Entrevista Letícia Maculan – A Lei nº 14.382/2022 e a União Estável

Entende-se como União Estável, a entidade familiar resultante de relação afetiva, pública e duradoura, entre duas pessoas, não impedidas legalmente de se casarem entre si (exceto no caso de pessoa casada, mas separada de fato, que pode constituir união estável), com compartilhamento de projeto de vida e intenção de constituir família. Essa União Estável não depende de gênero ou orientação sexual dos companheiros, da existência ou não de filhos e nem do fato de dividirem o mesmo lar.

De acordo com a Constituição Federal Brasileira e com o Código Civil, a conversão da União Estável em Casamento deve ser facilitada pela lei, o que resultou nos Provimentos nº 141/2023 e 146/2023, que alteraram o Provimento nº 37/2014 para adequá-lo às determinações da Lei nº 14.382/2022. Os referidos Provimentos hoje estão revogados, mas suas disposições foram mantidas, consolidadas no novo Código Nacional de Normas do Extrajudicial, Provimento nº 149/2023.

A Lei nº 14.382/2022 e o Provimento nº 149/CNJ  permitem que os Cartórios de RCPN realizem os termos declaratórios de reconhecimento e de dissolução de União Estável. O objetivo é formalizá-la para viabilizar que os companheiros possam usufruir como dependentes ou beneficiários em plano de saúde, de previdência, e, ainda, comprovar a existência da união perante o INSS ou outro órgão de previdência para fins de direito à pensão, esclarecer as questões referentes ao regime de bens no relacionamento, à adoção de sobrenome e, por fim, reconhecer de forma pública o relacionamento para que, no futuro, não haja questionamentos quando do falecimento de um dos companheiros.

Para falar um pouco mais sobre o efeito da Lei 14.382/22 sobre a União Estável, convidamos Leticia Maculan, oficial do Cartório de Registro Civil e Notas do Barreiro (BH) e diretora do Sindicato dos Oficiais de Registro Civil de Minas Gerais.

Recivil – Quais as mudanças que a Lei 14.382/22 trouxe para a União Estável no Brasil?

Letícia Maculan – Foram diversas as mudanças que a Lei 14.382, o Provimento 141 e depois o 146, trouxeram para a União Estável. Hoje os Provimentos estão todos consolidados no Provimento 149/CNJ, que é o Código Nacional de Normas do Extrajudicial. A primeira mudança relevante foi o fortalecimento e o reconhecimento da importância do registro da União Estável no Livro E. Foi esclarecido nessas normas que o registro no Livro E é facultativo, mas é esse registro que dará efeito perante terceiros, além de permitir a adoção de um sobrenome do companheiro. Outra questão contida nas normas é a obrigatoriedade de requerimento de registro o Livro E do Termo Declaratório ou da Escritura Pública feito por ambos os companheiros. Também ficou claro quais são os títulos admitidos a registro: o Termo Declaratório do Registro Civil, além da sentença e da Escritura Pública, que já estavam previstos. Já o documento particular não foi mais previsto como título hábil para registro no Livro E. Sobre a data do início e do fim da União Estável, foi criada a possibilidade da certificação das datas. Essa certificação é essencial para fixação da data – tanto para registro da União Estável quanto para efeitos retroativos na conversão da união estável em casamento. A única exceção prevista no Provimento 149 é a hipótese de a data declarada como início do relacionamento corresponder à a data do Termo Declaratório ou da Escritura Pública, o que é muito raro. Dessa forma, na maioria dos casos é necessário fazer a certificação e a decisão do Oficial nesse procedimento será juntada ao processo de habilitação, no caso de conversão em casamento, para fins de retroação de data. Na hipótese de o casal não querer optar pelo casamento, o Termo Declaratório e a certificação podem ser apresentados a registro no livro E, com efeitos perante terceiros. A alteração de regime de bens também foi prevista nas normas, sendo que só pode ser feita perante o registrador civil no caso de União Estável, a alteração de regime no casamento ainda exige a via judicial.

Recivil – Em 2023, o CNJ publicou o Provimento 141/23 que altera a norma anterior. Por que essa alteração foi necessária?

Letícia Maculan – O Provimento 141 veio esclarecer alguns pontos referentes à lei 14.382. E, realmente, trouxe muitos esclarecimentos importantes, como já mencionamos na resposta anterior.

Recivil – Como é feita a conversão de União Estável em Casamento?

Letícia Maculan – A conversão da União Estado em Casamento é feita por processo de habilitação, igual ao processo de habilitação para Casamento Civil.  O que altera é o fato de que fica dispensada a celebração. Então, no caso da conversão, não existe a celebração feita pelo juiz de paz. Até recentemente não era possível constar a data de início da união quando da conversão da União Estável em Casamento extrajudicial. Essa data de início só poderia constar caso o procedimento fosse por meio judicial. Com a Lei 14.382 e com os provimentos, isso mudou. Agora, existe a regulamentação expressa, que determina que a certificação da data de início da união seja de acordo com as provas coletadas e com a oitiva das partes envolvidas e das testemunhas. Essa certificação somente é dispensada, como dito anteriormente, quando constar a data de início da União Estável coincidir com a data de lavratura do Termo Declaratório ou da Escritura Pública.

Recivil – Como funciona o regime de bens da União Estável e quando se faz necessário o pacto antenupcial?

Letícia Maculan – O regime de bens na União Estável é definido no Termo Declaratório ou na própria Escritura Pública de União Estável. Caso não haja a indicação de outro regime de bens, será considerado o regime legal, ou seja, o da comunhão parcial de bens. No entanto, existem situações em que é aplicável o regime da separação obrigatória de bens, como acontece no casamento. Com a recente decisão do STF em repercussão geral, no caso de pessoas maiores de 70 anos de idade, o casal pode lavrar pacto antenupcial ou escritura ou termo de união estável afastando a separação obrigatória.  Outra questão interessante que foi regulamentada pelo Provimento é o caso em que o casal opta pela conversão da União Estável em Casamento e quer manter o mesmo regime de bens que vigorava até então. Se isso acontecer, e se a opção for, por exemplo, pela separação consensual e esse regime constar no Termo ou na Escritura Pública, não será necessário lavrar pacto antenupcial, sendo que o Termo Declaratório ou a Escritura Pública valem como pacto antenupcial.

Recivil – No caso de dissolução da União Estável, é preciso haver interferência judicial ou pode ser feita no próprio cartório?

Letícia Maculan – A dissolução da União Estável pode ser feita em cartório, nas mesmas hipóteses em que o divórcio pode ser feito. Ou seja, deve haver a presença no ato de um advogado das partes – que pode ser comum ou um para cada parte; o ato deve ser consensual e não podem existir partes incapazes nem filhos menores de idade. Caso contrário, será necessária uma ordem judicial. Para o divórcio não há previsão de atuação do oficial de RCPN, o divórcio deve ser feito apenas por escritura pública ou por sentença judicial. Mas a dissolução da União Estável pode ser feita tanto por Termo Declaratório quanto por Escritura Pública ou por sentença. No caso de haver bens a partilhar, que sejam bens imóveis, esses bens não podem ser partilhados no Termo Declaratório, de acordo com o Provimento 146/CNJ, hoje consolidado no Provimento 149/CNJ. Dessa forma, se houver imóveis de valor superior a 30 salários-mínimos, será necessária a via judicial ou então o uso da Escritura Pública. Para bens móveis não existe limite de valor para a atuação do Oficial do RCPN. Então, por exemplo, a pessoa tem cotas de empresa que valem um milhão de reais. Não tem problema, a partilha pode ser feita no RCPN, não tem limite de valor para bens móveis.

Recivil – Em caso de partilha de bens, como é feito o trâmite? Ela pode ser feita de forma litigiosa? Como o cartório participa dessa fase?

Letícia Maculan – O Oficial ou Tabelião não pode atuar em caso de litígio. Se houver litígio, o caso deve ser levado ao Poder Judiciário. Mas, quando houver consenso, as partilhas podem ser feitas por Escritura Pública, em tabelionato de notas, ou então por Termo Declaratório, tendo aquela ressalva relativa aos bens imóveis de valor superior a 30 salários-mínimos, ou então podem ser feitas pelo Registrador Civil, depois do provimento 146 do CNJ, atualmente consolidado no provimento 149/CNJ.