Quem é a família poliamorista brasileira? Pesquisa traça perfil de adeptos e evidencia negligência de direitos ao poliamor no Brasil

O poliamor ainda enfrenta a negligência do ordenamento jurídico brasileiro. Há dois anos, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ proibiu que cartórios registrem escrituras de uniões poliafetivas, mantendo uma parcela de entidades familiares à margem da sociedade. Assim, questões como multiparentalidade, adoção, pensão alimentícia, previdência e herança envolvendo essas famílias encontram controvérsias ao chegarem à Justiça.

Atenta a essa realidade, a bacharel em Direito Jéssica Sousa, membro da Comissão de Pesquisas Científicas e Jurisprudências da seção Distrito Federal do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM-DF, realizou pesquisa de campo a fim de traçar o perfil dos poliamoristas brasileiros, bem como a visão da psicologia e de líderes religiosos sobre o tema. Ela colheu dados a partir de questionários on-line de pessoas de 20 estados brasileiros e do Distrito Federal, em uma análise quantitativa e qualitativa.

“Ouvi falar sobre o poliamor pela primeira vez na universidade, em uma aula de Direito de Família, e fiquei completamente instigada a estudar o assunto, pois, para mim, era algo novo”, conta Jéssica. Ao projetar uma monografia sobre o tema, a então estudante se deparou com poucas doutrinas e pesquisas sobre o assunto. Assim, buscou traçar o perfil dos poliamoristas brasileiros, que já somam 302 entrevistados. “A pesquisa continua aberta, a intenção é continuar atualizando com os dados coletados”, afirma.

Perfil dos poliamoristas

No perfil traçado pela pesquisadora para os poliamoristas, identificaram-se pessoas de faixa etária variadas, de 18 a 67 anos de idade, de dois sexos biológicos (47,8% masculino e 48,5% feminino) e de diversos gêneros, além de uma lista de profissões e formações acadêmicas que retratam a formação elevada dos poliamoristas.

“O resultado demonstra que a escolha por um estilo diferente de vida não se dá por falta de instrução ou conhecimento, mas pela existência de instrução e conhecimento. Dentre os que possuem nível superior, somam-se 40,2%, seguidos de 27,6% que possuem o nível médio completo, 14,6% possuem especialização e 8% possuem mestrado e/ou doutorado. Apenas 9,6% se encaixam nas outras categorias de baixa instrução”, comenta a pesquisadora.

Entre os fatores que mais chamaram sua atenção, Jéssica destaca as crianças criadas a partir de um relacionamento poliamoroso como filhos de todos os envolvidos e recebedora de afeto de todos os pais e mães. Em contraposição à religião, por não consentir o poliamor, profissionais da mente acreditam que tal entidade familiar pode ser benéfica para os mais jovens.

“Analisando as consequências que o poliamor poderia causar na criação ou adoção de crianças, os psicólogos e psiquiatras entrevistados sustentaram em sua maioria que o que estabelece a saúde mental e a felicidade de uma criança não é a composição ou número de pessoas responsáveis por ela, mas a qualidade de afeto, atenção e carinho que essa criança irá receber”, pontua Jéssica.

Psicologia e religião

Ao iniciar a pesquisa, a então estudante notou ser grande a porcentagem de pessoas que indicavam a religião como uma das grandes causadoras do repúdio da sociedade ao poliamor. “Portanto, decidi entrevistar líderes de religiões distintas para saber se os dados coletados confirmariam a opinião dos poliafetivos ou se seriam divergentes.”

Entre líderes religiosos cristãos, 63,6% se disseram contra à existência e à regulamentação do poliamor. Coadunando-se à linha de pensamento dos poliafetivos, 92,3% dos psicólogos e psiquiatras entrevistados entendem a religião contribui para rejeição do poliamor em diversas esferas da sociedade.

“Existe um consenso da psicologia e da psiquiatria em relação ao poliamor: 91,9% são a favor do reconhecimento legal do poliamor como família, para que os envolvidos e as crianças oriundas do relacionamento tenham proteção jurídica. Ao serem questionados com perguntas abertas, 75% afirmaram que ser poliafetivo é saudável e não promíscuo”, detalha Jéssica.

Segundo a pesquisadora, os profissionais ouvidos ressaltaram atos e valores como consentimento, respeito, honestidade e fidelidade, imprescindíveis para qualquer relação interpessoal. “Sendo assim, para maioria dos entrevistados, não há nada de errado psicologicamente em ser poliafetivo e não ser monogâmico”, define Jéssica.

Poliamor está longe de ser novidade

Em seu estudo sobre o tema, Jéssica busca afastar o entendimento do poliamor como um modelo novo, atual, desconstruído. “É o modelo de família mais antigo que já existiu. Antes da Igreja do Império Romano estabelecer a monogamia como regra, o mundo era polígamo, assim como lemos na Bíblia cristã”, explica.

O estudo aponta que 98,7% dos poliamoristas vêm o poliamor como entidade familiar, ainda que não exista previsão legislativa a esse respeito. A união poliafetiva também é reconhecida como uma forma legítima de família por 91,9% dos psicólogos e psiquiatras entrevistados.

A pesquisa também identificou que 80,7% dos entrevistados entendem que o número de pessoas que se identificam com o poliamor está aumentando, seja pela disseminação e debate do tema nas mídias sociais ou por entenderem que, hoje, exista uma possibilidade real de viverem o poliamor, o que antes parecia impossível.

“Não regulamentar o poliamor não o fará deixar de existir”

Ela lamenta que o ordenamento jurídico brasileiro não abarque o poliamor. “Infelizmente a união estável trazida pelo nosso Código Civil, no artigo 1.723, se limita ao princípio da monogamia, não abarcando as famílias poliafetivas, mesmo diante do cumprimento de todos os outros requisitos: convivência pública, contínua, duradoura e com o objetivo de constituir família”, aponta.

“O poliamor é real, é comum, e não regulamentá-lo não o fará deixar de existir, pelo contrário, só prejudicará os envolvidos nesse relacionamento, principalmente as crianças. Estamos atrasados, e enquanto essas questões não abarrotarem o Judiciário, não teremos uma solução eficaz para protegermos essas famílias”, defende Jéssica.

Ela elenca diversas controvérsias a que se chega pela falta de previsão legislativa sobre o tema. “Como será feita a divisão de bens em caso de separação ou morte de um dos envolvidos? A pensão alimentícia das crianças criadas por todos, quem ofertará? A multiparentalidade poderá ocorrer no registro de uma criança criada com vários pais e mães?”, indaga.

“Poderia ocorrer uma possível regulamentação das uniões poliafetivas através da união estável putativa, que surgiu doutrinariamente como ‘concubinato de boa-fé’, e ocorre quando todos os envolvidos na relação tem conhecimento da não monogamia e optam por ela, inexistindo má-fé ou engano. A esperança é que essa boa-fé consiga gerar futuramente efeitos jurídicos de proteção jurídica a essas famílias”, finaliza Jéssica.

 

Fonte: Ibdfam