Artigo – Direito a alimentos após o rompimento de união homoafetiva

A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento ocorrido nesta terça-feira (3/3), reafirmou a possibilidade jurídica do pedido de alimentos deduzido por um dos parceiros de união homoafetiva após o rompimento da convivência, reformando acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que havia negado a pretensão alimentar.

 

A decisão, conduzida pelo ministro Luis Felipe Salomão, não poderia ter sido diferente, considerando a recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do próprio STJ.

 

Em que pese inexistir legislação específica, o Brasil, por construção jurisprudencial, não só reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, como outorgou, por equiparação, o mesmo regime jurídico  da união estável entre homem e mulher.

 

O elenco das entidades familiares posto no artigo 226 do pergaminho constitucional é reconhecido, de forma quase consensual, como meramente exemplificativo. Rol aberto a comportar indefinidas formas de constituição de família, todas elas igualmente protegidas pelo Estado. O ponto em comum a todas, a justificar o reconhecimento e o incentivo estatal é a afetividade, pois se muitas são as famílias em seus diversos arranjos familiares próprios, inegável que todas elas terão a sua formação pressuposta pelo afeto, como elo que as une e reúne.

 

O Código Civil brasileiro de 2002 disciplinou os direitos e deveres dos que convivem em união estável, assegurando aos companheiros um estatuto legal em muitos aspectos  semelhante ao dos cônjuges. A união estável, seja ela entre homem e mulher, entre dois homens ou entre duas mulheres, é uma situação de fato, consagrada pela realidade social, em tudo semelhante ao casamento.

 

Não há dúvida, portanto, que os mesmos direitos conferidos às uniões estáveis heteroafetivas também o serão às uniões homoafetivas,  sem qualquer distinção, aí incluído o direito a alimentos.

 

Uma questão que se coloca é se esses alimentos, devidos com fundamento na conjugalidade ou na afetividade convivencial podem ser  postulados após a dissolução da união, com base em necessidade superveniente.

 

Para alguns autores, se, após ou durante a dissolução da união, um dos companheiros renunciou aos alimentos, não cabe pleito posterior, até porque, dissolvido o vínculo, desapareceria a causa jurídica da obrigação alimentar e a irrenunciabilidade prevista no artigo 1.707 do Código Civil só protegeria os alimentos oriundos do parentesco, mas não aqueles decorrentes da conjugalidade. Já a renúncia na vigência da união ou mesmo antes de seu início, através de acordo pré- nupcial, não é admitida sob nenhuma circunstância[1].

 

Todavia, na doutrina existem profundas divergências quanto à extinção do vínculo alimentício entre ex-cônjuges por ocasião do divórcio ou entre ex-companheiros por ocasião da dissolução da união estável. Entre os que defendem a irrenunciabilidade da obrigação, mesmo após a dissolução da união,  encontram-se autores de nomeada como Paulo Luiz Netto Lôbo, José Fernando Simão, Flávio Tartuce, para quem “os direitos inerentes à dignidade humana, mesmo de cunho patrimonial, não podem ser renunciados”[2]. Na jurisprudência, não obstante alguns julgados do próprio STJ, também existe controvérsia quanto à possibilidade de renúncia aos alimentos entre ex-cônjuges e ex-companheiros, especialmente após a entrada em vigor do CC/2002 com a redação atribuída ao atual artigo 1.707.

 

Por outro lado, se o rompimento da união se consumou pela informalidade, sem renúncia expressa de um dos companheiros aos alimentos, estes poderão ser requeridos posteriormente. Isso porque, mesmo aos que entendem possível a renúncia, o ato abdicativo do direito deve ser expresso. Inexiste, no caso dos alimentos, renúncia tácita decorrente da simples inércia do titular. É um direito que não se extingue pelo seu não-uso.

 

O Superior Tribunal de Justiça já havia decidido que “mesmo após o divórcio, não tendo ocorrido a renúncia aos alimentos por parte do cônjuge que, em razão dos longos anos de duração do matrimônio, não exercera atividade econômica, se vier a padecer de recursos materiais,por não dispor de meios para suprir as próprias necessidades vitais (alimentos necessários), seja por incapacidade laborativa, seja por insuficiência de bens, poderá requerê-la de seu ex-consorte, desde que preenchidos os requisitos legais”[3]. Esse é o entendimento prevalente também para as uniões homoafetivas.

 

Sublinhe-se, finalmente, que o  fundamento jurídico da obrigação alimentar não se esgota no parentesco ou na conjugalidade. Acima deles sobrepaira irradiante e intangível o princípio da solidariedade (CF, art. 3º, I), a justificar a permanência do dever de mútua assistência material mesmo após a dissolução do vínculo. Especialmente porque aqueles que vivenciaram a conjugalidade, hetero ou homoafetiva, nunca serão dois desconhecidos e não podem se comportar como estranhos. Entre eles, com mais razão, é de se impingir a concretização, na horizontalidade das relações privadas, do princípio da solidariedade.

 

Em suma, para a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, é plenamente possível deduzir pretensão alimentar após o rompimento da união homoafetiva, desde que provada a necessidade de quem pleiteia e as possibilidades de quem é demandado, informadas pelo princípio da proporcionalidade.

 

A decisão é consentânea com a realidade atual do Direito de Família no Brasil e só merece aplausos!

 

[1] Direito civil. Irrenunciabilidade, na constância do vínculo familiar, dos alimentos devidos.Tendo os conviventes estabelecido, no início da união estável, por escritura pública, a dispensa à assistência material mútua, a superveniência de moléstia grave na constância do relacionamento, reduzindo a capacidade laboral e comprometendo, ainda que temporariamente, a situação financeira de um deles, autoriza a fixação de alimentos após a dissolução da união. De início, cabe registrar que a presente situação é distinta daquelas tratadas em precedentes do STJ, nos quais a renúncia aos alimentos se deu ao término da relação conjugal. Naqueles casos, o entendimento aplicado foi no sentido de que, “após a homologação do divórcio, não pode o ex-cônjuge pleitear alimentos se deles desistiu expressamente por ocasião do acordo de separação consensual” (AgRg no Ag 1.044.922-SP, Quarta Turma, DJe 2/8/2010). No presente julgado, a hipótese é de prévia dispensa dos alimentos, firmada durante a união estável, ou seja, quando ainda existentes os laços conjugais que, por expressa previsão legal, impõem aos companheiros, reciprocamente, o dever de assistência. Observe-se que a assistência material mútua constitui tanto um direito como uma obrigação para os conviventes, conforme art. 2º, II, da Lei 9.278/1996 e arts. 1.694 e 1.724 do CC. Essas disposições constituem normas de interesse público e, por isso, não admitem renúncia, nos termos do art. 1.707 do CC: “Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora”. Nesse contexto, e não obstante considere-se válida e eficaz a renúncia manifestada por ocasião de acordo de separação judicial ou de divórcio, nos termos da reiterada jurisprudência do STJ, não pode ela ser admitida na constância do vínculo familiar. Nesse sentido há entendimento doutrinário e, de igual, dispõe o Enunciado 263, aprovado na III Jornada de Direito Civil, segundo o qual: “O art. 1.707 do Código Civil não impede seja reconhecida válida e eficaz a renúncia manifestada por ocasião do divórcio (direto ou indireto) ou da dissolução da ‘união estável’. A irrenunciabilidade do direito a alimentos somente é admitida enquanto subsista vínculo de Direito de Família”. Com efeito, ante o princípio da irrenunciabilidade dos alimentos, decorrente do dever de mútua assistência expressamente previsto nos dispositivos legais citados, não se pode ter como válida disposição que implique renúncia aos alimentos na constância da união, pois esses, como dito, são irrenunciáveis. (STJ – REsp 1.178.233, Relator Min. Raul Araújo, J. 18/11/2014, DJe 9/12/2014).

 

[2] Curso de direito civil. 5ª edição, Gen/Método, 2010, p. 425.

 

[3] REsp 1073052/SC, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 11/06/2013, DJe 02/09/2013.

 

 

Mário Luiz Delgado é sócio fundador de MLD – Advogados, doutor pela USP, mestre pela PUC/SP, professor da Escola Paulista de Direito – EPD, diretor de Assuntos Legislativos do IASP e presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM.

 


Fonte: ConJur