Jurisprudência mineira – Sucessão – Doação a herdeiros pelos genitores – Prejuízo para um dos filhos

DIREITO CIVIL – SUCESSÃO – ANULATÓRIA – DOAÇÃO A HERDEIROS PELOS GENITORES – ADIANTAMENTO DA LEGÍTIMA – PREJUÍZO PARA UM DOS FILHOS – NULIDADE DA DOAÇÃO – POSSIBILIDADE

– É de se declarar nula a doação realizada pelos pais aos filhos, se esta preteriu um dos descendentes, que também tem direito sobre o imóvel doado.

– Configura-se plenamente possível o acertamento da antecipação da legítima para que todos os filhos possuam o mesmo percentual sobre o bem em debate.

Apelação Cível n° 1.0024.05.892873-0/001 – Comarca de Belo Horizonte – Apelante: Doralice Mendes – Apelados: Waltencir Mendes e outros – Relator: Des. Fernando Caldeira Brant

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, em rejeitar as preliminares e negar provimento ao recurso.

Belo Horizonte, 4 de fevereiro de 2009. – Fernando Caldeira Brant – Relator.

N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S

DES. FERNANDO CALDEIRA BRANT – Trata-se de apelação cível interposta contra a r. sentença de f. 64/65, proferida pelo MM. Juiz de Direito da 6ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, nos autos da ação anulatória de ato jurídico proposta por Waltencir Mendes, Maria Geralda de Souza Mendes, Alexandre Antônio Mendes, Adriana Rodrigues Mendes, Adriana Mendes Vieira e Edmilson Silva Vieira Reis em face de Doralice Mendes, que julgou procedente em parte o pedido inicial para anular parte da doação realizada nos primeiros 50%, para que 50% do imóvel pertencente a Doralice Mendes e Alexandre Antônio Mendes passe a pertencer a ré e aos autores Alexandre Antônio Mendes e Adriana Mendes Vieira em proporções iguais, mantido o usufruto vitalício constante no termo do registro. A ré foi condenada ao pagamento dos ônus de sucumbência, suspensa a cobrança, em face da justiça gratuita concedida.

Cuidam os autos de ação anulatória de ato jurídico, pretendendo os autores a anulação ou retificação da doação feita aos filhos a fim de estabelecer igualmente a legítima entre os herdeiros.

No recurso interposto de f. 67/72, a apelante Doralice Mendes alega preliminarmente a nulidade da sentença, a carência de ação dos autores e a prescrição. No mérito, defende que inexiste falar em nulidade de um ato jurídico perfeito e acabado, visto que os pais podem doar sua parte disponível a quem quer que seja; assim, não há falar em igualdade de direitos. Ao final, pede a anulação ou reforma da sentença.

Contrarrazões de f. 74/75.

Conheço do recurso, presentes os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade.

Nulidade de sentença.

Os réus afirmam que a sentença é nula ao argumento de que o Juiz de primeiro grau decidiu coisa diversa do que foi pedido na inicial.

Sem razão os réus.

Conforme noticiado alhures, pretendem os autores a anulação ou retificação da doação feita aos filhos a fim de estabelecer igualmente o direito dos herdeiros sobre o imóvel doado.

Pela leitura do dispositivo da sentença, verifica-se que o Magistrado decidiu a lide nos estritos limites do pedido, não ocorrendo a alegada afronta ao art. 460 do CPC.

Em que pese a sentença reconhecer o acertamento da legítima sem que a parte autora tenha expressamente se referido a esta expressão, tal fato não inquina de nulidade o decisum.

Rejeito a preliminar.

Carência de ação.

Os réus alegam a falta de interesse dos autores e a impossibilidade jurídica do pedido tendo em vista que os apelados pretendem a anulação de negócio jurídico perfeito e acabado materializado na doação feita pelos autores Waltencir Mendes e Maria Geralda de Souza Mendes aos réus Doralice Mendes e Alexandre Antônio Mendes.

A ação é um direito de pedir a manifestação do Poder Judiciário acerca de determinado conflito intersubjetivo, o que reclama, por parte do autor e do réu, o preenchimento de determinados requisitos, denominados condições da ação, delineados no art. 3º do Código Civil, como “interesse e legitimidade”.

Segundo Humberto Theodoro Júnior:

“Para aqueles que, segundo as mais modernas concepções processuais, entendem que a ação não é o direito concreto à sentença favorável, mas o poder jurídico de obter uma sentença de mérito, isto é, sentença que componha definitivamente o conflito de interesses de pretensão resistida (lide), as condições da ação são três: possibilidade jurídica do pedido; interesse de agir; legitimidade de parte” (Curso de direito processual civil. 5. ed., I/56).

No que concerne à possibilidade jurídica do pedido, infere-se da permissibilidade de ser levado o requerimento do demandante a juízo com alegação de direito e de que não haja qualquer regra legal que limite a incidência do texto de que se irradiou a ação ou que o ordenamento legal proíba ou não preveja uma providência semelhante a que se formula no caso concreto.

Elucida José Rubens Costa que:

“Para que o pedido possa ser examinado, necessário que o ordenamento jurídico objetivo o aceite ou não o proíba. A impossibilidade jurídica ocorre quando o ordenamento jurídico objetivo, de modo abstrato, não prevê providência ou pedido formulado no caso concreto” (Manual de processo civil, 01/99, Saraiva).

Outro não é o ensinamento do Ministro Sálvio Figueiredo Teixeira:

“Possibilidade jurídica é a admissibilidade perante o ordenamento jurídico da pretensão ajuizada, quer porque autorizada, quer porque não vedada” (Código de Processo Civil anotado. 4. ed., p. 164).

A propósito, decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

“Por possibilidade jurídica do pedido, entende-se a admissibilidade da pretensão perante o ordenamento jurídico, ou seja, previsão ou ausência de vedação, no direito vigente, do que se postula na causa” (RT, 652/183).

Ainda, tendo em vista as modernas ou mais atualizadas posições sobre a constitucionalização não só dos princípios como de determinadas regras mesmo do direito processual, não há de se afastar que a possibilidade jurídica decorre quando o ordenamento jurídico objetivo, ou ainda que de modo abstrato, ampara a pretensão posta na inicial seja por se subsumir à norma ou encontrar possibilidade de ponderação de princípios constitucionais aplicados ao caso concreto.

Ora, considera-se possível juridicamente o pedido dos autores, no qual se busca, em sede de ação anulatória, a nulidade da doação realizada por eles em favor dos réus.

No que concerne o interesse processual, este ocorre quando, se não proposta a demanda para a intervenção dos órgãos jurisdicionais, a parte entende que sofrerá prejuízo e, dessa maneira, o referido interesse se põe como uma necessidade de aplicação do direito objetivo ao caso concreto através da tutela jurisdicional acionada pelo processo.

O tema foi explicado pelo jurista Humberto Theodoro Júnior, pelo que trago à colação trecho de sua obra:

“Localiza-se o interesse processual não apenas na utilidade, mas especificamente na necessidade do processo como remédio apto à aplicação do direito objetivo no caso concreto, pois a tutela jurisdicional não é jamais outorgada sem uma necessidade, como adverte Allorio. Essa necessidade se encontra naquela situação `que nos leva a procurar uma solução judicial, sob pena de, se não fizermos, vermo-nos na contingência de não podermos ter satisfeita uma pretensão (o direito de que nos afirmamos titulares)`. Vale dizer: o processo jamais será utilizável como simples instrumento de indagação ou consulta acadêmica. Só o dano ou o perigo de dano jurídico, representado pela efetiva existência de uma lide, é que autoriza o exercício do direito de ação” (Curso de direito processual civil. 41. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. I, p. 55-56).

Dessa maneira, a tutela jurisdicional deve ser invocada somente quando útil a produzir efeitos em relação à pretensão resistida.

No caso em tela, há o interesse processual diante da pretensão autoral de obter a manifestação judicial sobre o seu pedido de nulidade da doação.

Portanto, rejeito a preliminar de carência de ação.

Prescrição.

Os réus sustentam a existência de prescrição ao argumento de que já se passaram mais de quinze anos da efetivação da doação.

A ação anulatória de ato jurídico decorrente de ato ilícito ou nulidade tem natureza pessoal, e não real, sendo o lapso prescricional, portanto, vintenário, segundo regra expressa no art. 177, primeira parte, do Código Civil, pois, em regra.

Porém, há de se verificar a aplicação do art. 2.028 do Código Civil/2002, que estabelece:

“Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada”.

O prazo da prescrição, que antes era de 20 anos, foi reduzido para 10 anos, nos termos do art. 205 do CC/2002.

Como a doação aconteceu em 07.06.1993 e o novo Código Civil entrou em vigor em janeiro de 2003, ainda não havia transcorrido mais da metade do prazo prescricional de 20 anos. Então, no caso, o prazo prescricional é de 10 anos a contar da data em que a nova lei entrou em vigor.

A presente ação foi proposta em fevereiro de 2006, portanto não está prescrito o direito dos autores em buscar a declaração de nulidade da doação.

Mérito.

Conforme relatado, cuidam os autos de ação anulatória de ato jurídico, pretendendo os autores a anulação ou retificação da doação feita aos filhos a fim de estabelecer igualmente da legítima entre os herdeiros.

Sabido que a própria condição da existência do herdeiro necessário se torna um freio na liberdade de dispor, ainda em vida, da futura herança, como assinala o Professor Salomão de Araújo Cateb:

“… embora sendo, praticamente, seu o esforço da formação desse patrimônio, existindo herdeiros necessários sucessíveis, a lei estabelece um limite à sua vontade de distribuição desses bens” (Direito das sucessões. São Paulo: Ed. Atlas, 2007, p. 97).

Dessa mesma forma, a lei reflete a indisponibilidade total dos bens, em prejuízo do direito de um ou mais herdeiros necessários, em benefício de outro.

Assim, verifica-se dos autos que o imóvel foi doado aos filhos herdeiros pelos pais autores, sendo que, quando realizada a primeira doação, correspondente a 50% do imóvel, a filha menor Adriana Mendes não foi contemplada, motivo pelo qual pretendem o acertamento da antecipação feita para que todos os filhos possuam o mesmo percentual sobre o bem em debate.

Ora, como já dito alhures, o pedido dos autores é perfeitamente possível em nosso ordenamento jurídico, sendo que o adiantamento da legítima está expressamente previsto no art. 544 do CC/2002.

Dessa forma, é de se declarar nula a primeira doação realizada, pois esta preteriu descendente legítimo dos apelados, que também tem direito sobre os outros 50% do imóvel.

A propósito, cite-se:

“Direito civil. Doação a um herdeiro legal. Existência de outros herdeiros legais. Ação anulatória da doação. Nulidade parcial da doação. Possibilidade. Reforma da sentença. Procedência da ação. – As normas que permitem ao doador vir a doar o seu patrimônio ao mesmo tempo impedem que faça a doação da totalidade dele” (TJMG – Apelação Cível 2.0000.00.497449-0/000 – Rel. Des. Dom Viçoso Rodrigues – julg. em 16.12.2005 – DJ de 26.04.2006).

Dessarte, por tudo exposto, rejeito as preliminares e nego provimento ao recurso para manter incólume a sentença hostilizada.

Custas recursais, pela apelante. Suspensa a exigibilidade em face da justiça gratuita.

DES. AFRÂNIO VILELA – Estou a acompanhar o voto do em. Relator, Desembargador Fernando Caldeira Brant.

O art. 544 do CC/02 dispõe:

“Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança”.

Não pode, pois, um herdeiro ser privilegiado em detrimento de outro, mesmo que este tenha nascido posteriormente à doação.

DES. MARCELO RODRIGUES – De acordo.

Súmula – REJEITARAM AS PRELIMINARES E NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.

 

Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG