Jurisprudência mineira – Direito de família – União estável e petição de herança – Impossibilidade de reconhecimento da entidade familiar

DIREITO DE FAMÍLIA – UNIÃO ESTÁVEL E PETIÇÃO DE HERANÇA – IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DA ENTIDADE FAMILIAR – AUSÊNCIA DE ANIMUS DE CONSTITUIÇÃO DE FAMÍLIA – RECURSO PROVIDO – SENTENÇA REFORMADA – PEDIDO IMPROCEDENTE

– Além da dualidade de sexos, da publicidade, da continuidade, da durabilidade, do propósito de constituir família e da ausência de impedimentos ao casamento, o reconhecimento da união estável exige que entre os companheiros exista lealdade, respeito e assistência mútuos, bem como a coabitação se inexistir motivo relevante que a impeça. Inexistindo empecilho à coabitação, a existência de residências separadas conduz à inexorável conclusão de que se trata apenas de namoro, ausente o objetivo de constituição de família, o que corroborado pela manutenção em separado do patrimônio imobiliário e financeiro, pela inexistência de declaração de dependência e, ainda, pela ausência de participação de quem se diz companheira supérstite nas medidas pertinentes ao funeral.

Apelação Cível n° 1.0024.09.633617-7/001 – Comarca de Belo Horizonte – Apelante: A.F.S. e outro, L.C.O. C.A.O. – Apelado: M.A.C.S. – Relator: Des. Peixoto Henriques

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sob a Presidência do Desembargador Belizário de Lacerda, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em dar provimento.

Belo Horizonte, 25 de outubro de 2011. – Peixoto Henriques – Relator.

N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S

Proferiram sustentação oral, pelo apelante e pelo apelado, respectivamente, o Dr. Aluízio Rodrigues Lana e Marcos Chaves Viana.

DES. PEIXOTO HENRIQUES – Sr. Presidente.

Ouvi, com atenção, a sustentação oral do Dr. Aluízio Rodrigues Lana, assim como a do Dr. Marcos Chaves Viana.

Trago voto escrito e acredito ter abordado as questões suscitadas tanto nos autos quanto, hoje, aqui, da tribuna. Abro apenas um parêntese para fazer o seguinte registro: no contexto em que a prova testemunhal surge de certa forma não segura, permitindo certas incertezas, o melhor a se fazer é extrair dos documentos existentes nos autos a solução mais condizente, mais próxima daquilo que se acredita ser o ideal.

Conforme se extrai do relatório lançado nos autos, cuida-se aqui de apelação (f. 399/424) interposta por A.F.S., A.M.S., A.V.O., C.A.O., C.C.O., C.A.O., E.M.O.S., F.O.T., H.H.O.S., J.O.T., L.O.T., L.C.O. e M.F.J.O. contra sentença (f. 383/392) prolatada pelo MM. Juiz de Direito da 10ª Vara de Família da Comarca de Belo Horizonte, que, dirimindo "ação de reconhecimento de união estável c/c petição de herança" ajuizada por M.A.C.S., julgou procedente o pedido, reconhecendo a união estável da autora apelada com o falecido J.C.O. entre 1992 e 28.04.2009, bem como o direito a herança, tendo condenado os réus apelados ao pagamento de honorários advocatícios, no importe de quatro salários mínimos, suspensa a exigibilidade a teor da Lei nº 1.060/50.

Em linhas gerais, sustentam os apelantes: que a sentença dá exclusivo valor à prova testemunhal apresentada pela autora; que inexiste prova documental que corrobore com a existência de verdadeira união estável; que a autora e o falecido residiam em apartamentos diferentes, tinham bens, contas e patrimônio separados, sendo meros namorados; que não devem ser admitidas declarações escritas, pois afrontam o devido processo legal; que é equivocado considerar indícios de namoro (cartões de namorados, recibos de hotel, fotografias e recibos de compra) como indícios de casamento; que a existência de fotografias não prova que a autora era companheira do falecido; que inexiste prova da intenção de constituição de família; que a requerente nem sequer figurava como dependente do autor da herança no imposto de renda, plano de saúde ou Ipsemg; que, paralelamente ao namoro, o falecido teve outros relacionamentos amorosos, ausente o animus familiae; que inexiste prova de soma de empreendimentos financeiros com esforço de ambos; e, por fim, que não há motivo relevante que justifique o afastamento e ausência de  residência comum.

Requerem o provimento do recurso para reformar a sentença, julgando-se improcedente o pedido.

Dispensável o preparo (Lei nº 1060/50).

Contrarrazões ofertadas (f. 426/451).

Mostra-se desnecessária a intervenção do Ministério Público, conforme Recomendação Conjunta PGJ/CGJ-MP nº 03/2007 e manifestação de f. 460. Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso.

A apelação merece provimento.

Como todos sabem, a união estável tem amparo legal nas disposições do art. 266, § 3º, da Constituição Federal, bem como nos arts. 1.723 e 1.724 do vigente Código Civil. Atento a tais preceitos, ensina Rodrigo Cunha Pereira:

"O delineamento do conceito de união estável deve ser feito buscando os elementos caracterizadores de um ‘núcleo familiar’. É preciso saber se daquela relação nasceu uma entidade familiar. Os ingredientes são aqueles já demarcados principalmente pela jurisprudência e doutrina na pós-constituição de 1988: durabilidade, estabilidade, convivência sob o mesmo teto, prole, relação de dependência econômica. Entretanto, se faltar um desses elementos, não significa que esteja descaracterizada a união estável. É o conjunto de determinados elementos que ajuda a objetivar e a formatar o conceito de família. O essencial é que se tenha formado com aquela relação afetiva e amorosa uma família, repita-se. Os elementos intrínsecos e extrínsecos, objetivos e subjetivos, em cada caso concreto, são os que nos ajudarão a responder se ali está caracterizada, ou não, uma união estável" (DIAS, Maria Berenice (Coord.). Direito de família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, p. 209/210).

A seu turno, o c. Tribunal da Cidadania já assentou:

"A análise dos requisitos ínsitos à união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, a fidelidade, entre outros" (REsp nº 1157273/RN, Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, DJe de 07.06.2010 – ementa parcial) In casu, força convir, inexistiu a fidelidade (considerando-se o início do relacionamento) bem como a convivência sob o mesmo teto, a relação de dependência econômica e o objetivo de constituir família, elementos basilares para que se possa reconhecer como união estável o relacionamento ou
a convivência entre um homem e uma mulher. No que tange à coabitação, atente-se para a lição de Fabrício Zamprogna:

"A convivência sob o mesmo teto não é pressuposto essencial para que se configure a união estável, mas a prova da sua existência normalmente parte da manutenção de um lar comum, onde ambos os companheiros desfrutam do domicílio único e se conservam em ambiente semelhante ao gerado pelo matrimônio. Em vista disso, a convivência more uxorio, sob o mesmo teto, acaba funcionando como elemento formador da convicção do juiz a quem couber a análise da matéria, ainda que não conste da lei como fator essencial ao estabelecimento da entidade familiar" (Código Civil comentado. 2. ed. São Paulo: LTR, p. 1.126).

Levando-se em conta que a autora e o falecido não possuíam impedimentos para o casamento, ambos tinham renda própria e mantinham relacionamento amoroso, não se vislumbra empecilho para que convivessem sob o mesmo teto, estabelecendo um domicílio familiar.

Não há comprovação de convivência marital em qualquer um dos dois imóveis do falecido (apartamento e sítio) ou no da autora (apartamento).

Aliás, se ambos possuíam patrimônio e mantinham a titularidade dos imóveis em separado, a única conclusão possível é de inexistência do desejo de constituição de residência comum.

Além disso, autora apelada e o falecido não possuíam conta-poupança e/ou corrente conjunta e sequer foi aquela elencada como dependente do falecido na declaração de seu imposto de renda. Tais fatos, a seu turno, corroboram a conclusão de que a vida financeira de ambos era completamente dissociada, inexistindo bens integrantes da suposta entidade familiar.

Permito-me aqui uma pequena observação: ao exame da certidão de óbito, constata-se que o autor da herança faleceu em seu domicílio, por infarto do miocárdio. Todavia, a certidão de óbito foi  lavrada mediante apresentação de atestado médico pela sobrinha do falecido, numa eloquente demonstração de que não havia coabitação e convivência marital, conforme alegado pela autora apelada.

Nesse contexto, inevitável concluir que o falecido não tinha convivência marital única e exclusiva com a apelada, visto manter em separado seu patrimônio, notadamente imobiliário e financeiro, além de ter falecido sozinho em seu domicílio, ficando a cargo de sua sobrinha as providências para a feitura da correspondente certidão de óbito.

Venhamos e convenhamos, não tem o objetivo de constituir família quem, sem empecilho relevante e possuindo mais de um bem imóvel, não estabelece em um deles o domicílio familiar ou adquire outro em nome de ambos os conviventes.

A propósito, eis a jurisprudência:

"Apelação cível. Reconhecimento de união estável. Requisitos. Art. 1.723 do CC. Ônus da prova. Autor. Namoro sério x união estável. Inexistência do requisito ‘objetivo de constituição de família’. Coabitação. Forte indício. – Para a configuração da união estável, são indispensáveis alguns requisitos, quais sejam: dualidade de sexos, convivência duradoura e contínua, honrabilidade (respeito entre os conviventes), notoriedade de afeições recíprocas, fidelidade presumida, coabitação (no sentido de não aceitar o simples namoro ou relação passageira) e, principalmente, o objetivo de constituir família. A coabitação não é elemento essencial para a caracterização de união estável, mas normalmente é um indício importante, sendo que se admitem situações em que os conviventes não residem sob o  mesmo teto, quando há um relevante motivo que impeça a concretização de tal circunstância. Na ausência de motivo relevante, a não coabitação entre um casal jovem, livre e desimpedido durante anos se afigura como indício de inexistência de união estável. O namoro sério é muitas vezes confundido com união estável, sendo o requisito ‘objetivo de constituição de família’, o elemento diferenciador entre os dois, que deve ser aferido em cada caso, de acordo com suas circunstâncias específicas" (AC nº 1.0145.99.001607-6/001, 4ª CCív/TJMG, Rel. Des. Dárcio Lopardi Mendes, DJ de 10.12.2008).

"União estável. Entidade familiar. Coabitação.

Ausência de provas. – Para que se possa reconhecer a união estável a que se refere o § 3° do art. 226 da Constituição Federal, é necessária a comprovação, não apenas de um relacionamento duradouro, mas da intenção do casal em constituir uma família em comunhão de vida e de interesses. Não comprovada a existência de uma entidade familiar, que exige, em nossa sociedade, a coabitação pública, não se reconhece a união estável" (AC nº 1.0471.04.036805-5/001, 2ª CCív/TJMG, Rel. Des. Jarbas Ladeira, DJ de 03.08.2007).

Por fim, insta frisar que a realização de passeios/viagens, a retirada de fotos do casal e a aquisição de bens móveis são comuns na maioria dos namoros, não constituindo prova hábil ao reconhecimento de uma união estável.

Além da dualidade de sexos, da publicidade, da continuidade, da durabilidade, do propósito de constituir família e da ausência de impedimentos ao  casamento, o reconhecimento da união estável exige que, entre os companheiros, exista lealdade, respeito e assistência mútuos, bem como a coabitação, se inexistir motivo relevante que a impeça. Inexistindo empecilho à coabitação, a existência de residências separadas conduz à inexorável conclusão de que se trata apenas de namoro, ausente o objetivo de constituição de família, o que corroborado pela manutenção em separado do patrimônio imobiliário e financeiro, pela inexistência de declaração de dependência e, ainda, pela ausência de participação de quem se diz companheira supérstite nas medidas pertinentes ao funeral. Desse modo, sopesando o conjunto probatório trazido nos autos, concluo que não se mostram realmente presentes os requisitos  básicos que caracterizem a união estável cujo reconhecimento se reclama.

Data venia, censurável o decidido, impondo-se sua reforma.

Isso posto, dou provimento à apelação para reformar a sentença e, em decorrência, julgar improcedentes os pedidos formulados na exordial.

Como consectário, altero os ônus sucumbenciais, condenando a autora apelada ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, estes no importe de R$1.000,00, suspensa a exigibilidade de tais encargos nos precisos termos do art. 12 da Lei nº 1.060/50 (v. f. 43).

Custas recursais, ex lege.

É como voto.

DES. OLIVEIRA FIRMO – Sr. Presidente.

Essa causa me causou – se aí houve um trocadilho – uma impressão forte, muito mais pelo tema que ela afere do que, propriamente, pelas discussões na forma como eu as ouvi conduzidas da tribuna. Os autos, de fato, são avolumados e de alguma sorte de provas que, a meu juízo, seriam dispensáveis, exibindo, às vezes, intimidade das pessoas, sem qualquer necessidade. Em razão disso, meu voto escrito se adiantou um pouco mais, porque acho que esses autos revelam uma situação que, nos dias que correm, para nós, é interessante de detectar e de
discutir.

Cuida-se de um comportamento que se vai estabelecendo na sociedade em que as pessoas mais se distanciam das instituições clássicas, das relações ortodoxas, e passam a buscar convivências que mais tragam sentimentos bons, tranquilidade e, até mesmo, prazer para aqueles que estão envolvidos na relação e que, muitas vezes, se confundem com o que nós estamos acostumados. Por um lado, o chamado casamento institucionalizado hoje já se estendendo para pessoas de mesmo sexo fisiológico e também se confundindo, por outro lado, com a chamada união estável que foi a saída que o homo medius teve diante da rigidez da legislação que, sabemos, vem um pouco a reboque da realidade social.

Neste caso específico, como envolve pessoas mais maduras, que já se encontraram na vida num momento em que cada qual talvez já tivesse realizado algumas de suas pretensões ou alguns de seus sonhos já pudessem ter desvanecido, estabeleceu-se entre eles, a meu sentir e pelo que dos autos eu colhi, um relacionamento diferente, a que eu chamo de "namoro da maturidade".

Sob esse aspecto, como o Relator, embora com alguma divergência quanto ao enfoque, não vi demonstrado esse intuitu familiae, essa vontade direcionada a constituir uma família entre os conviventes, os namorados, se assim posso chamar, embora, para mim, seja evidente que houve um relacionamento sincero, possivelmente fiel por parte de ambos, foram dedicados ao relacionamento a que se propuseram.

Entendo que, embora o feito traga oitiva de testemunhas por parte dos requerentes, e não sei se eles teriam quanto provar nesse sentido, eles são sobrinhos, se são abutres ou outras espécies do reino animal, é direito deles suceder ao tio, se de fato for direito deles. É uma questão de direito sucessório, não é uma questão da relação de outra pessoa com um parente. De fato, eles próprios provaram que não tinham contato com o tio, o que não afasta o direito de sucederem o tio eventualmente. Mas acho que não foi discutido nos autos, à saciedade, de forma que nos pudesse convencer, como se deu essa relação e se havia esse interesse das partes em que ela fosse uma união estável.

Curiosamente, destaquei isso: "preocupou-se muito em discutir a condição do varão". Ora, não me parece que uma relação se dê unilateralmente. Para ela concorre a vontade dos dois e, nesse processo, embora se esteja pretendendo, por via reflexa, como consequência de um reconhecimento, também os direitos patrimoniais, e isso acho que não se deve pejar nem uma parte nem outra, porque é direito, não se preocupou em demonstrar a vontade dela própria, varoa, ora apelada, em constituir aquela relação. Ficou-se muito focado nele, como se só a sua vontade prevalecesse, quando sabemos que, de uma forma mais oblíqua, os homens se relacionam, constituem a relação, fazendo acreditar que estão numa relação estável, mas, muitas vezes, são dúbios também. E aí fica a pergunta: a vontade é de um só dos cônjuges, de ambos, ou a vontade é a percepção que os outros têm daquela relação?

Só me permiti essas considerações porque, de fato, o caso me chamou a atenção, achei bastante interessante e, com as vênias de estilo, acompanho o Relator nos termos do voto escrito:

I – a)

1. Sr Presidente, os autos cuidam de matéria deveras interessante. Para seu desate, consoante a lide que a traz à nossa presença, dando-lhe a moldura do "caso concreto", entendi-me desafiado a tecer algumas considerações, nas quais mais me adiantei do que o esperado de um Revisor de tão laborioso e profundo Relator quanto Sua Excelência o Des. Peixoto Henriques.

2. É causa de família e, como tal, tem, nos fatos o segredo de seu deslinde, a sede de sua solução. É seara que nos põe a lidar com redobrado cuidado e meticulosa atenção, porque valores maiores se alevantam, sensibilidades e intimidades se expõem para além da privacidade, e até mesmo interesses menores tomam corpo e extensão. Batear e joeirar, eis a sina que se nos afigura para compreensão e solução desta causa.

3. A sentença atacada reconheceu a união estável de J.C.O. e M.A.C.S. e, como consequência, ensejou à ora apelada habilitar-se a herdeira natural do falecido (solteiro, sem pais vivos ou filhos), apoderando-se de todo o espólio, bem como até autorizada a pedir pensão previdenciária.

4. Em razões de recurso (f. 399-424/TJ), alegam os apelantes: a) inexiste prova documental; b) contas, bens e patrimônios dos conviventes separados; c) viviam em apartamentos diferentes; d) meros namorados, cada qual prestigiando sua individualidade, em namoro prolongado; e) declaração da médica (f. 15/16-TJ) é inválida porque
não declarou fatos que presenciou.

Enfim, nada serve para os apelantes; para eles só valeria uma declaração do falecido, de viva voz e por escrito, perante o juiz. E ainda assim achariam que ele estaria equivocado, induzido, louco.

I – b)

5. À vista da liberalidade de condutas vigente nos tempos que correm, sinalizando mesmo a época presente, muito dificultada fica a tarefa de divisar num relacionamento – hoje não mais restrito a homem e mulher (STF: ADI nº 4.277 – Rel. Min. Ayres Brito, j. em 05.05.2011 e ADPF nº 132 – Rel. Min. Ayres Brito, j. em 05.05.2011) – aquele que se possa dizer um companheirismo despretensioso, um namoro ou uma união estável. Ao fim e ao cabo, dois amigos – um casal de diferente ou mesmo gênero – que muito se visitem, viajem juntos, e até mesmo formem uma "república" para ocuparem um mesmo imóvel se sujeitam mutuamente – e a seus herdeiros – de se verem envolvidos numa trama judicial para definir-lhes, juridicamente, a natureza da relação que tiveram.

6. Muito nos impressiona em casos tais o aspecto material (patrimonial) – imobiliário, econômicofinanceiro, previdenciário – que tais disputas contemplam como pano de fundo. Porém, de plano devemo-nos distanciar dessa influência para,  focados na relação dos envolvidos, dela extrairmos a intenção (elemento subjetivo) dos conviventes. Em casos tais – como na espécie -, já previne a doutrina que a "presença ou não deste elemento subjetivo será definida pelo juiz, diante das circunstâncias peculiares de caso concreto" (CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. In PELUSO, Cezar (Coord.). Código Civil comentado. Barueri: Manole, 2007, com. art. 1.723, p. 1700).

7. Eis que, nos termos da lei (CF/88, art. 226, § 3º: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento." – Lei nº 9.278/1996, art. 1º: "É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família." – CC/02, art. 1.723: "É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família."), para se caracterizar uma união estável há de haver longa duração, publicidade e o intuito de formar família (intuitu familiae). Ora, a publicidade é elemento objetivo, cuja prova não é difícil; a longa duração terá um aspecto mais subjetivo, embora, no contexto, possa se aferir a estabilidade do relacionamento no tempo. Resta averiguar acerca do intuito familiae.

II – a)

8. O ponto fulcral – especialmente para o caso em exame – reside exato na intensidade, aspecto subjetivo (Na doutrina, cf. a respeito, dentre outros, FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. 2 ed., rev. ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, cap. V, nº 4.2, p. 449-450.) – requisito principal, "corolário de todos os elementos legais antecedentes [art. 1º da Lei nº 9.278/1996]" (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direitocivil: direito de família. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006, v. 6, cap. 2, nº 2.4.1, p. 45) – que conduziu a relação – no caso inegável – havida entre J.C.O. e M.A.C.S. Em princípio, a affectio maritalis que pautou a relação do casal nos autorizará a dizê-lo em união estável, ou não. Quanto a M.A.C.S., a se considerar a petição inicial destes autos, ela não duvida que sim. Se vivo, J.C.O. confirmaria isso? E mais, a assertiva dos conviventes falará mais alto do
que seu comportamento social, refletido na opinião das pessoas próximas?

9. Em percucientes considerações, a Des.ª Maria Elza, em julgado deste Tribunal de Justiça (TJMG), ponderou:

"Não é qualquer relacionamento amoroso que se caracteriza como união estável, sob pena de banalização e desvirtuamento de um importante instituto jurídico.

Se a união estável difere do casamento civil, em razão da informalidade, a união estável vai diferir do namoro pelo fato de aquele relacionamento afetivo visar à constituição de família.

[…]

Este traço distintivo é fundamental dado o fato de que as formas modernas de relacionamento afetivo envolvem convivência pública, contínua, às vezes duradoura, com os parceiros, muitas vezes, dormindo juntos, mas com projetos paralelos de vida, em que cada uma das partes não abre mão de sua individualidade e liberdade pelo outro. O que há é um eu e um outro, e não um nós.

Não há nesse tipo de relacionamento qualquer objetivo de constituir família, pois, para haver família, o eu cede espaço para o nós. Os projetos pessoais caminham em prol do benefício da união. Os vínculos são mais sólidos, não se limitando a uma questão afetiva ou sexual ou financeira. O que há é um projeto de vida em comum, em que cada um dos parceiros age pensando no proveito da relação. Pode até não dar certo, mas não por falta de vontade.  Os namoros, a princípio, não têm isso. Podem até evoluir para uma união estável ou casamento civil, mas, muitas vezes, estagnam-se, não passando de um mero relacionamento pessoal, fundados em outros interesses, como sexual, afetivo, pessoal e  financeiro. Um supre a carência e o desejo do outro. Na linguagem dos jovens, os parceiros se curtem" (TJMG – 5ª Câmara Cível – Ap. Cív. nº 1.0145.05.280647-1/001 – Comarca de Juiz de Fora – Rel.ª Des.ª Maria Elza, j. em 18.12.2008, p. em 20.1.2009).

10. Há de se estabelecer, pois, como premissa, se seria definitiva a vontade expressa – confessada, negada – ou implícita – consentida, tácita – de qualquer dos partícipes para definitivamente caracterizar-se a relação. E isso porque há mesmo nos foros judiciais disputa entre vivos quanto a reconhecer-se se o idílio dos envolvidos é união estável ou não. E, modo geral, no pano de fundo, reluzente brilha o cobre.

11. Certo é que não se deve, necessariamente, na espécie, perquirir-se a vontade esclarecida do falecido J.C.O., senão a conduta do casal – ele e ela – inequívoca e demonstrada quanto a constituir-se em união estável. E não se bastará, por certo, apenas naquelas aparências aferíveis de atitudes comuns aos relacionamentos afetivos quaisquer, como em se fazerem acompanhar em eventos sociais, viajarem nas férias, passearam juntos e serem flagrados em atitudes carinhosas de maior intimidade.

12. A união estável é situação de fato que dá "aparência de casamento", independentemente de haver prole comum (TRF – 2ª R – AC nº 2001.51.01.012097-1 – Rel.ª Juíza Federal Conv. Maria Alice Paim Lyard, j. em 08.11.2007), da coabitação (STJ: AgRg nº Ag nº 1.318.322/RS – Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, j. em 07.04.2011; REsp nº 1.107.192/PR – Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, j. em 20.04.2010; REsp nº 1.096.324/RS – Rel. Min. Honildo Amaral de Mello Castro, j. em 02.03.2010; REsp nº 474.962/SP – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. em 23.09.2003; REsp nº 474.581/MG – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes de Direito, j. em 12.08.2003. Por todos, STF, enunciado da Súmula 382: "A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato") e até mesmo da dependência econômica (STJ – REsp nº 275.839/SP – Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, j. em 23.10.2008), embora sejam todos elementos que, presentes, reforçam favoravelmente a tese de união estável; e, ausentes, desafiam redobrado esforço de explicarlhes a ausência. É que o casamento, com relação ao qual a união estável é vista como um arremedo, um simulacro, uma caricatura, um decalque, alcança todas essas características por tradição.

13. O casal em união estável tem, efetivamente, vida comum. Não se peja de se apresentar em público como "marido e mulher", "esposo e esposa", não se consentindo nem com o título de companheiros, pelo sentido pejorativo que durante muito tempo acompanhou o substantivo. Viajam juntos, como sempre juntos são vistos, seja em eventos sociais ou mesmo na rotina privada (supermercado, shopping, finais de semana, bares, restaurantes).

Definitivamente como casal, frequentam a família de um e outro em visitas cordiais, casamentos, batizados, formaturas, hospitais, velórios, celebrações religiosas, etc. Se visitam amigos ou parentes com pernoite, ocupam a mesma alcova, partilham do mesmo leito, que naturalmente lhes é preparado. São recebidos em todo canto como casados. Mas ainda o mais importante e distintivo é que, em se apresentando apartados, são cobrados cortês e naturalmente da presença do faltoso, oportunidade em que prontamente sabem dizer do paradeiro do outro.

14. Tudo isso, não obstante que como namorados também possam se apresentar em público e em análogas situações. É que o namoro também pode ser duradouro, e nele, necessariamente, os namorados não moram juntos.

É comum, todavia, nos dias que correm, sobretudo em cidades universitárias, jovens casais de namorados dividirem o mesmo teto por questão de economia, sem necessariamente haver entre eles vontade deliberada de, naquele momento de vida, pronunciarem-se publicamente companheiros em união estável, nem mesmo ainda marido e mulher. Em situações que tais, comparecem socialmente e frequentam-se no ambiente familiar recíproco como namorados.

15. O quanto vimos de relacionar deflui da dimensão da complexidade antropológica e sociológica que a questão envolve e sugere em desafio, reflexão. Há, no ambiente comportamental e mesmo psicológico, muito a explorar. Assim é que a prova da união estável se revela para além daquelas atitudes que, mesmo no casamento, se tornam dispensáveis, mas tão comuns no namoro. Se, para provar o casamento, basta o documento, uma mera certidão do respectivo assento em livro próprio, guardado na serventia registral acreditada, a união estável desafia o recontar de uma história com as evidências de atitudes (externo), sentimentos e proposições, particulares e comuns (internos). É que a união estável se caracteriza por uma livre opção dos conviventes, de quem se desafia permanente atitude de "namoro eterno"; não basta que os companheiros se desejem e se queiram como tais, mister que verbalizem e publicizem (atos e omissões) seus sentimentos, para que alguém possa testemunhar essa disposição implícita na relação. Caso contrário, torna-se um não mais do que lindo e misterioso discreto caso de amor.

II – b)

16. J.C.O., hoje falecido, embora na boca de algumas das testemunhas tivesse M.A.C.S. por "companheira" ou "esposa" (e outras tantas testemunhas, por declarações – f. 15-16, 23-26, 80- 85 -, mas longe do contraditório), não parece muito convicto dessa situação em sua vida. Sua conduta, sobretudo marcada por envolvimentos afetivos intensos, não demonstra, contudo, sua indisposição deliberada em criar laços afetivos conducentes à inevitável constituição familiar, até porque conviveu maritalmente com N.F.R. por uns 20 (vinte) anos. Estaria satisfeito com a experiência, por assim dizer. Mesmo que muito convençam os autos de uma saudável e sabida relação afetiva com M.A.C.S., chegando numa ocasião a presenteá-la com eletrodomésticos e uma mesa de cozinha (f. 39-40), ou mesmo a custear-lhe o tratamento dentário (f. 330) e mandar-lhe vez por outra um cartão, não deixou registrados outros sinais no sentido de manter com ela união estável.

17. As testemunhas E.C. (f. 330) e R.C.B.D.C. (f. 331) afirmam que J.C.O. dizia que M.A.C.S. era sua companheira, e elas próprias os tinham como marido e mulher. J.S.B.F. (f. 332), de sua parte, é mais contundente, afirmando que o casal habitava as 3 (três) moradas e nelas, como marido e mulher, recebiam, tendo a testemunha por vezes saído para restaurantes ou viajado com eles. Também a testemunha M.A.C.M. (f. 333), vizinho do sítio de Itatiaiuçu – MG, confirma a presença do casal ali como marido e mulher, e como tal reconhecido naquela comunidade.

Para tão longa vida em comum, poucas testemunhas. Dispensaram-se inexplicavelmente várias oitivas que para casos como o da espécie são muito importantes, como, por exemplo, de uma antiga empregada. Lastimável que tantas declarações escritas não pudessem ser confirmadas em juízo, sob o crivo do contraditório.

18. Não seria menos certo dizer que atitudes por vezes inequívocas possam trair a racionalidade daquele que se fecha em copas contra as instituições da nossa tradição judaico-cristã. Vale destacar, em considerando que notável varão, muito hábil mestre nas lides do amor (f. 212-278), homem umbilicalmente ligado à Justiça e às coisas da lei – foi Oficial de Justiça -, não se preocupasse J.C.O. em fazer um testamento para beneficiar sua companheira, ou ao menos incluí-la como beneficiária na Previdência Social, nem mesmo lhe dedicou um seguro de vida. Eis que aquele que vive em comunhão de espírito, em sincera ligação afetiva, enfim, sob sério compromisso, sempre cuida do outro, preocupando-se com seu bem-estar presente e futuro. J.C.O. bem sabia da fragilidade de sua existência, chagoso que era, cardiopata então, além de já se ir adiantando nos anos; convivia há muito tempo com M.A.C.S., que, pela boca (caneta) de muitos, era mesmo sua companheira (esposa), sempre vista em sua companhia, mas em momento algum – e isso causa mesmo espécie -, preocupou-se em sufragar para a posteridade qualquer pretensão patrimonial dela, acaso morresse ele antes (como aconteceu). E isso ainda embora sabendo-se com parentela (sobrinhos) próxima no sangue, mas distante na convivência, que, em processo de inventário, poderia desviar-lhe o patrimônio e colocá-lo à mercê e gozo destes que nunca se preocuparam com o tio.

II – c)

19. De outro lado, não importa, assim, que os sobrinhos tenham mantido ou não convivência com o tio. A lei sucessória não o exige para legitimar herdeiros. A intimidade familiar decerto não havia entre eles, o que, por um lado, sinaliza um distanciamento institucional (família) por parte do falecido – que é quem nos interessa observar. Mas é um tanto revelador, sintomático até, talvez sendo fiel à própria conduta, J.C.O. não convivia também com a família de M.A.C.S. Pelo menos os autos não denunciam isso. Teria mesmo havido um desentendimento entre os irmãos de M.A.C.S. e J.C.O. (f. 287). Parece ser um distintivo da sua personalidade: um homem afetivo – em algum tempo namorador até -, mas "não-família".

20. É dos autos, na recuperação da história do falecido J.C.O., que ele terá vivido maritalmente com N., mercê de conúbio religioso em 07.12.1971 (f. 159), perdendo-a, no entanto, no acidente de trânsito em que ele mesmo, sobrevivente, esteve envolvido. Foi um relacionamento longo, de quase  20 (vinte) anos! Não era, pois, desafeito a formar família, embora pudesse ter-se tornado refratário ou mesmo avesso à ideia de um novo casamento por algum trauma. Manteve, possivelmente, dois relacionamentos até 1993: com C. e M., a "M." (f. 275-278). Por tudo, no entanto, é certo que as partes não exploraram essa faceta psicológica do falecido, nem se esmeraram em deixar claro nada quanto a isso. Mas parece induvidosa a fidelidade do falecido a M.A.C.S., pois, quanto aos namoros (a não ser pelo depoimento inconsistente de C.), não há notícia de relacionamentos paralelos.

II – d)

21. Reclamam os apelantes que a sentença não deu atenção aos testemunhos que trouxeram aos autos. Mas não nos ocorre que deveria ser de maneira diversa. Em depoimento pessoal dos apelantes ouvidos, demonstraram completo desconhecimento da vida do tio, em nada contribuindo para a solução da lide (f. 327-329). A testemunha J.V.F., vizinho do falecido, pouco o via, mas dá notícia do relacionamento exclusivo dele com M.A.C.S., acrescentando que os acreditava namorados porque ela não morava com ele e não vivia no dia a dia com ele, o que certamente não poderia afirmar desde que "tinha pouco contato com o finado" (f. 334); O.F.P., justamente a partir de 1992 (início da relação de J.C.O. e M.A.C.S.) pouquíssimo contato teve com o falecido (f. 335); e M.M.M. nada sabe e o que diz é por informação dos apelantes (f. 337). 22. Merece a atenção minguada que lhe deu a sentença ao depoimento de C.M.C. (f. 336), apaixonada amante do falecido J.C.O., a quem endereçava intensa e fogosa correspondência até aproximadamente 1993, quando ele já estava se relacionando com a apelada M.A.C.S. A partir daí, dela não há sequer um cartãozinho de boas festas, ainda que fosse daqueles impressos dos Correios. Embora os autos recolham cartões – raros, é verdade – de J.C.O. para M.A.C.S., nenhum há que tenha mandado o falecido para a apaixonada C. Mesmo que afastada a contradita, muito se deve cuidar em reservas de consideração ao depoimento de C., pois se diz namorada do falecido desde 1991 até a sua morte, quando nos autos é sabida e reconhecida a relação dele com M.A.C.S., evidenciando um nítido interesse ou absoluto desconhecimento de C. em desqualificar ou até mesmo negar o que de todos é sabido: o relacionamento duradouro de J.C.O. e M.A.C.S.

C. diz que se relacionava com o falecido até 1993 (f. 273). Nisso ela acredita, mas, para nós, só é induvidoso que ela muito lhe escrevia, intensa e calorosamente, até essa época. Ele, por sua vez, não lhe respondia, pois não há qualquer documento nesse sentido e nem quem diga que a conhecera na companhia do falecido.

E, se porventura mantiveram qualquer relacionamento após 1993, só ela mesma dá notícia, pois ninguém (testemunha) mais a conhece ou mesmo sabe de sua existência. A acreditar nela, sua posição na história é de uma possível amante do falecido.

II – e)

23. Aspecto de relevo para a espécie reside na análise do quanto representava a relação do casal para M.A.C.S. É que numa relação se prestam a construí-la e a mantê-la o papel e a postura de cada qual. Também da parte da requerente apelada, dela os autos pouco ou nada falam. Cuida observar que se tenha descurado de fazer ver qual era a sua posição na relação que pretende estável com J.C.O., qual era o seu intuito na convivência com o falecido. Indica apenas que foi beneficiária de agrados materiais do falecido, quais sejam pagamento de tratamento de dentes, compra de eletrodomésticos e móvel, bem como a ajuda na aquisição de uma automóvel e um imóvel na Rua Atenas, nº 25 (f. 450).

24. Assim, muito embora neste feito a requerente apelante pretenda que se reconheça a união estável do casal, não logrou provar, sequer mesmo de sua parte, que houvesse, de fato, na relação, o cunho de união estável. Dela própria, para além de afirmar com finalidade judicial seu pedido, não faz prova de que tivesse J.C.O. por seu companheiro; tendo ela casa montada, não fez ver que ele frequentasse aquele local, ainda que somente para marcar sua posição pública de companheiro estável dela; não trouxe provas documentais ou depoimentos de pessoas de sua relação profissional ou da vizinhança a darem conta de tratar-se de um "casal casado"  J.C.O. e M.A.C.S.

25. Conforme já bastante posto pelo eminente Relator deste processo, a questão da coabitação é pergunta sem a resposta satisfatória nos autos. Ainda que não se finque a definição de uma união estável no fato isolado da coabitação, na espécie não há prova eficiente daquilo que a apelante afirma quanto a que o casal tivesse 3 (três) residências ocupadas pelos companheiros indistinta, conjunta e permanentemente. Nenhuma testemunha avaliza isso. Sabe-se das visitas, embora constantes, de M.A.C.S. nas residências do falecido, mas não de sua permanência ali; nada há quanto à constância do falecido na casa de M.A.C.S.

Nada os impedia de morar juntos, se viviam, como alega a apelada, em tamanha harmonia. Porque não admite a tese da residência apartada dos companheiros, a apelante sequer justifica a possibilidade.

II – f)

26. Além de tudo, os autos se ressentem de ao menos indicar aqueles projetos afetivos (pessoais) e até mesmo patrimoniais ou financeiros que pudessem haver, conjugando a integralidade de vida do casal-convivente. É certo mesmo que as aquisições patrimoniais exclusivas do falecido foram objeto de seu também exclusivo esforço. Não nos parece que ele almejasse a qualquer outra aquisição. Se não grassa a prova de um esforço comum para constituir patrimônio, resultado diluído no todo, embora a soma resulte de exclusivo esforço anterior, o que também é de se considerar numa união estável, tem-se, neste aspecto, um ponto desfavorável à tese de plenitude da relação na espécie. O pressuposto do aspecto material, de caráter econômico-financeiro, mesmo sendo determinante no contexto, nem por isso perde sua força probatória no particular simbólico.

27. Nesse ponto – muito desafiador, é bem verdade -, talvez resida a maior deficiência deste caderno processual, pois as partes litigantes, por insuficiência de argumentos e provas, ou até mesmo por incapacidade de enfrentar a discussão, procuraram passar ao largo desse aspecto dos projetos comuns. E aqui não se espera uma especulação espetacular, pois a condição de madureza do casal, no quadro do senso comum de uma modesta classe média, não desafiaria um rol de tantos empreendimentos pessoais, sejam patrimoniais, sejam de modus vivendi, sejam de lazer, etc.

28. Se há a liberdade dos companheiros em não comungarem no dia a dia, ou de regra, da partilha de um mesmo teto, como foi exemplar – enquanto durou – a relação do cineasta Woody Allen e da atriz Mia Farrow, há, por sua excepcionalidade, essa escolha de ser dita e explicada. A regra de convivência é ocupar o mesmo espaço residencial, não chegando à distorção que assim não seja; mas, por excepcional, desafia explicação.

E toma relevância essa particularidade se se considera o âmbito dos projetos comuns tão essenciais a caracterizar uma união estável na maturidade. Já não se incluem nesse rol adversidades e o gozo partilhado dos momentos de placidez. Não bastando, assim, a companhia nas visitas médicas, aos restaurantes ou em comparecimento hebdomadário ao sítio de lazer; não se satisfaz na unilateralidade das atenções, ainda mesmo que cada um, por sua natureza e condição cultural e social, mais se preste a determinada conduta. Porque, de outra sorte, o que se tem é um namoro, um caso típico de amizade íntima, de solidariedade e até mesmo de cumplicidade, de afetos e carícias privadas, mas não um relacionamento de comunhão plena de fato. È curioso que, nas relações familiares de fraternidade, muitos são socorridos por um irmão ou um sobrinho, ou mesmo um parente mais distante no suporte de suas necessidades, mas nem por isso – embora família – se possa dizer existente um plano de vida comum, mesmo habitando uma mesma casa.

29. É, deveras, a situação dos autos típica, e como tal desafia-nos a sua análise, para do contexto extrair a "verdade" possível. Aqui, os elementos probatórios dão-nos a saber de uma realidade que tangencia a união estável, mas só se dando a sufragar a existência de um sólido namoro, uma relação confortável de troca, em que ambos os conviventes, ao fim e ao cabo, não se podem intitular vencedores ou vencidos, beneficiados ou explorados: ambos se deram na medida de suas posses e ambos usufruíram, cada qual, daquilo que o outro trazia.

Não se verifica o fundo comum, o affectio familiae. A cada tempo, cada qual retornava ao seu espaço com suas perdas e ganhos, preservada a sua personalidade, pois sempre destacada a sua individualidade.

E não seria mesmo a falta de um projeto comum o verdadeiro projeto comum entre ambos. Porque há modos múltiplos, plúrimos de convivência, numa ética que necessariamente, embora nos limites de uma normalidade – se normalidade há – moral, realiza-se de maneira diferente. O casal poderá ter-se comprometido a uma vida harmônica e integrada, de compromissos e dedicação sem se pautar nos moldes usuais. Assim é que não tiveram filhos naturais nem os adotaram, não coabitavam nem tinham dependência econômica; projetos típicos de formar patrimônio ou construir história em comunidade já não lhes era oportuno no tempo de andada maturidade que os colheu em relação. E, embora esse animus familiae que deles tanto aqui será cobrado, só lhes vale dizer algo pelo fato de que terá implicações econômico-financeiras.

30. O nó górdio da polêmica sempre nutrida em causas cuja discussão esteja centrada na caracterização da união estável reside exatamente na distinção, para o caso, da existência da bastante afectio. E, para o presente caso, em que os  envolvidos não constituíram prole nem deles seria de se exigir uma (em tese), e nem coabitavam o (um) lar conjugal, muito releva investigar acerca dos projetos comuns do casal, para muito além de se acompanharem em médicos e restaurantes. Àquela altura da vida – ele com mais de 60 (sessenta) anos e ela com 52 (cinquenta e dois) anos – o que se pode considerar como projeto de vida em comum, senão passear, visitas médicas e passar finais de semana em Itatiaiauçu – MG, como bem os autos denotam?

31. Eis por que chamou a atenção e mereceu destaque para o eminente Relator o fato de não morarem juntos J.C.O. e M.A.C.S. Pois parece certo que a vida a isso não se limita, ainda mesmo no outonal da existência. É um momento especial em que mais se busca a companhia permanente do outro, no só afeto da presença.

32. Na doutrina, acompanhando e referenciando Zeno Veloso (VELOSO, Zeno. Código Civil comentado: direito de família, São Paulo: Atlas, vol. XVII, 2003), Milton Paulo de Carvalho Filho sufraga o entendimento de que "se reconheça a evolução social no sentido de que algumas uniões, inclusive formais, admitem a intenção de constituir família, mesmo se os cônjuges ou companheiros morem em casas separadas, exigindo-se neste caso prova mais robusta e segura da união estável" (CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. In: PELUSO, Cezar (Coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Barueri: Manole, 2007, com. art. 1.723, p. 1700).

33. Mas é de se indagar: onde está dito, senão por um julgado qualquer, à luz da casuística do "caso concreto", que, em situação material e legal objetiva de ausência de qualquer impedimento, devam o homem e a mulher habitar o mesmo teto? J.C.O. e M.A.C.S. não quiseram morar permanentemente sob um ou três tetos – não importa – e daí?

34. O fato evidenciado nos autos de não morarem juntos, embora por si só impotente para descaracterizar uma união estável, causa espécie, máxime quando M.A.C.S. insiste em afirmar a coabitação. É que ela não assumiu as providências devidas quando do falecimento de J.C.O. Até mesmo quanto aos bens do finado, competia-lhe ter tomado imediata posse deles, como sói acontecer; ou melhor, quiçá, continuar na posse, se é que era tão inteirada do patrimônio do falecido. Foi muito acanhada ou foram mais açodados os sobrinhos, que, embora afastados do convívio do falecido, de seu de espólio querem ser muito íntimos e interessados.

35. É que o intuitu familiae se erige como categoria de síntese dos demais elementos caracterizadores da união estável. Sua subjetividade reside no ponto em que o intérprete integra os demais elementos e constrói a conclusão acerca do arranjo ou conjugação deles, acrescido da percepção de que sejam capazes de revelar uma vontade límpida e inquestionável. E isso porque concorrem com a união estável o namoro prolongado ou relações
fáticas periféricas, cuja estabilidade não se rege sob a égide de uma vontade direcionada à constituição de um núcleo familiar estável, direcionado a uma proposta de vida comum, confusa entre os companheiros, não paralela, mesmo que próxima, íntima. E nisso não está a pretensão de ignorar a individualidade de cada um, elemento psicoontológico do ser humano, a sinalizar sua plena humanidade, solidão íntima, insofismável, angústia e prazer a um só tempo, que o ser humano experimenta e que só partilha com o cosmo, com a energia vital total ou, como se queira chamar, com seu Deus.

II – g)

36. Acode considerar, no criptograma que dos autos ressai, para meu sentir, muito à custa de uma despreocupada e descuidada instrução, que aqui, na realidade, dá-se o testemunho de algo novo a se relevar no campo das relações humanas, e em especial no seio de um nicho da sociedade que se vai avolumando: a tribo da alta maturidade.

37. Vejo, na espécie muito bem delineada, uma relação que colhe dois indivíduos na madureza da vida, embora ela não tão avançada em anos quanto ele. Certo é que o casal viveu por anos uma relação amorosa de namoro, sem se cobrarem os conviventes o casamento tradicional e nem mesmo estabelecendo os vínculos da união estável – não mais mera situação fática, mas instituição juridicamente regulamentada.

Nas sendas da infinita capacidade criativa humana, J.C.O. e M.A.C.S. deram-se a um relacionamento maduro com discrição, mas consistente; cada qual contribuía, solidário, em que melhor pudesse. Ela confortava-o, levava-o aos lugares, conduzindo automóvel, visitava-o frequentemente, e ele compensava-a com amparo material na forma de presentes, generosos como era a dedicação de M.A.C.S. De boca da própria M.A.C.S. sabe-se que J.C.O. "deu-lhe" ou ajudou-a a adquirir um apartamento (f. 287) e um veículo (f. 293); ainda assim o benemérito não quis registro e nem assim institucionalizar o relacionamento como união estável, ficando anônimo na negociação como investidor – figura tão só como testemunha (f. 14). É nesse ponto que impressiona o caso: havia muito nesta relação de maduros: cuidado, atenção, solidariedade, afeto, companhia, mas não marcou, indelével, o intuito de formar família (pelo menos no sentido constitucionalmente posto). Talvez já não fosse mesmo tempo para isso. Muito embora não se possa vincular ou entregar a um só dos parceiros as rédeas da relação, fica traduzida a mensagem do varão; por muito que considerasse a namorada, não constituía com ela família, não construía com a companheira aqueles planos, por mais efêmeros ou simples que fossem, para realizarem juntos. O que fez, fez o varão por si. Já para o "fim da vida", apenas usufruía, e a companheira acompanhava-o, seguia-o na caminhada, mas não o ombreava, constituindo junto, seja o que for. Decorre, assim, para os termos pretendidos pela ora apelada (exclusivamente materiais – patrimônio do falecido e possível pensão previdenciária), ausente a bastante demonstração da ocorrência do intuitu familiae.

II – h)

38. Por fim, foram, reconhecidamente, aproximados 18 (dezoito) anos de convivência para tão pouca prova quanto a evidenciar a intensidade e o sentido dessa relação.

39. Com tais razões, dou provimento ao recurso para reformar a sentença e, por conseguinte, julgar improcedentes os pedidos formulados na inicial, tudo conforme o eminente Relator, cujo voto acompanho, embora por razões mais demoradas.

É como voto.

DES. WASHINGTON FERREIRA – De acordo com o Relator.

DES. PEIXOTO HENRIQUES – Sr. Presidente, pela ordem.

Gostaria de recomendar a publicação, mas não é por conta dos meus argumentos. Fiz a leitura do voto do eminente Revisor e creio haver ali, realmente, uma exposição até filosófica dos relacionamentos humanos, e essa figura que Sua Ex.ª defende, do namoro da maturidade, é interessantíssima e acho que seria de bom-tom que a comunidade jurídica tivesse conhecimento dessas argumentações de Sua Ex.ª, o Des. Oliveira Firmo.

Súmula – DERAM PROVIMENTO.

 

Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG