Regime de bens atípico – Para além de uma combinação de regimes

Por Isabela Bicalho Xavier*

O casamento, como instituição que é, envolve alto grau de formalidade. Ainda que
analisado sob uma perspectiva histórica, desde sempre esteve submetido a um
regramento condicionante à sua validade e eficácia, ainda que tenha se mostrado, com
o influxo do tempo, ora mais leniente, ora mais rigoroso.

Nos tempos atuais, a sistemática relativa ao casamento, e a todos os seus
consequentes, é pormenorizadamente descrita no Livro IV do Código Civil de 2002. Ao
instrumento que consubstancia o início, a organização e a condução do procedimento
legítimo à aptidão matrimonial dá-se o nome de “Processo de Habilitação para o
Casamento”. É justamente no bojo deste que reside o cerne das presentes
considerações, na medida em que se presta ao estabelecimento do estatuto
patrimonial orientador da relação vindoura. É a ocasião, portanto, da escolha do regime
de bens.

De preceito, a regência do casamento dar-se-á pelo regime de comunhão parcial de
bens, regra geral aplicável àqueles que optem por não convencionar diversamente (art.
1.640, CC). Sem embargo, caso não seja essa a decisão do casal, é imprescindível
que ela seja, então, materializada por pacto antenupcial, lavrado perante o Tabelião de
Notas, o que desde já explicita a natureza de requisito formal de validade ostentada por
esse instrumento.
A essa altura, surge a indagação: quais seriam as opções à disposição dos
pretendentes? Sua liberdade de escolha estaria limitada pelas regras expressas em
Regulação aos regimes de bens típicos? Seriam taxativas as espécies de regime
codificadas? Dada a leitura do art. 1.639 do diploma civilista, sobretudo quando
conjugada à de outras disposições nele contidas, e guardada a deferência às opiniões
contrárias, não parece ser essa a diretriz normativa abraçada. Calcada a
argumentação nos fundamentos a seguir, certamente essa é a conclusão que irá, com
exclusividade, sobrepujar, tamanha a sua obviedade.
Tratando de arrematar o elenco de regime de bens que entendeu por bem contemplar,
o código civil colocou à disposição dos pretendentes, em ladeio ao sobredito regime
legal, os seguintes regimes de bens: comunhão universal de bens, separação absoluta
(ou convencional) de bens, separação legal (ou obrigatória) de bens e participação final
nos aquestos. Por terem uma governança estritamente legal, recebem a qualificação
de “regimes típicos”, cujas diferentes matizes constituem o objeto de estudo dos mais
excelentes tratadistas.

Em paralelo, a cabeça do art. 1.639 do Código Civil traz a seguinte previsão: “É lícito
aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que
lhes aprouver”. Eis a origem do imbróglio, pois, a depender do método de interpretação
considerado, é possível que seja desencadeado verdadeiro prisma de entendimentos.
Quando o objeto de enfrentamento traz consigo uma incerteza normativa, também traz
a resultante típica que disso emerge: grande potencialidade à formação de plurais
compreensões, circunstância essa que, de todo modo, confronta com a essência
operativa do direito.

Posta em duas palhetadas, essa cláusula de possibilidades contemplada pelo Código
Civil foi, e ainda é, fonte de grandes embates acadêmicos e ensaístas.
Formado esse verdadeiro nó górdio, de duas ordens foram os direcionamentos
impostos pela doutrina: um deles fundamentado em interpretação voltada ao sucesso
prático-prático da aplicação do preceito normativo; em contraponto, o assente à noção
de que, por inferência lógica, só há uma conclusão deduzível a partir da interpretação
do referido preceito legal. Assim norteado, este se vale da certeza de que, ainda que o
exegeta tenha por base qualquer dos métodos postos a serviço da hermenêutica
(interpretação que pode ser literal/semântica/gramatical, sistemática, histórica,
teleológica-axiológica e sociológica), a ele só caberia a formação de uma convicção.
Os que consideram o favorecimento do aspecto prático como a mens legis, extraem do
artigo nada mais do que a garantia, em favor dos nubentes, de que a gerência
patrimonial possa se dar pela conjugação da vontade de cada qual, podendo se fundar
não só em um regime de bens, mas por um – considerado principal – incrementado,
em aspectos pontuais, pelas regras de outro. No entanto, advertem que há uma
condição ao gozo de tal permissivo: não pode redundar em extravase daquilo que foi
tipicamente codificado. Em verdade, o que pode haver é uma combinação de regimes
balizada pelos regimes típicos, mas desde que não implique em atividade criativa.
Nessa linha, o consórcio se daria sob a batuta de determinado regime (comunhão
parcial, por exemplo), entrementes, em relação a bens e direitos específicos e
determinados, a condução será pelas regras de outro (comunhão universal, por
exemplo).
Elucidando, é o que pode ocorrer no caso de casamento em que, mesmo em se
optando pelo império das regras da comunhão parcial de bens, no que tange a um
apartamento cuja aquisição, financiada por aportes mútuos, data de momento anterior
às núpcias, a gerência será efetivada sob o pálio da comunhão universal de bens. É
exatamente isso o invocado por respeitáveis ensaístas, a teor do esposado em artigo
de autoria de José Hildor Leal [1], para quem “a possibilidade do estabelecimento de
disposições mistas, ou híbridas, não pode ser confundida com regime misto, que não
existe.”
Ao ponderar tais razões, é inevitável que brotem algumas indagações. Essa diretriz
seria condizente com princípios basilares de hermenêutica? Não se daria, como
consectário, afronta a vetustos mandamentos, como o de que o intérprete não pode
restringir onde a lei não restringe, condicionar onde a lei não condiciona ou exigir onde
a lei não exige? Vejamos.
Apegado a viés contrário é o raciocínio que conclui ser a autonomia privada o vetor
axiológico no qual o art. 1.639 se reveste. Por essa razão, somente irá sucumbir frente
as balizas trazidas pelos princípios e regras (principalmente naquelas de ordem
pública), que, como tais, são os vetores que conduzem a adequação do sistema
jurídico como um todo. De igual modo, merece rechace qualquer pretensão fraudatória
à lei cogente.

Partindo desse pressuposto, os nubentes têm ampla liberdade para estipular, quanto a
seus bens, o que lhes aprouver, desde que, para tanto, o façam por intermédio de
pacto antenupcial lavrado perante um tabelião de notas, respeitados os limites
sobreditos. Donde se conclui que a escolha pode recair não só em algum dos regimes
de bens elencados no Código Civil, mas também num regime híbrido, seja por mesclar
regras específicas dos diversos regimes existentes, seja por conjugá-las com
disposições especiais -artesanais e exclusivas- elaboradas ao talante dos contraentes.
Não é nada forçosa, mas antes, lógica, a dedução do que aí está posto: a norma atribui
total liberdade para que os noivos pactuem a esse respeito. É o que inegavelmente
está posto. A inferência obtida não é outra quando da efetivação de análise sistêmica
do artigo abalizado, isso porque o estudo conglobante do direito civil resulta em
atribuição de uma carga assertiva ainda mais robusta à derradeira lição.
Gravitando no arcabouço normativo em que inserido o art. 1.639, vários dispositivos
sufragam seu cristalino e implacável teor. Como ponto de partida, vê-se da
obrigatoriedade de eventual opção por regime diverso do legal ser materializada em
pacto nupcial, por escritura pública, à guisa do parágrafo único do art. 1.640. Remetida
a leitura ao regramento do dito instrumento, nele se insere o art. 1.655, impondo que “É
nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei.”. Isso,
de per si, explicita a certeza a respeito de dois fatos: a natureza contratual do pacto
antenupcial e o limite infligido aos nubentes.
O artigo 425, a seu turno, é fulcral em julgar lícito que as partes estipulem contratos
atípicos, ou seja, contratos cujo regramento não se encontra previamente tipificado na
lei civil. A única condicionante é de que o façam em observância às normas gerais ali
fixadas. Aqui, sequer são necessários argumentos. Basta que o raciocínio espelhe o
silogismo aristotélico: para regime de bens diverso do legal, o pacto é de rigor; caso
contemple qualquer convenção ou cláusula contrária à lei, estas serão nulas; é cediço
que, por essência, convenção significa acordo de vontades, o que precisamente
constitui o cerne dos contratos; no que tange aos contratos, é lícito aos contratantes
convencionar de modo a extrapolar as amarras positivistas, desde que guardem
respeito a limites óbvios. Ao que parece, é impossível que tais premissas não sejam
relacionadas, levando a um resultado lógico-dedutivo.
Em arremate, o art. 104 vem coroar a indenidade das colocações esposadas ao
enumerar os elementos suficientes à validade do negócio jurídico, quais sejam, agente
capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não
defesa em lei. Essa proposição arraiga, em definitivo, a condição do pacto antenupcial
como negócio jurídico (contrato) devidamente celebrado, vez que sua lavratura
depende, necessariamente, da encampação de todos esses elementos, que irão se
aliar às demais condições já apontadas.
À vista de tais argumentos, a convicção formada, ao menos por ora, aponta que a
negativa a uma pretensão de tal envergadura seria, quando menos, indiciária de
ilegalidade. Por mais que se mostre nitidamente mais oportuna, tal fato não constitui
razão suficiente ao abrigo de interpretação que a isso penda, eis que obtida, quando
muito, de soslaio.

Ao que parece, foi por essa razão que, ao menos em tese, tantos tenham saído em
defesa dessa amplitude atribuída ao conteúdo normativo do art. 1639. É o que
facilmente se constata, por exemplo, nos ensinamentos de civilistas do mais alto
quilate, tais como Maria Helena Diniz (Curso de D. Civil – 16ª ed), Milton Paulo de
Carvalho Filho (Código Civil Comentado – Editora Manole), Nelson Rosenvald (Manual
de Direito Civil); Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil – Vol V),
dentre muitos outros.
O Conselho da Justiça Federal veio a reboque desse posicionamento, o que explicitou
na formulação dada ao seu Enunciado 331, para o qual “O estatuto patrimonial do
casal pode ser definido por escolha de regime de bens distinto daqueles tipificados no
Código Civil (art. 1.639 e parágrafo único do art. 1.640), e, para efeito de fiel
observância do disposto no art. 1.528 do Código Civil, cumpre certificação a respeito,
nos autos do processo de habilitação matrimonial.”
Questão outra, no entanto, é a que corre em paralelo, quando contemplada a
problemática referente à possibilidade de a sucessão ser lastreada em regime de bens
pactuado entre os cônjuges. É cediço que o direito das sucessões não é parte do
conteúdo tratado pelo direito de família, mas isso de modo algum afasta o vínculo
umbilical que mantém com o objeto do presente. Grande parte da vocação hereditária
será ditada pelo regime em que se deu a conjugalidade.
Para os regimes tipificados no Codex, as regras sucessórias que deles emanam são
adequadamente delineadas no capítulo dedicado ao direito das sucessões. Por outro
lado, questão pungente se relaciona à incerteza acerca das regras a serem
consideradas para a sucessão que envolva regime de bens artesanalmente delineado
pelos consortes. Qual seria o regime jurídico aplicável às respectivas sucessão e
partilha? Esse é um assunto que imprescinde de larga meditação, a qual, por certo,
ficará para outra ocasião.

* Isabela Bicalho Xavier – Registradora Civil das Pessoas Naturais no Estado de São Paulo; Professora do curso
de pós-graduação em direito notarial e registral imobiliário do Centro Universitário Ítalo Brasileiro; participou, como debatedora, de diversas sessões do programa Pinga-Fogo, veiculado pela Associação dos Notários e Registradores – Sessão Paraná (AnoregPR); foi registradora civil e tabeliã de notas no Estado de Minas Gerais; aprovada noconcurso para delegação de serventias extrajudiciais do Estado da Bahia; aprovada noconcurso para delegação de serventias extrajudiciais do Estado do Paraná; atuou,como interventora judicial, na presidência do Sindicato de Registradores Civis dasPessoas Naturais do Estado de Minas Gerais – RECIVIL; Pós-graduada em Direito Público; e Pós-graduada em Direito Imobiliário.