O paradoxo da lei 13.811/2019 e o registro civil

O que era uma situação usual no início do século XX, ou seja, o casamento de menores de 16 (dezesseis) anos, passou a ser repudiado pela maioria dos pensadores modernos, bem como, por boa parte da legislação, passando-se a entender, inclusive, que o referido matrimônio é um estímulo a prática de atos sexuais abusivos com a participação de menores de 16 (dezesseis) anos. Nessa linha de raciocínio, foi abolido do sistema de Direito Civil o suprimento de idade para fins de casamento (jurisdição voluntária), mantendo-se apenas o suprimento de consentimento para o maior de 16 (dezesseis) anos (art. 1.519 do Código Civil), com a injusta denegação dos representantes legais.

O Código Civil abarca os aspectos da capacidade para o casamento nos arts. 1.517 a 1.520, fixando 16 (dezesseis) anos como idade núbil, ou seja, presumindo tanto aptidão psíquica quanto sexual a consolidar a conjunctio maris et foeminae tão necessária a ultimação matrimonial. Dessa forma, nos termos do art. 1.517, enquanto não atingida a maioridade civil, para que seja autorizado o casamento é necessário que a pessoa tenha: i) atingido a idade de dezesseis anos e ii) a autorização de ambos os pais ou de seus representantes legais.

Em 12 de março de 2019, conforme acima mencionado, foi promulgada a lei 13.811, responsável por alterar o artigo 1.520 do Código Civil, regra que flexibilizava o casamento dos menores de 16 (dezesseis) anos. Antes da entrada em vigor da referida lei, era permitido o casamento de quem ainda não havia alcançado a idade núbil – 16 anos1-, nos seguintes casos: i) para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou ii) em caso de gravidez.

Com a modificação da redação originária pela nova lei, foi proibido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, ou seja, 16 (dezesseis) anos de idade, independentemente de qualquer autorização ou condição. Ressalte-se que o casamento do menor de 16 (dezesseis) anos já era, por regra, proibido, apenas sendo autorizado nos dois casos apresentados.

A doutrina civilista mais moderna, em comentários recentes, entendia, que das duas situações jurídicas mencionadas (evitar o cumprimento de pena criminal e gravidez), a primeira havia sido tacitamente revogada por força de modificação promovida no Código Penal Brasileiro2, não admitindo a extinção da punibilidade pelo casamento.

A lei 11.106, de 28 de março de 2005 revogou os incisos VII e VIII do art. 107 do Código Penal, não mais sendo permitida a extinção da punibilidade no crime de estupro presumido na hipótese de uma criança ou adolescente, com idade inferior a 14 (quatorze) anos, manter relação sexual com parceiro maior e se casar com ele3.

Mesmo após o advento da lei em questão, sustentavam alguns autores que a primeira parte do art. 1.520, do Código Civil continuava em vigor4, na medida em que a persecução dos “crimes contra os costumes” se dava por meio de ação penal privada.

Posteriormente, a lei 12.015, de 07 de agosto de 2009 introduziu o tipo penal de estupro de vulnerável – art. 217-A do Código Penal -, correspondendo a ação penal pública incondicionada, não tendo mais caráter de ação privada e, portanto, não poderia o casamento funcionar como forma de perdão tácito do crime.5-6 Nesse mesmo sentido, no ano de 2015, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que para a tipificação do crime de estupro de vulnerável basta que o agente tivesse conjunção carnal ou praticasse qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos, independentemente de experiencia sexual anterior ou relacionamento amoroso entre agente e a referida vítima. A presunção de violência passava a ser considerada juris et de jure, tornando irrelevante o consentimento ou não da vítima para prática do ato sexual.

Uma vez insubsistente a primeira hipótese autorizadora do casamento do(a) menor de 16 (dezesseis) anos de idade, remanescia a discussão do casamento em hipótese de gravidez. O sistema jurídico brasileiro sempre entendeu que o recôndito do casamento (família natural) é o melhor modelo para o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente. A interpretação preponderante era que a plenitude do art. 227 da Constituição Federal no que toca ao cumprimento da gama de direitos estatuídos no dispositivo tinha na família matrimonial a sua mais plena consecução. Aliás, o primeiro ente obrigado ao pleno desenvolvimento da criança e do adolescente é a família e a família matrimonial sempre foi uma das bases da sociedade (art. 226 e §§ 1º, 2º da CF). Essa sempre foi a razão da gravidez autorizar o casamento dos pretensos pais biológicos independentemente do critério etário, a fim de garantir o melhor desenvolvimento possível para crianças, adolescentes e jovens. Porém, com a revogação do art. 1.520, não sendo mais permitido, em nenhuma hipótese, o casamento do(a) menor de 16 (dezesseis) anos, passa o sistema jurídico a entender que o casamento não é mais o melhor modelo para o primeiro desenvolvimento da criança.

A doutrina entendia por um duplo interesse na regra impeditiva de anulação por motivo de idade no caso de gravidez, quais sejam: i) interesse familiar em que se não desfaça o matrimônio que frutificou com o advento da prole; ii) a invalidação traumatizaria os cônjuges e refletiria no filho, com todos os inconvenientes resultantes.7-8

Apesar de alterado o art. 1.520 do Código Civil pela lei 13.811/2019, o art. 1.550 – que trata da solução ou anulabilidade para o casamento daquele que não completou a idade mínima para se casar – não foi revogado, expressa ou tacitamente, de forma que a mera anulabilidade ainda continua em vigor, lembrando que na nulidade relativa e o interesse é privado e que, em caso de gravidez, de forma paradoxal, esta não pode operar.

Nessa linha, também permanece em vigor o art. 1.551 do Código Civil, no qual não se anulará, por motivo de idade, o casamento que resultou gravidez e os arts. 1552 e 1.553 que abarcam, respectivamente: i) a convalidação do casamento do menor que não atingiu a idade núbil, caso este, depois de completá-la, confirme a sua intenção de se casar, e ii) regras específicas a respeito da ação anulatória.

Na medida em que tais artigos continuam em vigor, se o oficial de registro civil se equivocar e casar pessoa grávida com 15 anos, tal casamento remanescerá válido e eficaz. A norma, na sua literalidade, apenas proíbe que o juiz autorize o casamento de menor de 16 anos em qualquer hipótese.

Observe-se o paradoxo. O juiz não tem mais poder para suprir a idade e autorizar o casamento na hipótese de gravidez, mas o Oficial Registrador pode habilitar, ainda que cometa falta administrativa disciplinar, o casamento de menor de 16 (dezesseis) anos em hipótese de gravidez e uma vez celebrado o matrimonio não pode ser o mesmo suscetível de qualquer anulação. Questões remanescem a serem analisadas: (i) O que impede o juiz, no exercício da jurisdição, autorizar o casamento em caso de gravidez, se a hipótese é de direito privado (anulação) e o melhor interesse da criança ser o fanal que sempre tem que orientar a jurisdição? (ii) O que impede o Oficial de Registro Civil de remeter o caso de gravidez ao Juiz Corregedor Permanente e esse autorizar o matrimônio, lembrando que a gravidez convalesce a anulabilidade e que o interesse é nitidamente particular? (iii) que espécie de falta administrativa disciplinar seria aplicada a um registrador civil que simplesmente habilita um casamento de menor de 16 anos com notória gravidez ciente de que a situação não é nula nem anulável diante de dicção expressa do Código Civil?

Diante de todas essas reflexões é possível concluir que com todos os problemas vividos na pós-modernidade o lar conjugal ainda é o melhor modelo para criação e desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens e que o comando do art. 227, caput, autoriza plenamente o alvará, bem com a celebração de casamento de menor de 16 (dezesseis) anos em caso de gravidez, sendo inócua a proibição do art. 1.520 nesta hipótese.

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1 Art. 1.517 do CC/2002.

2 Vide leis 11.106/2005 e 12.015/2009.

3 O Enunciado nº 329 da IV Jornada de Direito Civil, dispõe: “a permissão para casamento fora da idade núbil merece interpretação orientada pela dimensão substancial do princípio da igualdade jurídica, ética e moral entre o homem e a mulher, evitando-se, sem prejuízo do respeito à diferença, tratamento discriminatório”.

4 F. Tartuce – J. F. Simão, Direito Civil: Direito de Família, vol. V, 8a ed., São Paulo, Método, 2013, pp. 41-44.

5 Conforme entende G.F. Barbosa Garcia, “em se tratando de crimes contra os costumes de ação penal privada, persiste a possibilidade de extinção da punibilidade pela renúncia do direito de queixa, ou pelo perdão do ofendido aceito (art. 107, V, do Código Penal). Como o casamento da vítima com o agente pode ser visto como renúncia tácita, ou perdão tácito (conforme exercido antes ou depois da propositura da ação penal, respectivamente), mesmo que a aplicabilidade desta parte inicial do art. 1.520 do Código Civil de 2002 tenha se reduzido, ainda persiste”.

6 RECURSO ESPECIAL. PROCESSAMENTO SOB O RITO DO ART. 543-C DO CPC. RECURSO  REPRESENTATIVO  DA  CONTROVÉRSIA.  ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. FATO POSTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 12.015/09. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. IRRELEVÂNCIA. ADEQUAÇÃO SOCIAL. REJEIÇÃO. PROTEÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (STJ, Resp. 1480881/PI, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 26/08/2015, DJe 10/09/2015).

7 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, 26. Ed., v. 5, ed. Forense, 2018, p. 142.

8 Conforme dispõe R.C. Arnaud Neto: “Historicamente, a justificativa para a previsão legal dessa possibilidade sempre foi a de que, havendo gravidez, naturalmente uma família se formaria com a chegada do novo membro e, dessa forma, não fazia sentido que a lei lutasse contra algo que já se consubstanciou no plano dos fatos.” Dessa forma, buscava-se propiciar à criança uma convivência familiar com ambos os pais, estimulando a “paternidade responsável”. (Lei que proíbe casamento de menores de 16 anos vale para união estável? 05 abr. 2019. Migalhas.

 

Fonte: Migalhas