei, foi obrigada a esperar o tempo necessário para homologar a decisão. Tudo correu bem, o acordo foi assinado (com as testemunhas assegurando que eles estavam “separados de fato”), mas o ex-marido parou de cumprir os termos tempos depois. Chegou até a fugir do país para não pagar a pensão para os quatro filhos. “Acho que os anos de espera fizeram muita diferença. Ele ganhou tempo (para se organizar juridicamente a fim de prejudicá-la). No divórcio direto, eu teria sido mais feliz e resguardada”, reflete a advogada.
Convicções à parte, o fato é que os obstáculos para uma vida nova causavam sofrimento. E ainda davam brechas para burlar a lei, como frisa o advogado e ex-deputado federal pela Bahia Sérgio Barradas Carneiro. Filiado ao PT na época e hoje sem mandato, foi dele a autoria da emenda. “Antes, era um teatro. Muita gente arranjava testemunhas e dizia ao juiz estar dois anos separado”, recorda. Nos casos de pessoas que davam entrada na separação judicial, várias não voltavam para convertê-la em divórcio. Os motivos para isso eram múltiplos, indo da falta de dinheiro para a outra parte do processo até a indisposição emocional para tocar no assunto novamente. Com isso, diversos homens e mulheres nunca firmaram matrimônio com um novo parceiro porque, “no papel”, não saíram da relação anterior.
Outra mudança permitida pela emenda 66 de profundo impacto social, principalmente na vida das mulheres, foi o fim do debate sobre a culpa pelo término da relação. Até 2010, ainda havia a possibilidade de se apontar o algoz da felicidade. “É um grande benefício não se discutir mais o porquê da separação, de não ser preciso convencer o Estado sobre sua vontade”, diz a advogada especializada em divórcio colaborativo Olivia Fürst. “Toda a história do direito de família, com brigas, eram fundadas na questão: quem causou o fim do casamento. Isso não levava a lugar algum, só trazia dor e enorme carga de acusações e inverdades para fazer o outro ser mal visto pelo juiz.” Não é de se estranhar que a mão pesada da lei tenha recaído com muito mais frequência sobre o sexo feminino. “Até pouco tempo, a mulher podia, inclusive, perder a guarda dos filhos se fosse considerada culpada pelo insucesso da relação”, diz Rodrigo.
A emenda 66 ajudou a enterrar essas questões, mas, segundo Olivia, ainda aparecem clientes com pilhas de e-mails impressos a fim de provar que o cônjuge anda dando umas escapadelas. Nem gaste tinta da impressora, porque isso não tem relevância. “O Judiciário não é mais o lugar para discutir esse assunto. Ele olha questões objetivas: quando estar com filhos, quanto pagar para outro”, diz Olivia. “Antes, o direito de família olhava para o passado , quem tinha feito o quê, quem tinha razão. Hoje, miramos o futuro: saímos do litígio para a colaboração.”
Rodrigo concorda que o passado realmente ficou… no passado. “Deu-se o sepultamento desse debate. E acho que o mercado dos detetives particulares deve ter diminuído bem”, brinca.
Fonte: Globo