Jurisprudência mineira – Apelações cíveis – Ação anulatória – Alienação de bem imóvel – Incapacidade do alienante à época da venda do bem – Transferência do bem à genitora do falecido

APELAÇÕES CÍVEIS – AÇÃO ANULATÓRIA – NEGÓCIO JURÍDICO – ALIENAÇÃO DE BEM IMÓVEL – INCAPACIDADE DO ALIENANTE À ÉPOCA DA VENDA DO BEM – COMPROVAÇÃO – SIMULAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO – TRANSFERÊNCIA DE BEM À GENITORA DO FALECIDO – DIREITO DO FILHO NASCITURO, RECONHECIDO À ÉPOCA – ATUAIS RESIDENTES NO IMÓVEL – DIREITO ÀS BENFEITORIAS – SENTENÇA CONFIRMADA

– Havendo provas de que o negócio jurídico foi entabulado, quando uma das partes encontrava-se incapaz de expressar vontades em decorrência de doença terminal, resta evidente a sua nulidade.

– Ocorre a simulação quando as partes celebram negócio jurídico de aparência normal, mas com manifestação enganosa de vontade, visando a enganar terceiros ou infringir a lei.

– Constatados vícios no negócio jurídico firmado, é devida a restituição do imóvel ao patrimônio do falecido, devendo o bem ser inventariado e partilhado, nos termos da sentença.

Apelação Cível nº 1.0433.00.012180-9/002 – Comarca de Montes Claros – Apelantes: 1os) Alberto Luiz Damasceno e outra, Nair Rodrigues Gomes Damasceno – 2os) Maria dos Anjos Cardoso, Santo Cardoso e outro – Apelado: Carlos Matheus Veloso Damasceno – Litisconsorte: Terezinha de Jesus Martins Damasceno – Relator: Des. Carlos Roberto de Faria

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em negar provimento aos recursos.

Belo Horizonte, 23 de setembro de 2020. – Carlos Roberto de Faria – Relator.

NOTAS TAQUIGRÁFICAS

DES. CARLOS ROBERTO DE FARIA – Trata-se de recurso de apelação interposto por Alberto Luiz Damasceno e outra, e Santo Cardoso e outro, inconformados com a sentença de f. 345/348 que julgou parcialmente procedente o pedido, nos seguintes termos:

“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente o pedido formulado por Carlos Matheus Veloso Damasceno na presente ação anulatória de atos jurídicos, ajuizada em face de Alberto Luiz Damasceno, Terezinha de Jesus Martins Damasceno e Nair Rodrigues Gomes Damasceno. Depois, em face de Santo Cardoso e Maria dos Anjos Cardoso, declarou nulos os negócios jurídicos representados pelas escrituras públicas constantes das f. 14/14-v, 17/17-v, 289/289-v, bem como a procuração das f. 290/290-v, e, consequentemente, declarou nulos todos os registros imobiliários efetuados junto à matrícula nº 20.335, f. 034, do Livro nº 2. 1-AH do Cartório do 1º Ofício do Registro de Imóveis desta cidade, desde o registro R-02, incluindo este, restituindo-se a propriedade do imóvel ao de cujus Valfredo Carlos Damasceno, o qual deverá ser regularmente inventariado e partilhado, devendo sua posse provisória ser entregue ao seu herdeiro, o requerente Carlos Matheus Veloso Damasceno, após o trânsito em julgado desta decisão. Condeno o requerente a restituir aos litisconsortes necessários, Santo Cardoso e Maria dos Anjos Cardoso, a quantia correspondente às despesas com as benfeitorias realizadas no imóvel, o que deverá ser apurado em liquidação de sentença.

Face à sucumbência mínima do requerente, condeno as partes requeridas e os litisconsortes passivos a arcarem com o pagamento das custas e despesas processuais nas seguintes proporções:

a) 75% pelos requeridos Alberto Luiz Damasceno, Terezinha de Jesus Martins Damasceno e Nair Rodrigues Gomes Damasceno, de forma solidária.

b) 25% pelos litisconsortes passivos solidariamente. A exigibilidade quanto aos litisconsortes necessários fica suspensa em razão da gratuidade de justiça deferida tacitamente aos mesmos e que ratifico à vista das declarações de f. 296 e 297.

Condeno os requeridos Alberto Luiz Damasceno, Terezinha de Jesus Martins Damasceno e Nair Rodrigues Gomes Damasceno a pagarem, solidariamente, honorários advocatícios ao patrono do requerente, que fixo em 20% (vinte por cento) sobre o valor atualizado da causa, conforme o § 2º do art. 85 do Código de Processo Civil.

Condeno os litisconsortes necessários Santo Cardoso e Maria dos Anjos Cardoso a pagarem, solidariamente, honorários advocatícios ao patrono do requerente, que fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa, conforme o § 2º do art. 85 do Código de Processo Civil. A exigibilidade quanto aos litisconsortes necessários fica suspensa em razão da gratuidade de justiça deferida tacitamente aos mesmos e que ratifico à vista das declarações de f. 296 e 297.”

Em suas razões recursais, alegam os primeiros apelantes que não há prova técnica capaz de comprovar que o falecido Valfredo não se encontrava em perfeito exercício de suas faculdades mentais em razão da doença que o levou a óbito.

Frisa que os depoimentos colhidos não atestam se a enfermidade que acometeu o falecido alterou sua capacidade mental.

Informa que o depoimento não traz segurança ao juízo. Assevera que a assinatura do falecido foi colhida em uma prancheta, não tendo como ser emitida nos mesmos moldes que o signatário o faria sobre uma mesa, sentado numa cadeira ou de pé sobre um balcão. Aduz que não houve qualquer perícia no sentido de se declarar a não autenticidade da assinatura. Frisa a impossibilidade de se anular um ato jurídico perfeito, realizado por instrumento público, sem prova cabal da ausência de vontade expressa do participante. Afirma que, ao se declarar a incapacidade do falecido para firmar o negócio entabulado, também seria devido o reconhecimento de sua incapacidade para reconhecer a paternidade do autor.

Reafirma a inexistência de provas de que a mãe do autor tenha participado economicamente da aquisição do terreno e construção da casa em que residiam o falecido e sua genitora, ou que pretendiam se casar e residir no local.

Os segundos apelantes, por sua vez, alegam que, em momento algum, durante a venda do imóvel, foram informados acerca de qualquer processo judicial envolvendo o imóvel. Colocam que, se não fossem as citações recebidas dezoito anos após o ajuizamento da ação, ficariam na mais absoluta ignorância do fato. Frisam que o Tabelião informa que o senhor Valfredo e Alberto compareceram perante a ele para entabular a transferência do bem, sendo certo que, ou a venda foi realizada dentro das formalidades da lei, ou o Tabelião mentiu. Asseveram que a testemunha que afirmou a incapacidade de Valfredo não era médica, sendo incapaz de fazer qualquer análise do seu verdadeiro estado clínico de saúde. Aduzem que, se o estado de saúde de Valfredo era tão grave, o Tabelião se recusaria a lavrar o ato. Ressaltam que a escritura pública de f. 289 transmitiu aos compradores todo direito, domínio, ação e posse que tem sobre o imóvel, já podendo os mesmos, desde aquele ato, empossarem-se da coisa vendida, de forma que, ainda que a sentença seja confirmada, dona Nair detém a posse do bem enquanto estiver viva. Assim, colocam que ainda que se reconheça a fraude na venda do bem a Alberto Damasceno, a escritura pública que institui o direito ao usufruto permanece válida, conferindo aos beneficiários os direitos nela consignados.

Pugna pelo reconhecimento do ato jurídico que concretizou a venda do imóvel aos apelantes, terceiros de boa-fé.

Contrarrazões às f. 370/374, pelo desprovimento dos recursos aviados.

A d. Procuradoria-Geral de Justiça entendeu pela desnecessidade de emitir parecer.

É o relatório.

Juízo de admissibilidade.

Considerando que a legislação processual que rege os recursos é aquela vigente na data da publicação da decisão judicial, registro que o feito deverá ser analisado segundo as disposições do Novo Código de Processo Civil de 2015.

Conheço dos recursos voluntários interpostos, uma vez que próprios e tempestivos, e recebo-os no duplo efeito, nos termos do art. 1.012, caput, do CPC.

Mérito.

Insurgem-se ambos os recorrentes acerca do reconhecimento da incapacidade do falecido Valfredo Carlos Damasceno para firmar negócio de compra e venda do imóvel objeto do presente feito.

Para melhor deslinde da demanda, cumpre apontar a ordem dos fatos.

Em 17/5/1999, foi firmada escritura pública de compra e venda entre os irmãos Alberto Luiz Damasceno e Valfredo Carlos Damasceno (f. 14/14 v.), à véspera do óbito do senhor Valfredo, que se encontrava doente, acometido de câncer em estado terminal.

Para que um negócio jurídico seja válido, determinava o Código Civil de 1916, vigente à época, que fosse praticado por pessoa plenamente capaz, sendo nulos os atos praticados por pessoas absolutamente incapazes, e anuláveis os atos praticados por relativamente incapazes.

No caso, cumpre averiguar se o senhor Valfredo se encontrava no exercício de suas faculdades mentais, apesar de se encontrar em mau estado de saúde.

A prova dos autos indica a incapacidade do vendedor do imóvel, genitor do requerente, à época dos fatos. A testemunha Sheila Cristina Ferreira afirma à f. 329 que:

“[…] que alguns dias do falecimento do Valfredo, a depoente o visitou no hospital onde o Valfredo já não conseguia sequer falar ou fazer algum outro movimento senão com os olhos”. (sic)

Ora, se o falecido estava acamado alguns dias antes do óbito, sem conseguir fazer qualquer movimento a não ser com os olhos, é de se estranhar que tenha supostamente manifestado vontade de entabular a venda do imóvel para seu irmão, ou mesmo conseguido até mesmo assinar o documento, havendo indícios de que não houve o cumprimento de todas as formalidades legais pelas partes e pelo Tabelião.

Sobre a assinatura, o parquet destacou à f. 245, em parecer emitido anteriormente, a grande diferença entre a assinatura constante na escritura de f. 14 e seu documento de identidade à f. 15, perceptível até mesmo para um leigo.

Também se vislumbra uma impressão digital de Valfredo, supostamente colhida pelo Tabelião, próxima à sua assinatura, apesar de ser alfabetizado, o que permite presumir que o mesmo não tinha condições sequer de assinar por si só.

A assinatura da escritura pública aconteceu em 17/5/1999, e o óbito de Valfredo no dia 18/5/1999.

Noutro giro, ainda que se considere a plena capacidade de Valfredo na ocasião, não restam dúvidas de que o negócio foi entabulado por meio de simulação, sendo anulável. Sobre tal vício, dispõe o Código Civil de 1916, vigente à época da alienação do bem de Valfredo a Alberto:

“Art. 102. Haverá simulação nos atos jurídicos em geral:

I. Quando aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas das a quem realmente se conferem, ou transmitem.

II. Quando contiverem declaração, confissão, condição, ou cláusula não verdadeira.

III. Quando os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

[…]

Art. 104. Tendo havido intuito de prejudicar a terceiros, ou infringir preceito de lei, nada poderão alegar, ou requerer, os contraentes em juízo quanto à simulação do ato, em litígio de um contra o outro, ou contra terceiros.

Art. 105. Poderão demandar a nulidade dos atos simulados os terceiros lesados pela simulação, ou representantes do poder público, a bem da lei, ou da fazenda.”

No caso, entendo que as partes, sabendo do direito do filho nascituro de Valfredo de receber em herança ao menos a metade dos bens pertencentes a seu pai, incluindo-se aí o imóvel em questão, entabularam simulação de compra e venda do imóvel, como se a alienação do mesmo a seu irmão Alberto decorresse de pagamento pelos gastos médicos do tratamento de Valfredo.

Perceba-se que Valfredo aliena o bem a Alberto à f. 14 em maio de 1999, no valor de R$ 5.553,36, e em julho de 2000 o mesmo imóvel é alienado à genitora dos irmãos (f. 17), pelo mesmo valor. Contudo, em memorial à f. 173, os requeridos informam que o valor declarado na escritura pública não correspondia ao “real montante da transação”, bem como que transferiu o imóvel para a genitora a título gratuito. Confira-se:

“[…] De modo que, sem nenhuma preocupação quanto ao real montante da transação, e apenas para que o irmão se sentisse melhor sabendo que também bancava parte do seu tratamento, o réu Alberto Luís Damasceno dele adquiriu todo o imóvel, permanecendo com ele em seu nome e poder por algum tempo, até que em 24 de março de 2000, bem antes do ajuizamento da presente ação anulatória, e após o falecimento do irmão, num gesto dos mais nobres e generosos, transferiu a moradia para a mãe, d. Nair Rodrigues Gomes Damasceno”. (sic)

Cumpre observar que antes do nascimento do requerente Carlos, a genitora de Valfredo, Sra. Nair, seria a herdeira necessária de ao menos metade de seus bens.

Por fim, entende-se nula, também, a escritura de compra e venda do imóvel em negócio jurídico firmado entre a Sra. Nair e Santo e Maria dos Anjos à f. 289/289 v.

A presente ação foi proposta em outubro de 2000 (f. 26), com citação e apresentação de contestação de Alberto e Nair em 2002 (f. 57v./58), sendo que, em 2007, Nair, avó de Carlos e genitora de Valfredo e Alberto, alienou o imóvel objeto do feito a Santo e Maria dos Anjos.

Ainda que os atuais residentes do imóvel afirmem desconhecer que o bem era objeto de litígio, consta na escritura de f. 289/289v. que o imóvel era, sim, objeto de disputa nos feitos 0433.00.012180-9 e 0433.02.046819-8, o que afasta a alegação de desconhecimento e posterior aquisição de boa-fé, observado o art. 457 do Código Civil:

“Art. 457. Não pode o adquirente demandar pela evicção, se sabia que a coisa era alheia ou litigiosa.”

Em decorrência da nulidade das escrituras de f. 14 e 17, também resta nula qualquer cláusula de usufruto em favor da Sra. Nair, decorrente de alienação do bem a Alberto.

Ainda que assim não fosse, reconhecendo-se a simulação dos negócios jurídicos registrados sob as escrituras de f. 14 e 17, mesmo que vigorasse qualquer cláusula de usufruto em favor da Sra. Nair, não caberia à mesma alienar o imóvel aos litisconsortes, afastando qualquer direito de Santo e Maria dos Anjos a permanecer no imóvel.

Nesse sentido, confirma-se a sentença que declarou a nulidade de todos os registros imobiliários efetuados junto à matrícula nº 20.335, f. 034, do Livro nº 2-1-AH do Cartório do 1º Ofício do Registro de Imóveis desta cidade, desde o registro R-02, restituindo a propriedade do imóvel ao de cujus Valfredo Carlos Damasceno, o qual deverá ser regularmente inventariado e partilhado.

Conclusão.

Por todo o exposto, nego provimento aos recursos. Deixo de fixar honorários recursais em face dos primeiros apelantes, já que o MM. Juiz fixou os honorários em patamar máximo na sentença.

Condeno os segundos apelantes ao pagamento de honorários recursais em 2% sobre o valor atualizado da causa, na forma do art. 85, § 11, do CPC/2015.

Custas pelos vencidos, na mesma proporção disposta na sentença.

Votaram de acordo com o Relator a Des.ª Teresa Cristina da Cunha Peixoto e o JD. convocado Fábio Torres de Sousa.

Súmula – NEGARAM PROVIMENTO AOS RECURSOS.

 

Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG