Ela quer ser Maria Isabela, e é assim que vou chamá-la. Não é o nome de registro dado há 26 anos, não, foi escolhido depois. Aliás, até ele, o registro de nascimento (e a identidade e o CPF e o título de eleitor?), ela deixou para trás na tentativa de extirpar o passado de si como se arrancasse a própria pele, unhas cravadas na agonia. Ali, na Praça do Ferreira, no Centro de Fortaleza, misturada entre tantos outros em situação de rua, está longe da cidadania, dos olhos do Poder Público e de qualquer proteção – mas é onde encontra fuga da mulher que não quer mais ser, maculada pelos abusos sexuais praticados pelo pai, no Interior do Ceará.
A quebra de vínculos afetivo-familiares é o principal motivo para pessoas de todas as idades vagarem sem teto, comida nem destino certo nas ruas da Capital, segundo o 1º Censo Municipal sobre População em Situação de Rua de 2015, único, já desatualizado e feito pela Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS). E se não bastasse a perda da dignidade, violada pela ausência dos utópicos direitos básicos à saúde, educação, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda, previstos pela Política Nacional para esta população; dilui-se também, pouco a pouco, a própria identidade.
"Quando eu for tirar os novos documentos, vou botar um nome bonito, nunca gostei do meu." Silêncio. "Vai ser Maria Isabela, o 'Maria' vem da minha mãe." Mexe no zíper da mochila desgastada, que concentra tudo o que restou dela, inclusive o olhar perdido. "Ela tem uma casa aqui no Centro, mas não sei nem onde é, ela não quer eu lá", solta, mastigando as lembranças como ideias grossas que incham na boca, não descem pela garganta.
Vulnerável
Tamanhos são a solidão e o aparente medo de gente que Isabela não interage com as outras centenas que fazem da Torre do Relógio uma mesinha-de-centro de casa. Sequer chega perto, por exemplo, da fortaleza de papelão erguida em um dos cantos do logradouro pela família de Jéssica Araújo, 26 – paredes vulneráveis a um sopro. "Eu saí pra resolver uns problemas e, quando voltei, o homem ali da loja disse que levaram as caixas com as nossas coisas dentro. Eu tive sorte que não foi tudo, foi só minha identidade, o CPF e o papelzinho com meu número do sorteio das casas do Governo", relata, entre os solavancos agitados do pequeno Josué, cujo tempo de vida coincide com os três anos que a mãe vive em situação de rua.
Jéssica e o companheiro, se entrevistados em 2014, fariam parte dos 27% das pessoas em situação de rua que não possuíam documentos no período do Censo, por extravio, roubo ou por nunca terem sido emitidos. "Pra tirar de novo agora vai ser a maior cena. É importante pra mostrar que a gente é cidadão também. Todo dezembro mandam tomar as coisas, tirar os colchões? Limpar a praça pra botar a árvore de Natal, pros outros não verem a gente. Mas todo mundo já sabe", assegura.
Em nota, a SDHDS esclarece que fornece "apoio e encaminhamento à população de rua aos órgãos públicos que emitem documentos, por meio dos Centros POP", e projeta, ainda, que um novo censo deve ficar pronto ainda neste ano, considerando "desemprego, perfil social e renda, para otimização das políticas públicas para pessoas em situação de rua."
Completo
De acordo com a supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria Pública do Estado, Sandra Moura de Sá, a maior demanda entre o grupamento em situação de rua é pela segunda via do registro de nascimento, ausência que gera uma "negativa geral de direitos". "Eles perdem a documentação e ficam sem conseguir sair desse círculo vicioso que são a rua, o desemprego, a busca por alimentação diária nas ONGs e nos equipamentos públicos. E esses locais não atingem o intento de ressocializá-los", analisa.
Quinzenalmente, aponta a defensora, equipes do órgão atendem a população de rua para resgatar o direito à documentação pessoal – e, consequentemente, minimizar a precarização vivenciada por essa população. "Nós requisitamos as certidões nos cartórios, e via Defensoria isso é gratuito. Não ter identificação é um empecilho, por exemplo, a um sepultamento digno, ao direito à saúde pública", avalia Moura, apontando para uma das várias negativas sofridas por José Roberto Avelino, 34.
"Uma vez eu tive pedra na vesícula, fui pro hospital e eles não queriam me atender. Quando comecei a provocar e me tremer todinho, me atenderam. Fica difícil pra quem não tem documento. Não dá nem pra se identificar quando a polícia pegar", fala, com propriedade, o sapateiro que desde 2002 vaga pelas ruas do Centro e do Benfica sem identificação – esbarrando, em 2016, com as algemas do Sistema Prisional cearense, onde ficou recluso por dois anos e quatro meses, pagando por um roubo que, segundo ele, não cometeu.
Além de todas as políticas que deseja acessar – principalmente a moradia e o Bolsa Família -, resgatar os documentos será, sobretudo, um retorno ao direito de ser completo. "Minha família é de Juazeiro do Norte, e não soube nem que eu fui preso. Não consegui o telefone de ninguém lá. Quero resolver esse problema, tirar esses documentos pra poder comprar a passagem e ir encontrar eles".
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Fonte: Diário do Nordeste