O contrato de divisão de bens vira garantia de paz negociada para casais em união estável e, em sua versão sem compromisso, é usado até por namorados que não pensam em passar disso.
Os advogados especializados em direito de família adoram repetir a piadinha: enquanto dura o casamento, só se fala “meu bem”; quando ele acaba, só se fala em “meus bens”. A eterna e desgastante disputa pela divisão do patrimônio quando o casal se separa vem sendo amenizada pelo recurso dos contratos que as duas partes assinam naquela fase em que falam um para o outro, muito antes de pararem de falar um com o outro. Os contratos podem ser feitos antes do casamento, mas são especialmente procurados por homens e mulheres unidos sem papel passado, que moram juntos ou levam notória vida em comum, no que se qualifica juridicamente como união estável. A advogada Priscila Corrêa da Fonseca, conhecida especialista em direito de família, calcula que 30% das pessoas que a procuram em seu escritório em São Paulo estão interessadas em um documento do gênero, tornado possível desde a implantação do atual Código Civil, em 2003.
Uma das mudanças mais importantes no código foi estabelecer que casais que moram juntos sem ser casados estão obrigatoriamente sujeitos ao regime de comunhão parcial dos bens, ou seja, compartilham meio a meio tudo o que construíram depois da união. Com a ressalva: o regime pode ser modificado por “contrato escrito entre os companheiros”, uma medida que favorece a livre escolha, sem a camisa-de-força da divisão automática de patrimônio. “A maior parte dos casais que resolvem assinar um contrato de união estável opta pela separação total dos bens, em que cada um sairá com o que adquiriu antes e durante o casamento. Mas a lei dá brecha para uma infinidade de acordos. Há parceiros, por exemplo, que fazem a divisão levando em conta a proporcionalidade do salário de cada um. Se o parceiro contribui com 20% dos gastos da casa, é essa a porcentagem que lhe caberá na partilha em caso de separação”, explica Adriano Ryba, da Associação Brasileira dos Advogados de Família (Abrafam).
A maior procura pelo contrato de união estável parte de homens viúvos ou divorciados, especialmente os que tiveram problemas de partilha no primeiro casamento. “Muitos dos meus clientes perguntam: e se ela não quiser assinar o contrato? Eu respondo: separe-se, porque ela está atrás do seu dinheiro”, ensina Priscila. Outro especialista na área, o capixaba Gustavo Bassini, exemplifica como a hesitação é sinal de segundas intenções: “Certa ocasião um casal veio ao meu escritório para assinar o acordo. Na hora H, a mulher saiu para fumar um cigarro e nunca mais voltou”. Símbolo de relação civilizada no presente e garantia de tranquilidade no futuro, o contrato tem um problema óbvio, a ideia embutida de que uma das partes tem receio de ser explorada financeiramente e de que a outra possa se dispor a isso. O ideal é que ambos os lados concordem espontânea e concomitantemente com a sua assinatura. Na ausência desse milagre, exige-se um mínimo de inteligência emocional para abordar o assunto sem provocar estragos. “Sempre digo, por exemplo, que o homem nunca deve vir ao escritório, elaborar um contrato e levar o documento pronto para a mulher assinar. Ela, com razão, vai se sentir muito mal”, orienta o advogado de família Luiz Kignel, de São Paulo.
No mundo teoricamente mais objetivo dos advogados, a experiência profissional ajuda no campo pessoal. Adriano Ryba, 28 anos, conta que quando foi dividir o teto com a namorada usou em proveito próprio o que pratica no escritório e assinou um contrato. “Fomos morar juntos para fazer um test-drive de casamento. Ficamos um ano assim e, nesse período, fizemos um contrato”, diz. Apesar da descrição algo técnica, ele incluiu no documento cláusulas menos materiais: “Comprometemo-nos a ficar juntos em caso de doença, a ser fiéis, a nos respeitar e amar. Também prometemos que nunca haveria violência física ou psicológica entre nós”. Eventualmente, casaram-se no papel, mas “o pacto de separação total de bens permaneceu”, diz Ryba, numa atitude que considera característica de “pessoas evoluídas, que conseguem prever um eventual fim da relação”. Aos menos evoluídos, as facilidades práticas permitidas pela assinatura do contrato de união estável podem constituir um incentivo. Se registrado em cartório (o que não é obrigatório no caso da divisão de bens), o documento é aceito para inclusão de dependente em convênios médicos e clubes, além de facilitar a liberação de seguro de vida, em caso de morte de um parceiro. “A tendência das famílias hoje é que sejam geridas pelo afeto, e não pela regulamentação do estado ou da igreja. Daí o contrato ter se disseminado, principalmente na classe média”, diz Bassini. Foi essa, exatamente, a motivação do estagiário William Farnum, 26 anos, ao propor o contrato a sua mulher, a farmacêutica Josiane Loureiro, da mesma idade. “Ao contrário de mim, ela tem renda fixa, além de apartamentos e carros que foram presentes do pai. Eu quis mostrar a ela e a sua família que, em caso de separação, não ia querer nada disso”, diz Farnum. A secretária Nair Hubner, 38 anos, usou argumentos menos elevados para propor o documento ao novo parceiro. “Eu e ele viemos de casamentos com parceiros que, na separação, nos levaram quase tudo. Agora, apesar do amor, temos também um pé atrás”, justifica.
A procura pelo contrato de união estável nos escritórios de advocacia resultou num inesperado filhote jurídico: o “contrato de intenções recíprocas”, que vem a ser um documento entre namorados que não querem passar disso. Nele, os dois deixam claro que não vivem em união estável, não estão interessados em constituir família e são independentes financeiramente. “Hoje em dia, a diferença entre namoro e união estável é muito tênue. Namorados viajam juntos, dormem juntos e, eventualmente, compram bens. Esse contrato serve para, lá na frente, em caso de separação, impedir o reconhecimento de uma união estável retroativa”, explica Priscila. “A sociedade vai inventando novos sistemas de casamento e a Justiça vai se adaptando, para abrigar a todos sob o manto da lei”, resume Kignel. Ou, pelo menos, amenizar aquela hora muito pouco civilizada em que uma parte só pensa em sair da relação, nem que seja com a roupa do corpo, e a outra conspira para que aconteça exatamente isso.
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Fonte: Site revista Veja